Diário da Pandemia
Ópera visual em quatro atos
Ópera visual em quatro atos
Introdução
Desde o início de 2020, a humanidade tem sido sobressaltada pela disseminação de um vírus letal, em escala planetária, que só no Brasil
matou mais de meio milhão de pessoas. É difícil imaginar quem não tenha
sido afetado pela radicalidade de tal acontecimento. As estatísticas apontam
novas formas de “psicopatologia da vida cotidiana” e a imprensa reporta os
sintomas da neurose: sensações de medo, aflição, desespero. Irrupção de
afetos tristes que, até novembro de 2021, ainda não se dissiparam.
Segundo Ezra Pound, “ os artistas são as antenas da raça”: percebem, assimilam e projetam nas telas as grandes dores e alegrias do mundo. Essa sacada pode esclarecer sobre a ética que norteia a atitude do artista, empenhado numa tarefa tão exaustiva. Desde cedo, a arte de Flávio Tavarespossui um matiz crítico e contestador. É querido por todos, mas semprecorajoso, nunca se furtou a denunciar as calamidades sociais e políticas.
O golpe político, jurídico e midiático, que depôs Dilma Youssef (31.08.2016), propiciou a abominável ascensão de Michel Temer (12.06.2016 – 01.01.2019). Movida pela fúria neoliberal e ligado ao que há de pior na política, a gestão-Temer gerou uma espécie de pandemônio, com prejuízos ao processo democrático, à economia, saúde, meio ambiente, educação e setor artístico-cultural. Isso atingiu a classe média e principalmente as classes sociais mais vulneráveis, que perderam a confiança em seus representantes.
A canção dos Titãs diz: “se houver saída será pela arte”. Parece pretenciosa, mas pelo vigor poético-tecnológico dos audiovisuais, pode-se apostar que as artes e mídias, usadas adequadamente, podem tornar a “cabeça bem-feita”, como diz Morin (2001), sobre a educação atual e a necessidade de reforma do pensamento.
Isto explica a decisão de Flávio Tavares, o Mestre das Artes Plásticas na Paraíba, criar um grupo no Facebook e compartilhar diariamente as fases do seu novo trabalho. Gozando de grande popularidade, ele tem arregimentado mais de quatro mil seguidores na plataforma. E ao postar sua arte de contestação em rede social, cria laços com os espíritos rebeldes, tornando-se porta-voz do mal-estar e sentimento de indignação.
Flávio Tavares parece ter sido muito afetado pelo brutal assassinato da vereadora Marielle Franco, em 14 de março de 2018. A prova é que expressou seus sentimentos na criação do quadro “Brasil – O Golpe – A Ópera do fim do Mundo”, exposto no SESC, João Pessoa, em 27.08.2018, onde apresenta uma irônica carnavalização do Brasil.
Do lado esquerdo, há uma imagem da ex-Presidenta Dilma que remete a época da sua prisão e tortura. Do lado direito, há uma alegoria dantesca, banquete medonho, do qual participam os mafiosos da “elite do atraso” nacional, os responsáveis pelo golpe.
Michel Temer aparece em sua imagem midiatizada como vampiro, os Ministros de Estado como caricaturas, e o Judiciário exibe seus espectros feios, incluindo o ex-juiz Sérgio Mouro, como “boneco de ventríloquo”, refestelando-se à “mesa demoníaca”.
O quadro mostra a uma visão histórica, estética e social, que ressignifica o matiz de tropicalidade cultivado pelos retratistas do Brasil Colonial, como Debret e Franz Post, e faz a denúncia do abismo das classes sociais, o racismo e a violência no Brasil.
No painel de três metros, o pintor remontou temas clássicos, fixando as imagens do Hades, o rio do esquecimento (em alusão à impunidade brasileira), onde hárpias, dragões e serpentes dramatizam a cena, conferindo um tom sombrio à representação.
Em outro registro, o mestre vai capturar signos ancestrais da tradição greco-latina e medieval. Os vultos iluminados de Dante Alighieri e Virgílio, em suas andanças pelo céu, inferno e purgatório, têm muito a dizer sobre alguns aspectos sombrios da atualidade.
Os clássicos têm sido recorrentes na obra do artista. Os grandes arquétipos e os seres extraordinários retornam como alavancas ao exercício de atualização da memória.
No alto, a alegoria visual se estende: do lado direito, algozes, carrascos, capatazes vagam pelas escadas, como sortilégio atroz de destruição, sob a sombra alada de uma agourenta ave de rapina.
E do lado esquerdo (o lado do coração), há uma miríade de figuras desenhadas com leveza, como um cordeiro branco que repousa na relva, e um ancião de ar sereno (como o Eremita do Tarô) que mira as alturas. Enquanto isso, alguns serviçais carregam os pesados patrões nas costas, subindo doloridas escadas; estão sob as asas de uma pomba branca, como um sinal de compaixão e misericórdia.
Lá no alto, uma figura aureolada segura no colo uma criança, e em sua retaguarda se contrapõe um homem de joelhos, amarrado a um poste, envolto em matiz avermelhado, em agonia infernal, como quem sofre um justiçamento macabro. O quadro – em sua estética da indignação – prenuncia o que virá, em termos estéticos, afetivos e ético-políticos, no painel o Claustro.
