No universo dos mitos, a origem do mundo é feminina. A narrativa que conta a origem do universo, a Cosmogonia, apresenta as quatro Forças Primordiais, Caos, a primeira delas, depois Gaia, a Terra de amplo seio, em seguida Tártaro nevoento e Eros, a força cujo surgimento passou a promover a vida. A primeira ação de Eros foi impulsionar à geração da vida Gaia, que, a partir de si mesma, deu à luz Urano, o Céu, primeiro rebento da primeira linhagem divina. Trata-se do elemento masculino com quem ela gerará, agora através do coito, seus outros filhos. Após a decepação dos seus órgãos genitais por Crono, seu filho mais novo, enquanto realizava o coito com Gaia, encontrando-se no ventre da mãe Terra sem poder sair à vida, pois o pai não permitia, Urano passará a fertilizá-la constantemente através da chuva. Logo, é a partir dela, de Gaia, da força feminina, que surge o elemento masculino, Urano.
É preciso pensar que estamos falando de um universo mítico, mas cujo respaldo está na realidade. Historicamente, estamos remetendo a um mundo agrário, cujo homem de então vivia em contato direto com a natureza, adversa e ameaçadora muitas vezes, cujos ciclos regia o tempo, sempre retornando às mesmas estações, mas trazendo ao solo renovação. Nesse contexto, a chuva era agente fertilizador expelido pelo Céu a fim de engendrar Terra, útero de onde a vida provém.
À medida que o mundo foi se organizando a partir da sua origem, tanto deusas quanto deuses, cujo berço é Gaia, agente feminino responsável pela criação de tudo que há, foram assumindo funções específicas. Zeus foi responsável pela ordenação e manutenção do Cosmo sendo, como agente de Eros, disseminador e fertilizador, logo, promovedor da vida. Equivoca-se quem atribui a Zeus atos de violência sexual quando ele se deita com uma mortal ou com uma deusa, pois tal visão é anacrônica e está descontextualizada. Primeiramente, ele é um deus, não um homem. É o pai dos deuses e dos homens, como bem pontua Homero. E ele só se faz soberano do universo, força mantenedora da ordem cósmica, por causa das deusas com quem se une, de quem gerou filhos, pois foram elas, juntamente com a prole, que lhe legitimaram esse lugar. Mais uma vez, é a força do feminino que possibilita a vida através da ordenação do mundo advindo do Caos.
A deusa Hera, irmã e última esposa de Zeus, representa a Instituição do casamento. Assim como as outras deusas e deuses, ela tem uma função específica. Com Zeus, teve duas filhas e um filho, Ilítia, deusa dos partos, Hebe, deusa da juventude, e Ares, deus da guerra. Sua prole representa a Instituição da Guerra, uma vez que a juventude (Hebe), constantemente renovada pelo nascimento (Ilítia), garante a força jovem da Guerra (Ares). Além disso, Hera divide a Soberania com Zeus, estando ao seu lado, uma vez que ela é a força mantenedora da sociedade arcaica grega, alicerçada nos três pilares, a saber, o Casamento, a Guerra e a Soberania.
Análises anacrônicas e descontextualizadas do mito atribuem a Hera o papel de esposa ciumenta, o que denota total desconhecimento acerca da representatividade da deusa. Olhares tendenciosos veem nela a parte lesada da relação conjugal com Zeus, pois para ele a satisfação do desejo erótico seria permitida, através das relações sexuais com deusas e mortais, e para ela restaria apenas a fidelidade ao marido, em uma estrutura patriarcal de sociedade. Trata-se, no entanto, de uma leitura superficial, desconhecedora da origem feminina do universo, tal como narrada na Cosmogonia, como também da existência de sociedades matriarcais entre os helênicos. Além disso, é ignorar a função específica de cada divindade, principalmente das deusas.
Cada uma representa uma feição do feminino. Afrodite, por exemplo, é a expressão erótica do desejo, criativa, fertilizadora, e juntamente com Ares, seu amante, expressa o ciclo de destruição e renascimento da natureza. São forças cósmicas opositoras que se complementam. A deusa Atena, por sua vez, representa a tenacidade na guerra, símbolo da inteligência estratégica. Ártemis simboliza a força selvagem dos bosques e da caça, consagrando a sua força à arte do arco e da flecha. As duas últimas são virgens, pois o que as impele à realização é a estratégia na guerra e a caça, respectivamente. O desejo, a pulsão de vida de cada uma, é direcionado para essas finalidades.
Assim, perscrutar os meandros dos mitos demanda iniciar-se nesse universo que são os estudos clássicos, amadurecendo o conhecimento através de leituras repetidas das fontes, estudando-as e analisando-as pertinentemente. Desse modo, evitar-se-á a deturpação e o uso dessas narrativas apenas como pretexto para discussões movidas por modismos.