Tenho várias manias e cacoetes. Sobretudo uma mania que considero muito boa. Aliás, me orgulho dessa mania. Sempre me dá bons retornos. Ad...

O lado bom do Brasil real

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Tenho várias manias e cacoetes. Sobretudo uma mania que considero muito boa. Aliás, me orgulho dessa mania. Sempre me dá bons retornos. Adoro visitar mercados públicos. Quando visito uma cidade, a primeira pergunta que faço é: “onde fica o mercado municipal?” Do jeito que adoro mercados, detesto shoppings. Em Itaporanga, no sertão da Paraíba, comprei algumas corujas esculpidas em madeira. Obras magníficas do saudoso Mestre Gabriel, artesão reconhecido. Gente de primeira qualidade. No Mercado de São Luiz do Maranhão, fiz algumas compras e ganhei preciosidades. CDs de um grupo de Boi de Matraca. Uma lindeza só. Em Belém do Pará, comprei um prato de cerâmica Marajoara (foto que ilustra esse texto) que ainda hoje está na minha sala.

Aqui na capital da Paraíba, onde moro, existem vários mercados públicos e feiras onde vou xeretar, espiar raridades. Faço uma verdadeira turnê, às vezes. Um passeio solitário e demorado. Dou desconto ao mercado público de Juru, também no sertão, onde comi um mocotó estragado e passei dois dias vomitando e com aquela tragédia que na minha terra chamam de “churrio”. Geralmente faço compras erradas.
Parece uma desculpa para voltar. Por exemplo, na última vez que estive no Mercado Público de Mangabeira comprei armadores de rede e me arrependi do modelo que comprei. Devo voltar para trocá-los e para novas compras. Afinal, os preços também fazem valer a pena. Eis o lado bom do erro. Voltar, voltar sempre. Refazer-se do erro e errar novamente. Mas este foi apenas um detalhe da minha visita. Quando fui comprar pimenta numa determinada banca, tive uma surpresa.

A moça que atendia na banca perguntou se eu não havia esquecido nada por lá na semana passada. Eu disse que não e ela riu. Eu fiquei um pouco atônito. Não sabia que teria naquele momento uma enorme lição de vida de uma pessoa que não conhecia. – “Faça um esforço. Tente lembrar”, disse a moça. Eu fiquei pensando um pouco e logo lembrei que havia chegado em casa sem as minhas mangas. Eu não sou colete para viver sem mangas. Adoro me sentir “um cão chupando manga”. Então arrisquei: – “Eu cheguei em casa sem as minhas mangas”, disse timidamente. Mais uma vez a moça riu e completou: – “Sem mangas, sem peras, sem maçãs, sem o abacaxi e outras frutas”, falou sorrindo e conferindo uma anotação. “Comprou, pagou e sumiu”, disse. A moça havia anotado o valor e os detalhes do meu esquecimento. Eu fiquei muito espantado porque realmente jamais iria lembrar. Os meus esquecimentos são bárbaros e sempre se repetem. Já estou acostumado.

– “O senhor tem 42 reais de bônus”, disse e riu da minha cara de espanto. Claro, minha cara de espanto protegida por uma máscara. Relembrou o episódio com detalhes. Ela tinha tudo anotado num bloco. Fiquei impressionado com a organização da moça e feliz com a demonstração de honestidade. – “Sim, esqueci. Quando cheguei em casa achei que não havia comprado”, eu disse. – “Pois comprou, pagou e não levou”, respondeu. A partir daí já tínhamos uma pequena aglomeração de duas ou três pessoas que ouviam atentamente nossa conversa. Eu fiquei sem saber como agir tamanho o espanto. Ela disse que faria um desconto de quarenta e dois reais nas minhas contas e que se preciso, ainda me daria o troco. Todavia uma coisa ainda me impressionava. Como teria me reconhecido de máscara?

Fiquei alguns minutos sem saber onde colocar as mãos e as compras. Cheio de pernas, como se diz por aqui das pessoas envergonhadas. Mas perguntei: – “Como a senhora me reconheceu?” Afinal, estávamos de máscara. – “Fácil. O senhor não é um tipo comum. Alto, loiro olhos claros…” Pensei com os meus botões: “loiro, eu? Meus cabelos brancos foram promovidos para uma juventude que já vai longe.” Nasci loiro, mas o cabelo foi ficando castanho, depois grisalho e agora branqueado. Quando era criança, me chamavam de “alemão”. Sou fruto de uma mistura de povos imigrantes que vai do alemão ao árabe, passando pelo português. Se fosse cachorro, seria uma vira-latas com pedigree.

Fiquei bem feliz com o fato. Lembrei de um meme que vi outro dia: “é raro, mas acontece muito”. A moça mostrou mais algumas anotações que ela faz para pessoas que esquecem compras ou perdem documentos. Tem uma memória poderosa, pois nesses tempos de pandemia com quase todo mundo andando de máscara, reconhecer alguém é uma arte. Também fiquei feliz porque estou entre os que preferem acreditar nas pessoas. Essas pessoas que estão anonimamente no nosso dia a dia, às vezes nos ensinam muito. Quando vejo algum canalha na televisão ou nas notícias dos portais, não deixo de lembrar dessas pessoas que nos enchem de esperança. O Brasil ainda continua um país lindo por pessoas assim.

Não é a primeira vez que me acontecem coisas inesperadas e boas. Uma vez coloquei meu caro para lavar e o moço que assumiu a tarefa, faria o serviço por dez reais. Ele achou seiscentos reais em dinheiro dentro do carro. Naquele tempo eu trabalhava num sindicato e recebia em dinheiro. Eu esqueci de guardar a merreca de um dia para o outro. Nunca mais esqueci esse outro ser iluminado. Baré me entregou o dinheiro, eu paguei bem mais que ele tinha pedido e fiz uma campanha para ajudá-lo, contando essa história. Na próxima ida ao Mercado de Mangabeira vou pedir para fotografar a moça e a banca. Também vou fazer um “comercial”. É sempre possível fazer boas escolhas. Baré, ainda lava carros na rua Rodrigues de Aquino, perto do SINTTEL, onde eu trabalhava. Pra mim, esse é o Brasil real que vale a pena.

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  1. Eita,Lau! Que crônica gostosa de se ler!
    Esta é a legítima crônica,contém a leveza de uma cotidianidade simples, regional e pitoresca.
    Diferente dos temas ufanistas que tanto enjoam como são repelidos pelos nossos olhos.
    Parabéns,meu amigo!

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