Em postagem no Facebook (30.01.2021), Flávio informa seu novo projeto, dando continuidade ao “Diário da Pandemia”. O trabalho será concebido durante a fase mais letal do coronavírus, quando a mortandade já houvera atingido amigos, conhecidos, entes queridos e o confinamento se tornara mais acirrado.
O artista anuncia que vai se enclausurar, deseja ter a sensação do enclausuramento em sua forma extrema. Já estava confinado há meses, mas agora propõe a construção de um claustro dentro do claustro, onde permanecerá durante meses elaborando a obra. Essa produção será compartilhada diariamente com os seguidores, igualmente confinados em suas ocas eletrônicas, mas todos conectados no Facebook.
No atelier do pintor, antes do show começar, reina, ao mesmo tempo, paz e agitação, o entusiasmo da criação e a sensação de sufoco diante de algo que parece interminável. Eis então o primeiro contato virtual com a arquitetura do Claustro, uma ode ao amor pela arte e protesto contra a cultura do ódio. Instigado pela coragem de criar, o artista vai começar um expediente que se fará a partir da recorrência à substância da memória, com base na ética, consciência social e vigilância permanente.
No que respeita às instalações físicas do Claustro, a altura do teto é generosa, há uma sala ampla, arejada e uma longa linha de fuga para o alto, e a intensa iluminação torna o ambiente adequado à modelagem deste curioso confinamento.
Num relato audiovisual, o Mestre anuncia uma espécie de autobiografia através do resgate de alguns aspectos da sua própria obra, sob o pretexto de reinvenção da memória; tudo isso sob a direção de fotografia do filho, Eduardo Tavares. Convém, aliás, conhecer a edição de vídeo de Eduardo, trabalho magistral de registro do percurso inteiro da obra Diário da Pandemia, num período de quase dois anos.
Flávio explica o foco narrativo dos quatro atos dispostos nas grandes telas: “Cama e Mesa”, “Infância”, “O Juízo Final”e “Uma ópera no Terreiro Brasil”. Mas isso não estabelece uma sequência ortodoxa na hora da visitação. Na exposição, ao entrarem no Claustro, os visitantes podem escolher seus modos de ver e interagir com cada quadro.
Podem igualmente visitar o perfil do pintor no Facebook e acompanhar a fase de produção do diário do confinamento (desde 2020). É uma experiência indescritível conhecer a usina por dentro, uma espécie de making off, com fotos, vídeos explicativos, posts e conversações com seguidores, desde os primeiros croquis até a arte final em 2021.
As imagens-afeto do Claustro atuam sobre o público, como um “atrator estranho” com poderes cinematográficos. Aliás, é forte a influência do cinema em sua obra. O cinema revigora a sua educação estética, já sólida na sua formação ligada à música (Quinteto Armorial, Zé Ramalho), teatro (Ariano Suassuna), literatura (Sérgio de Castro Pinto), fotografia (Antonio David) e às expressões da cultura popular (como Caixa D'água), além evidentemente das artes plásticas (Hermano José, Raul Córdula). E, há que se registrar as conversações que turbinam a imaginação criadora. Os gênios veteranos interagem on line, como o vitruviano Waldemar Solha, artista dos sete instrumentos, em diálogo permanente com a produção de Flávio Tavares, na construção do Claustro.
O imaginário de Augusto dos Anjos, Zé Limeira, Júlio Cortazar etc fornece combustível para sua vigorosa “usina de produção visual”. Mas é Gabriel Garcia Marquez quem dará asas à sua imaginação criadora, para decifrar e traduzir a complexidade nordestina, brasileira e latino-americana, pelo prisma do realismo fantástico.
O Claustro encarna uma visão de mundo, pelo viés da alegoria, uma compreensão da realidade pela via da razão sensível, atenta aos cacos, sombras e surpresas da história. Uma alegoria à maneira de Walter Benjamin, e em modo antropofágico, similar à estética de Oswald de Andrade, Jomard Muniz de Britto, Chico Science e Chico César.
Nessa esteira, Flávio Tavares empreende uma carnavalização dos grandes personagens artísticos (como José Celso Martinez Correia), históricos (Machado de Assis, Camões, Gil Vicente), míticos (Carmem Miranda), conterrâneos e populares (Corrinha do Cafuçu, Dadá Wenceslau, Nanego Lira, Mestre Fuba e Ednamey Cirilo).
Do local ao universal, Tavares agrega todos os personagens no panteão dos seres imaginários (como Leda e o Cisne, São Jorge e o Dragão, serpentes aladas e os Cavaleiros do Apocalipse). Define assim a perspectiva de uma dramatização com matizes oníricos, alegóricos, sobrenaturais, que abrem as portas da percepção para uma compreensão mais profunda da complexidade humana, social e cósmica.
Na migração dos croquis às pinturas, haverá desmanches e transfigurações. Como na passagem do copião à realização do filme, no cinema, muitos originais ficarão de fora, mas vão constituir importantes imagens-operetas de qualidade e valor inestimáveis.
O tempo redescoberto pela mediação visual
Antes da criação do Claustro, há um desenho com título premonitório: “O país do carnaval e a morte anunciada”; a analogia com o presente é clara. Sob o signo da pandemia há milhares de mortos no país, desde o início da viralização. O governo tem sido acusado de ser negligente, irresponsável e genocida no tocante ao controle sanitário. Segundo especialistas, o governo tem atuado sob a forma de uma necropolítica (onde a vida humana vale muito pouco) e merece ser punido por crime contra a humanidade.
