Início de meu romanceamento do ÉDIPO REI, de Sófocles, em minha HISTÓRIA UNIVERSAL DA ANGÚSTIA, ed. Bertrand Brasil 2005, finalista do Jabuti em 2006, Prêmio Graciliano Ramos, da UBE – Rio do mesmo ano.
Édipo ficou por um átimo fora e dentro do pesadelo, sem saber se o rumor e o tremor subterrâneos que ouvia eram ou não reais - ou os dois - , bem como os estrondos, a gritaria, as sirenes de ambulâncias e de carros de polícia misturando-se à zoada dos desmoronamentos e de esguichos de água e gás, sufocado pela fumaça, pelo pó e por uma fedentina intensa de carne e cabelos queimados, mofo liberado, esgoto e tumbas inesperadamente abertos. Arregalou os olhos quando viu parte do teto fundo se soltando e crescendo em sua direção, com lustres, estuque e tudo mais. Jogou-se do leito ouvindo o ronco do desastre, correu em meio à caligem e ao caos, protegendo o rosto das vidraças detonadas, perdeu-se várias vezes entre corredores e quartos, até que se viu, finalmente, no terraço, mas não lhe foi possível sentir alívio algum, pois o palácio sacolejou de novo. O rei da cidade tentou manter-se em pé mas caiu de joelhos, reerguendo-se curvo e devagar, como no dorso de um monstro, vendo o edifício Chronos, ao lado, soçobrar em meio a um rastro vertical de pó, no que um outdoor da Coca-Cola dobrou sobre si mesmo, com um esgar de flandres que se amarrotavam, enquanto, à direita, esfacelava-se o impressionante mural publicitário do espetáculo “Gigantomaquia”, feito de toneladas de concreto que representavam, em alto-relevo, a última batalha dos Gigantes contra os Deuses.
Bruscamente, silêncio. E o socorro surgiu de toda parte. Médicos e bombeiros começaram seu trabalho pesado, mas – sem suportar mais tanta calamidade junta - o sumo-sacerdote Kroisos - com luxo e carmim (pois presidia uma cerimônia pomposa pelos mortos da peste e da fome), irrompeu imponentemente escorado em seu cajado de pastor das almas - bramindo com voz poderosa em cima de uma enorme viga que tombara do templo:
Ó Apolo!!!
O sol – como se o atendesse - reapareceu vermelho sobre a pólis imersa em fumaça e pó. Quem pôde, recompôs a marcha – sem parentes nem aderentes a procurar – e repetiu, braços ao céu:
- Ó Apolo!!!
E Kroisos, olhando por um momento para as milhares de pessoas atônitas mas ilesas, com apenas alguns feridos e mortos:
- Tu, que curas todos os males!!!
A elite e a escória, trôpegas, em meio a tosses e gemidos:
- Tu, que curas todos os males!!!
- Envia-nos o teu socorro!!!
O povo, sobrancelhas ferozes, bocas severas, mãos crispadas – aos milhares:
- Envia-nos o teu socorro!!!
As ferragens do hipermercado Archeômetro gemeram dolorosamente e, por um momento, o maior complexo varejista de Tebas – ainda bem que vazio - pareceu mover-se entre os arranha-céus. Mas um raio tríplice fulgurou, estrondando ensurdecedor, e foi para a força que o desferiu, entrevista por dentro das nuvens carregadas ( há meses criando apenas tensão sobre a seca ), que Kroisos suplicou:
- Ó Marte poderoso, deus da guerra, do desastre e da peste! Tu, que nos feres em meio a todos estes gritos de pavor, afungentai o nosso desespero para o vastíssimo leito de Anfitrite ou para as ondas dos mares da Trácia!
Um grito estridente. Kroisos sussurrou, junto dos microfones:
Meu Zeus: o que este dia não mata, amanhã será destruído!..
. Alguém localizou Édipo:
Lá está o rei!!!
Onde?
No palácio!
Alguém puxou o coro, que cresceu compassadamente:
Édi-pô!!! Ajuda-nôs!!! Édi-pô!!! Ajuda-nôs!!!
Kroisos – frustrado ante a distração a seu apelo junto aos deuses – caminhou usando o arrimo do báculo, passou entre as grandes motos emparelhadas no estacionamento do Cine Minerva, desviou-se da combustão dos pneus de um caminhão, de um jipe e de uma van virados na Avenida Logos , sempre ouvindo aquele crescente “Édi-pô!!! Ajuda-nôs!!! Édi-pô!!! Ajuda-nôs!!!”, quando, ao olhar novamente para o céu, pensando em Ártemis, Demeter ou Hermes, viu:
Os ufos da Equipe Freud!...