O Claustro atualiza uma estética da subversão, mostrando a face fake da sociedade que se quer justa, cordial e democrática, mas é racista, classista, misógina e homofóbica.
O compartilhamento da construção do Claustro no FaceBook gerou um feedback surpreendente, como Hildeberto Barbosa Filho, que postou belos versos acerca da obra em processo, uma forte sintonia poéticoliterária com a imaginação criadora do autor:
Lá fora / não dá mais / Vou ficar / dentro do poema /
Dentro do poema / respiro o ar puro das palavras /
Misturo seus tons e cores / desenho imagens /
Habito / os pontos de fuga da memória / da poesia /
Se só, em voluntária clausura / mais livre, mais vivo /
Lá fora / não dá mais / Vou ficar dentro do poema /
Lá fora / o caos, o crime / o verme / o vírus / a morte /
Dentro do poema / a ordem luminosa / o clamor cósmico /
A rosa que resiste / o poema que salva . (Hbf).
No interior do quadrado, o pintor fez a montagem de uma narrativa extraordinária. E involuntariamente, gerou formas de aprendizagem, fluxos de envolvimento audiovisual e catarse coletiva. Interagindo na rede social, o artista agilizou uma ação comunicativa, em que o olho, o espírito e a tela se aliam no exercício da escuta, estimulando o “ouvido pensante”. Aliás, Flávio pinta ligado numa trilha musical, que reúne música clássica (Chopin, Albinoni, Vivaldi), música popular (Sivuca, Luiz Gonzaga, Quinteto Armorial, Caetano Veloso), e clássicos do cinema (Nino Rota, em Amarcord e O Poderoso Chefão).
O artista começou o projeto num domingo (28.02.2021), iniciando pelas “cenas da família”, inspirado no clima crítico do teatro vicentino, do dramaturgo português Gil Vicente (1502). A alegoria assim, lentamente, vai tomando forma, espantando as “agonias claustrofóbicas da apocalíptica pandemia”, no ritmo da sátira de Gil Vicente, em O Auto da barca do inferno (1517), a matriz da alegoria das barcas no Claustro.
O Teatro Social
A Cidadela, o Retrato de Família
A Cidadela, o Retrato de Família
No quadro da família, um belo exercício de metalinguagem imagética, o espelho reflete o olhar do fotógrafo que mira a imagem da família na composição da tela. Há ressonâncias do filme Amarcord (Fellini, 1973) no ritual memorialístico da obra. Vide exemplo, na imagem especular do avô fotógrafo, que um dia lhe revelou estórias bonitas em fotografia, e escapou da névoa do esquecimento, reaparecendo como espectro luminoso.
No clássico álbum de família, a figura materna e os seis filhos estão em traje de passeio. Aos pés da matriarca, a imagem de um leão, a fera, arquétipo da coragem, força, liderança e bravura. Flávio conta que segundo o seu pai, em algumas noites, o leão circulava tranquilo pelos terrenos da casa. Percebemos, ao adentrarmos no Claustro, que as feras estão por toda a obra e adquirem várias formas; as metamorfoses ocupam um lugar de excelência na sua obra, como ocorreu a Ovídio no auge da cultura grecolatina.
Do lado esquerdo (da família) jaz o arquétipo da “criança divina”, figura do inocente, em traje de marinheiro com um peixe na palma da mão, símbolo da cristandade. Do lado direito, a imagem místico-afetiva da doméstica afro-brasileira, ladeada por jogos de búzios, ervas medicinais e artes da cura. Essa imagem tem analogia com a sabedoria do pai médico, que concilia a alopatia e os saberes populares sobre as plantas medicinais.2
No quadro cama e mesa, o quarto dos pais, o leito sagrado, o sacramento do matrimônio forjam imagens intimistas de um passado remoto. De um lado, a benção dos sacerdotes (orientação materna); do outro, a emanação dos ritos africanos (orientação paterna). Um rico “politeísmo de valores” expresso na linguagem visual, que revela corpos, olhares, posturas, gestos em movimento.
Nas extremidades laterais, em ambos os lados, há uma profusão de labirintos, emaranhado de desvios, rotas sem saídas, veredas impossíveis que dificultam os acessos e conquistas. O labirinto é um arquétipo milenar presente nas lendas antigas, narrativas mitopoéticas, que se atualiza no impasse ecológico do antropoceno (o homem predador da espécie e destruidor da natureza), na pandemia (a incerteza acerca do futuro do vírus), no pandemônio (a política dominada pelos bárbaros).
No alto, o fausto do banquete na casa grande, a mesa familiar, os pais e os cinco irmãos, uma simulação das cerimônias antigas do patriarcado latino-americano. Hoje, em transfiguração, mas atuante no imaginário coletivo, como referência ainda segura para os privilegiados sociais, malgrado as mutações da “modernidade líquida” no sec. XXI.
No alto do quadro “Cama e Mesa”, desponta o quintal da casa, o quarto dos fundos, primeiro ateliê: usina de produção de imagens, desenhos e refinadas gravuras. Ladeiam a grande cena as imagens telúrico-sentimentais da cidadela.
Na aba direita, o centro, a Lagoa, o Parque Solon de Lucena; na aba esquerda, o Varadouro, a cidade baixa, a origem do município, celeiro da boemia, dos poetas e criaturas lendárias. Ali nasceu o célebre Grupo Sanhauá, com Sérgio de Castro Pinto, Marcos Tavares (primo do pintor), Anco Márcio, Cleodato Borges, o maestro Pedro Santos, Luiz Augusto Crispim e outros poetas. Vide o livro Sanhauá: uma ponte para a modernidade (Barbosa Filho, 1989). Saíram daqui algumas das imagens acústicas, ótico-sensoriais e poético-literárias que moldaram a imaginação audiovisual do jovem Flávio Tavares.
O Claustro e a Iluminação nos tempos das trevas
A fotografia e o cinema encorajam o trabalho dos pintores, na medida em que iluminam arestas e angulações da realidade impossíveis de serem vistas a olhos nus. A propósito, caberia relembrar a revolução que a fotografia causou no trabalho e na concepção estética dos artistas de vanguarda do século passado. O fenômeno Claustro em si já representa uma atualização nos modos de apresentar a pintura, e é original também no uso da tecnologia como meio de compartilhamento das artes plásticas, algo ainda distante do grande público.
A exposição alegórica do Claustro, em novembro de 2021, após quase dois anos de reclusão do público, vai se realizar envolta numa gama de interesse, expectativa e entusiasmo. Isto porque o seu processamento envolveu abertura, acolhimento, respeito e generosidade, numa época em que as pessoas experimentaram a terrível sensação de abandono, falta de esperança e perda da motivação para viver. Ocorreu principalmente com os mais velhos, pois sendo considerados “grupo de risco” e vulneráveis, intensificaram a dose de confinamento.
Flávio Tavares teria razão ao afirmar que no Claustro não há nada de novo sob o sol, além de uma produção extraordinária, uma proposta original de experimentação estética, um profundo exercício de Filosofia acerca dos afetos coletivos em tempos pandêmicos e sua atuação sobre as formas sensíveis e inteligíveis dos indivíduos.
Crianças brincam no claustro e o artista pinta o juízo final
O legado memorial mais assombroso do cristianismo foi a fogueira da Inquisição; até hoje há marcas indeléveis do seu espectro em vários matizes das crenças religiosas. Giordano Bruno, Joana Darc, os Cavaleiros Templários e muita mais gente foi morta sob as ordens do Igreja do Santo Ofício. É horrenda também a herança deixada pela Inquisição, como o medo do inferno e a danação eterna, como podemos ler em “O Nome da Rosa”.
Com efeito, as formas do medo mudaram de roupa, mas há incidências fortes de sua potência maligna no âmbito secular. Os fundamentalismos, dogmas, seitas e bolhas perversas que nos envolvem, implicam novos vetores de pânico. Cabe à excelência da arte eliminar este afeto tóxico e pantanoso que fragiliza os indivíduos e lhes atordoa o espírito, privando-os da liberdade e autonomia de pensamento, discurso e ação. Hoje, como ontem, a arte habilita a razão sensível dos atores sociais a exorcizarem as formas do medo, os espectros do mal. As feras e monstros no imaginário da obra atuam vigorosamente como carrancas, amuletos e equipamentos de corte da parte maldita do imaginário opressor.
No Claustro, a visão do mal se epifaniza em alta definição. Guarnecido de olhos cinematográficos e ouvidos afinados, o artista ganha precisão e agilidade na criação de estratégias sedutoras, durante elaboração de sua substância estética, material e simbólica.
Em contato com as novas tecnologias, o artista se torna mais ágil, pragmático e exitoso, sem abolir a paciência do trabalho artesanal e sem perder a percepção sensível para seguir o lento ritmo da vida e poder capturar a duração dos seres e coisas do mundo.
As artes sacras, no passado - gótico, medieval, barroco - reconfortaram as almas desesperadas, mesmo sob a ameaça de um clero controlador dos espíritos. Hoje, as artes visuais, durante a pandemia, são algo mais que válvulas de escape que apaziguam a neurose coletiva na sociedade laica pós-industrial. Atravessam a malha lógica e racional das redes tecnológicas e revitalizam a dimensão de magia e encantamento do mundo, como no tempo das artes e ofícios tradicionais. Renovam assim o valor de culto e remodelam o conceito de aura místico-religiosa que envolveu as artes da tradição.
Há os cânones ocidentais no que respeita à competência e habilidade na representação do mal. Dante Alighieri na literatura, Bosch e Brueguel na pintura, Murnau, Bergman e Tarantino no cinema, todos são grandes peritos na articulação das estratégias de captura e dissipação das imagens do mal. E essas referências não estão fora da obra de Tavares. Aparecem de modo figurativo, nas citações e elaboração originais.
No Claustro, como no interior dos sonhos e devaneios se forja uma outra noção de duração e temporalidade. Convém escutar os bons presságios das vozes noturnas da imaginação artística. Na Idade Mídia, é preciso ajustar os pincéis face ao retorno dos demônios e seus ardis. Suas vozes soaram no rádio, durante a ditadura de Vargas, e retornaram no Repórter Esso, na ditadura militar (60/70). Como um “efeito-poltergeist”, os fantasmas da era digital vêm sob a forma de algoritmos a serviço do mal, e migram através dos memes de ódio, que infestam as nossas redes sociais. Há fake news, há deep fake e outras virulências na signagem do ciberespaço. É função da arte afugentá-las.