Muitos desandaram a correr para a residência real. O sumo sacerdote desviou sua rota – até então perdida - para o mesmo rumo dos outros, vendo o pó e a fumaça deslumbrantes ao serem cruzadas por vários holóphotos – lilases e azuis – das naves, que se concentraram sobre o rei no que ele reapareceu – camisa vermelha aberta ao peito – os flashes dos repórteres também iluminando os milhares de rostos ansiosos que o aclamavam em crescendo – Édipo caminhando entre as colunas de vidro e aço, dando ordem de recuar para a barreira de soldados que imediatamente aparecera – apesar da excepcionalidade do momento - para escoltá-lo. Ele desceu as escadarias entre os olhares implorantes das mulheres com crianças nuas nos braços e famílias que se agruparam em volta de seus moribundos ou se espalharam pelos degraus. Subiu até à tribuna entulhada de microfones, de frente para a Ágora da Liberdade, olhou para a quantidade de gente que subira no monumento à sua vitória sobre o grupo terrorista Esfinge, esmagado por ele onze anos antes, enquanto, lá em cima, a Virgem Atena - mais uma vez - movia-se para coroar de louros um Édipo ainda mais jovem que resolvera o enigma de uma outra, uma simbólica Sphinx – monstruoso ser, híbrido de touro, leão, homem, águia. Édipo se deteve, emocionado ante a cidade faminta, doente, suja, ferida, assustada, que foi à loucura ante a iminência de finalmente ouvi-lo sobre todas aquelas calamidades. Ele ergueu as mãos, fazendo-a calar-se.
Tebanos!!! – proclamou – Eu estou aqui para vos ouvir!!!
Houve um instante de hesitação, depois todos gritaram ao mesmo tempo: dos representantes dos bairros aos líderes operários ( muitos ainda de capacetes e macacões ), dos pivetes de rua aos chefes dos asilos de velhos, dos cabeças do movimento estudantil às presidentas das associações de donas-de-casa. O povo percebeu o que fazia e sobrepujou-os:
Ajuda-nôs!!! Ajuda-nôs!!! Ajuda-nôs!!!
Ele olhou para o realismo nu e cru dos rostos e corpos mais próximos – olhares suplicantes, muitos fanados, alguns febris, alguns aterrorizados, um e outro excepcionalmente lhe sorrindo de súbito ao se sentir reconhecido. Ergueu novamente as mãos, disse, ante o silêncio recomposto:
- Mandei que vos fosse prestado todo o socorro à disposição do trono!... Viu o sacerdote emergindo em meio a uma humanidade desvastada. Disse-lhe:
Fale, Kroisos.
Nesse momento, a terra tremeu de novo. Estalaram edifícios ainda intactos – como o da IBM e o da Seagrans -, estrondaram ruínas do sismo anterior – milhares delas - , uma nuvem densa de pó avançou pelas ruas feito um fantasma ameaçador, ouviu-se novamente a gritaria: “Pai!”, “Cibele!!!”, “Socorro, Socorro!!!” ”Um médico, pelo amor de Zeus!”
- Édipo! – Kroisos bradou nos microfones, acima de todos os sons, no que o rei o viu crescer sob os deslumbrantes tubos de luz vindos do céu, o luxo dos paramentos sacerdotais acrescentado pela brilharia dos vidros pulverizados que desciam feito névoa das janelas destruídas. – Édipo!, a ciência de quase nada nos vale neste momento, embora te agradeçamos pelos médicos e bombeiros que inclusive mandaste vir de Corinto para nos atender no sufoco já tão grande antes dos desmantelos de hoje! Acontece, entretanto, que nosso mal é maior, porque tu sabe – e Tebas também – que nem tudo é tão fome e pão, o mal e a cura! A razão de tanta calamidade sobre esta gente, Édipo, é – com certeza - um outro enigma como aquele que resolveste destruindo a Esfinge há onze anos, ao te aproximares da cidade! Por isso estamos aqui! Nós todos vemos em ti o primeiro dos homens, aquele a quem se recorre quando a desgraça maior nos abala e se faz necessário o apoio divino, sim, mas através de um grande líder, não de um sacerdote! A ti, portanto, cujas virtudes veneramos, vimos suplicar: valendo-te dos conselhos humanos e dos deuses, dê remédio aos nossos males!