Destarte, cumpre ocupar a rede social e contrapor a boa nova. Eis aqui um bom exercício de politização da narrativa, engajamento da sensibilidade, militância da razão sensível à serviço das experiências cognitivas, éticas e estéticas mais nobres, pois levam os atores-em-rede a fazerem coisas razoáveis, sensuais, inteligentes e bonitas.
Hoje, quando imagens vampiras invadem a claridade pacífica das nossas manhãs, convém misturar bem as cores, no enfrentamento da magia branca, letal e tóxica que nos assola. A alquimia das cores, brilhos e luminosidades do Claustro apagam as zonas de sombra e afugentam as criaturas nefastas da noite política que nos assombra.
O expediente cinético, o ritmo e a musicalidade, que emanam dessas entranhas criativas, desde o instante artesanal no “Ateliê do Altiplano” até a conexão no Facebook e a exposição no Espaço Cultural, exorcizam o mal-estar causado pelo confinamento, máscaras sufocantes, clausura, solidão e o medo da morte pelo coronavírus.
Deuses e monstros do Claustro, humanos terrivelmente humanos
Os impressionistas foram ágeis na captura das relvas ondulantes ao sabor do vento, quando a máquina fotográfica surgiu. Igualmente Picasso, pintando o movimento dos gestos nos rostos cubistas, foi astucioso e sobreviveu quando a arte do cinema apareceu. E as imagens de resistência e as memórias-afeto do cinema psicodélico dos anos 70, nos filmes Sem Destino e Perdidos na Noite, contribuíram enormemente no exercício de captura do movimento urbano na sociedade industrial pela pintura contemporânea.
E as cenas incendiárias nas paisagens do Claustro, além de atualizar o simbolismo das fogueiras medievais, nutre-se do imaginário das labaredas espaciais, em filmes como Guerra nas Estrelas. O biombo tornado um claustro dentro do Claustro, que arde na ária do Juízo Final, parece a fornalha crematória do filme O Exterminador do Futuro.
O vigor e destreza na performance das figuras aladas ancestrais – em circulação nos espaços do Claustro – têm alto teor de contágio mitopoético, são “atratores estranhos” que magnetizam a atenção dos crentes e ateus pela sua força simbólica. Como o super-homem de Nietzsche e Umberto Eco, não envelhecem, não morrem e são dotados de poderes extraordinários; tudo o que os narcisistas do século XXI almejam. E, a sua característica mais notável incide sobre o seu poder de nos despertar a “vontade de voar”, uma mitologia não cessa de nos perseguir, estimulando o entusiasmo e a alegria de viver.
O poder simbólico das figuras aladas historicamente tem norteado as imagens na pintura e nos audiovisuais. Atrás de cada clichê se esconde um arquétipo.
O Dragão da maldade contra o Santo Guerreiro, migrou das fábulas do evangelho para o cinema alegórico de Gláuber Rocha, com toda a garra dos sobreviventes, do carcará ao Bacurau.
A imaginação criadora de Flávio Tavares é pródiga ao restaurar este simbolismo milenar, onde os personagens enfrentam os monstros, demônios e feras que aterrorizam a humanidade. Mas a polifonia de vozes que nos orienta, nos adverte que somos tod@s uma mescla dos vilões e heróis, deuses e monstros, belas e feras. E essa substância híbrida, fundamental para se entender a complexidade do humano “terrivelmente” humano, retorna à cena do acontecimento atual, na arquitetura plural e heterodoxa do Claustro.
Dos meses cinzentos, às cores de Almodóvar
Há uma vibrante alquimia de cores, matizes, tonalidades, texturas, luzes e sombras, na produção da visualidade forjada pelo pintor. Ele captura a atenção do público pela ativação de percepção sensorial e tecnologia sensível, com alto poder de subversão. Mas, os seus produtos funcionam – também – esteticamente de maneira similar ao modo de produção estética dos filmes de Almodóvar, onde se sabe o momento de abolir os tons neutros, amenos, insípidos, inodoros, e quando lançar mão de uma cartela de cores berrantes, fortes contrastes e viva luminosidade.
Flávio Tavares acertou na aposta de realizar a difícil arte de pintar o inferno em perspectiva cinematográfica. Atualizou uma singular representação das imagens-feras em movimento, capturando a atenção das audiências informadas pela mediação eletrônica. Chistes a parte, foi a primeira vez que pintou o diabo e não o fez antes porque tinha medo.
O Mestre conta de uma viagem à Guiana Francesa, onde encontrou um militar, um homem da lei, espécie tosca de caçador, vil matador e colecionador de cabeças de animais. De tal lembrança sinistra, o artista teceu a sua imagem-denúncia dos predadores, empenhado em um modo de arte ecológica em defesa da fauna. Projeto de superação da face sinistra da nossa era terminal. De modo involuntário, o artista enfrentou o simbolismo letal do antropoceno, no contexto pictórico, na ária espaço-temporal do Juízo Final.
Eis uma marca do avanço na sua ética-estética, em sintonia com o apelo ao desarmamento. Logo, o Claustro funciona também como um alerta em defesa da sobrevivência dos humanos e outros animais em extinção.
Na sua dramatização, os troféus de caça são signos da barbárie nas derrapagens e fraturas da civilização. Exemplos de triste memória são as vaquejadas no Nordeste e os rodeios em Barretos, S. Paulo.
Quase se ouve O Grito desesperado dos indígenas trancafiados. Eis uma tradução alegórica que aponta a barbárie e violência, numa era duplamente afetada simultaneamente pela pandemia e regime de exceção. Aqui a referência mais direta é a condição desumana de sobrevivência das comunidades indígenas na Amazônia, sob a égide cruel do agronegócio. Uma história de terror, “enquanto a boiada passa”.
O pintor usa e abusa da metalinguagem visual, focando o claustro que engole outro claustro. Os índios trancafiados representados na alegoria do Claustro traduzem um protesto libertário, ampliando a consciência crítica para o problema do ambientalismo, crise ecológica, extermínio dos povos autóctones. O Claustro é libertário como o Teatro do Oprimido (Augusto Boal) e Pedagogia da Autonomia (Paulo Freire). Flávio Tavares, como Ailton Krenak, lança “idéias para adiar o fim do mundo”.
Logo, há uma dimensão utópica na arquitetura do Claustro. A obra recusa a visão apocalíptica que mira o cenário atual pelo prisma da distopia. Atento e vigilante, Flávio Tavares não fecha os olhos à tragédia nacional, às falcatruas dos empresários e trapaças da privataria política, e desafina o “coro dos contentes” na crítica da imbecilidade geral.
A fera que habita em mim saúda a fera que habita em você
Os deuses e diabos se agitam nos pequenos detalhes dos quadros que compõem o extenso painel. Dito isso, convém resgatar o daimon de Sócrates, pequeno demônio sorrateiro, similar ao gênio árabe, que atua como um “gênio pessoal”, atraindo boas vibrações para o seu amo. O pensador Edgar Morin, do alto dos seus 100 anos, guarda em seu currículo o instigante livro Meus Demônios (1994), tratando das suas influências intelectuais, mas sobretudo, da significação dos “demônios” como gestores na felicidade da criação e encorajadores da “vontade de se jogar na vida de cabeça feita”.
Os Cavaleiros do Apocalipse migram do Evangelho de São João para o céu sombrio na obra O Claustro. Como arquétipos da devastação, encarnam o imaginário da destruição, figuras pálidas, contornos enfumaçados. Na tela, a memória de uma cidadela da Espanha, assolada pela epidemia, onde morreram em torno de 50 milhões de pessoas.
Mirando o Claustro percebemos a beleza nas ruínas das cidades devastadas. Os corpos parecem cair, mas flutuam no espaço. A tela exalta a beleza do corpo feminino, das figuras voadoras que atravessam as labaredas. As mulheres flanam no ar, atravessando o fogo sem queimar o corpo. Há, no ambiente das cidades, em 2021, um clima pesado, um perfume de fim de mundo, mas a emanação estética da obra refina a sensibilidade para algo além do débil conceito de “novo normal”, uma experiência original no mundo vivido.
A invenção do diabo que Deus abençoou
Há ideias que dão certo desde a fase do primeiro insight. A confiança na estratégia eficaz de uso da piada sábia, destravada e bem-humorada. A homenagem à memória de Corrinha Mendes, rainha do Bloco do Cafuçu, deu certo porque ela tinha a graça e o escracho de Gargantua e Pantagruel. As onomatopeias e peripécias de O Vau da Sarapalha, a peça de teatro mais popular da Paraíba (de Luiz Carlos Vasconcelos), inspirou a inclusão de atores como Nanego Lira, no carnaval do Claustro. Sendo o Rei Momo espaçoso, a alegoria se estende até a vizinha terra do frevo, no Maracatu Rural e Galo da Madrugada. A carnavalização é uma chave-mestra na imagética-conceitual e na engenharia do Projeto Claustro, “uma invenção do diabo que Deus abençoou”.
Da mirada nos abismos sociais ao êxtase dionisíaco, o fraco se faz forte no instante eterno de subversão das regras do mundo diurno. O Claustro mostra, o outro lado “da vida como ela é” (parodiando Nelson Rodrigues), com tudo o que isto carrega de vitalidade e destruição. O Claustro é um espaço da dramatização cuja ossatura simbólica se estende às dimensões social e cósmica, logo acolhe várias interpretações do mundo. Por exemplo, pelo prisma do Tarô, o Louco carnavalesco pode assimilar as emanações radiosas do Mundo, despencar da Torre Fulminada ou tropeçar nas cordas do Enforcado.
O ethos que funda o carnaval brasileiro é complexo, ao mesmo tempo abismático e violento, mas alegre, orgiástico e transcendental. Um registro memorialístico do Brasil não poderia prescindir da nossa alegoria mais rebelde e vitalista; o carnaval é um modo de catarse. Desde 2020, o maior espetáculo da terra se tornou inviável, pois não dá para celebrar a “festa da carne” sem a parte orgânica, física e material da humanidade.
Na cidade de carne e pedra surgiu o espectro indesejável de Pandora, de cuja caixa se espalhou a pandemia e a disseminação dos males no mundo; os cavaleiros do Apocalipse, a guerra, a fome, a peste e a morte, invadiram a cena pública. Mas, restou a Estrela da Esperança no fundo da Caixa de Pandora. O espírito carnavalesco é sábio, habita a casa do Louco, é vizinho do Mago e tem a astúcia do Diabo. Essa complexa situação é bem assimilada pelo lado sociólogo de Flávio Tavares (UFPB, anos 70) e projetada com todas as tintas no “mural” do Claustro.
A Chama de uma Vela para o Dead Alive que não quer morrer
Face ao “mundo assombrado pelos demônios”, o Claustro é um bálsamo revigorador, que vem sob a forma de uma estética alegórica, antropofágica, carnavalesca. E assim, revela uma “verdade seduzida” do Brasil, com todos os matizes do “carnaval no futebol das religiões” (como diria o Mestre anarco-tropicalista Jomard Muniz de Britto).
A referência básica na quarta parte do Fim do Mundo, deveria ser o elogio a Osvald de Andrade e ao dramaturgo José Celso Martinez Correa, o “eterno Rei da Vela”, mas é só um pretexto, por mais genial que seja a analogia. Com efeito, há outros vilões a serem desmanchados pelo pintor, no seu caldo corrosivo de solvente, benzina e água raz.
Tavares desmancha a forma engessada do político profissional, através da carnavalização e desmantela a empáfia do “ridículo político” (segundo Márcia Tiburi).
São impagáveis as imagens do Ministro da Economia travestido de Carmem Miranda e a figuração absurda da delirante “Dadá da Goiabeira”, Ministra dos Direitos Humanos. Numa carnavalização mais ácida, o autor exibe o cortejo sinistro dos filhos do “gabinete do ódio”.
No palco, a cena inclui “faca da mentira” e as imagens disformes do rebanho agrotóxico, como pano de fundo; tudo isso parece saltar da macabra tela O Juízo Final, de Bosch. E, seguindo o empenho libertário do Claustro, a instalação da obra de Tarsila do Amaral (Abaporu) sinaliza um retorno às raízes do Brasil com as conexões ligadas. Sua agressiva tropicalidade nos orienta na escura noite da cultura brasileira, quando quase nada nos resta, em tempos de offshore & paraísos fiscais.
Cada época tem seu espírito do tempo e cada segmento social acredita num tipo de orientação místico-religioso. Os filmes O Pagador de Promessas e Tenda dos Milagres problematizam o mito do sincretismo religioso e suas modulações no imaginário ficcional nordestino. Jorge Amado reconhece a importância da magia e do sobrenatural na estrutura imaginária das crenças e identidades culturais, como o Mestre Muniz Sodré.
A imagem-luto da vela acesa no pires à mão do “inominável” significa uma emanação remota das crenças pagãs, primitivas, que se hibridizam, mas atua antes como um mote para os orixás, informando que o cliente já pode ser levado para outro plano.
Falando em mortificação, as vaias nas ruas e nas redes sociais são um tipo de cancelamento moral, que não se realiza pela via jurídica, nem político-partidária, mas pelo recurso do riso subversivo capaz de derrubar exércitos.
De olho na tragicômica farsa política nacional, o Claustro refaz a trilha dos Carnavais, malandros e heróis (Roberto Da Matta). O quarto tempo da Ópera é quase uma peça do Teatro-Oficina por onde desfila um séquito de feras humanas e animais ferozes numa exposição de barbaridades. A propósito, Flávio Tavares comenta, entre o riso e o siso, as estranhas metamorfoses em que há “gente com cara de bicho” (algo jocoso e engraçado), mas há também “bicho com cara de gente” (algo aterrador e abominável).
A simbologia da barca, crucial no Teatro de Gil Vicente, vem duplicada no arremate final da obra: a Barca do Bem e a Barca do Inferno fixam imagens da travessia que envolve a trajetória humana. Arquétipo que se espalha na cultura de massa nos filmes Arca de Noé, Nau dos Insensatos, Titanic e La Nave Va. A referência lembra a frase acerca da COVID e o contágio social: “não estamos todos no mesmo barco”.
Na Barca do Bem, irradiam-se as formas elementares da vida religiosa, nos verdes anos da infância e adolescência. Mas aqui ganham matizes carnavalescos. O bispo, o santo eletrônico, freiras e beatas interagem com os querubins e anjos da guarda, adornados por aves do paraíso, cisnes e pavões. No quadro, as imagens da Terra sem Mal, condensam a extensão da vida imaginada na infância, onde o circo aglutina o fascínio e o encantamento, o lúdico, o fantástico e o sensual, como flashes ligeiros de felicidade.
Sob o signo do feminino: amor, beleza e sensualidade no jardim da
infância
A encenação da infância contempla com extrema delicadeza as primeiras percepções, afetos e lembranças acerca do amor, da beleza e da sensualidade. No quadro da infância, três figuras ocupam os espaços da cena: a mãe, a avó, a tia. Encarnações da Imperatriz, da Sacerdotisa e da Temperança são imagens poderosas que emanam imagens-afetos de elevação, altivez e equilíbrio, instâncias vitais na formação do jovem, face às novas descobertas, conquistas e realizações.
E, nessa intrincada rede de afetos, desejos e perturbações do jovem, irrompe a figura sensual do feminino. Uma imagem de mulher é flagrada pelo olhar fotográfico do artista. Imponente, bonita, elegante e envolvida pelas cores de um grande pavão (análogo ao Cisne de Leda) que se exibe envolvendo a sua figura (ícone supremo da vaidade). Ela segura um gatinho branco no colo e contempla obstinadamente sua própria imagem no espelho. Na imaginação da infância a dama está à esquerda da matriarca, mas não se olham, não se falam. Inspirada em personagem real, de temperamento forte, gerou indisposições. Sabe-se também que despertou ciúmes no marido, João Minervino, tio do artista. Este, um homem de negócios, encarna a imagem do coronel, teve certa influência na formação do menino, e terminou se suicidando. Vários elementos (a árvore, a cobra, a maçã) remetem à zona simbólica do desejo, em que Eros e Thanatos, o sagrado e o profano, o alto celestial e o baixo material, as feras e belas se misturam e invadem a dramatização imagética das desordens amorosas.
O trabalho do artista resplandece no elogio da beleza do corpo feminino, sendo uma temática que confere extrema beleza, vigor e elegância ao conjunto da sua obra.
A figura da espanhola, fixada no Barco da Alegria, é importante; sabe-se que se envolveu em casos passionais e de adultério, marcantes na formação afetivo-sentimental do jovem pintor. Tudo isso se projeta, como cenas da dramaturgia. É importante notar a participação do autor na produção de vários cenários de teatro. Aliás, O Claustro tem as características da encenação dramatúrgica, onde se vê o palco, a plateia, vasto auditório, amplas cortinas, infinitas poltronas. O Claustro consiste numa grande peça dramatúrgica.
Resumo da Ópera
O Claustro ▪ Uma reflexão para a vida póspandemia
O Claustro ▪ Uma reflexão para a vida póspandemia
Quando se abrem as portas de acesso ao ambiente do Claustro. A visão é estonteante, algo de tirar o fôlego. Tudo ali parece hiperbólico, gigante, extenso, profundo, multidimensional. Último grito do neobarroco (diria Calabrese). Grande diversidade de mundos, como se fossem países, cidades, aldeias, comunidades de verdade que se encaixam e desencaixam (quase como um filme surrealista).
Há vertiginosas verticalidades, múltiplos níveis altura, larguras imensuráveis, espaços que se sobrepõem em várias camadas e temporalidades. Mas o traçado é claramente neoclássico. Há, no conjunto, uma evidência paradoxal: ruínas do passado, distopia do presente e umhorizonte fechado, e aparentemente sem perspectiva de futuro (algo como o “anjo de Paul Klee”, estudado por Walter Benjamin).
Longas escadas, degraus, subidas e descidas intermináveis, como se voltassem sempre para o mesmo lugar (efeito labirinto de Escher). Nos jogos de espelhos, reflexos de imagens refratadas, o Mesmo é abalado pela presença do Outro, que interpela e perturba. Sintomas flagrantes da vontade ancestral de vidência e de evidência.
Arquitetura magistral, multifacetada, em cujo desenho se configuram estranhos templos, monumentos, habitações, povoados e edificações. Territórios, localidades e regiões cuja proximidade seria impossível numa geografia de pensamento domesticada pelas convenções estéticas ortodoxas.
O Claustro consiste em fantástica ecologia comunicativa infestada demograficamente por uma multidão de personagens, cujos perfis se alternam entre o histórico e o ficcional, o angelical e o monstruoso, o virtuoso e o viciado. Por toda a parte, nas entranhas dos batimentos, nos interiores das residências, nos becos, fossos, fendas e lugares escuros, agitam-se figuras bizarras e sombrias. De saída, a intenção, projeto e realização da obra, em 2021, contraria os critérios non sense do fascismo que nos rodeia. Mas a obra está imune à fogueira da inquisição contemporânea: não pode ser acusada de “decadência, arte degenerada, equívoco ideológico”. Flávio Tavares, ex-estudante de sociologia sempre foi crítico, sofisticadamente provocador. Fez charges ácidas contra a ditadura nos jornais O Norte e Correio da Paraíba, sem grandes problemas com a censura.
O estilo do Claustro reconhece e respeita os cânones tradicionais da criação artística, mas assistematicamente, instala no contexto espaçotemporal, estético e filosófico do acontecimento uma série de micronarrativas que subvertem a ordem lógica da representação. Assim, a cosmogonia, ecossistema e nicho populacional do Claustro são instâncias extraordinárias, na medida em que ultrapassam todas as regras, os códigos normativos, as medidas convencionais. “Gente normal não tem nada de excepcional”.
Parafraseando o Foucault, de As Palavras e as Coisas (1966), tal circunstância só seria possível através de uma licença poética e uma imagética histórico-ficcional empenhada em desvendar as nervuras do real, através do acesso às zonas do impensável, o invisível, o indizível e o altamente improvável.
Então, talvez o Teatro do Absurdo seja uma chave interpretativa para acessarmos ao sentido dessa obra de cunho memorialista, emanada pela verve onírica e afetos complexos em que convivem o lúdico, o factual, o dado histórico e a ilusão especular. Nessa seara em que se mobilizam as sensações, emoções e sentimentos mistos de medo, raiva, indignação, revolta, luto, tristeza e melancolia.
O Claustro absorve, assimila, incorpora todas as reações diante de uma pandemia, que cruelmente tem tirado a vida de milhões de seres humanos, na cidade, no país e no globo terrestre. Logo, a poética subjacente à ética-estética da narrativa imagética do Claustro deixa transparecer uma estratégia de resposta aos tempos extremos em que se vive no ano de 2021. A obra libera vastas camadas emocionais, persuasivas e sedutoras, transformando o medo em coragem, a depressão em sensação de conforto, a sensibilidade sombria em súbito entusiasmo. Os sistemas sociais de resposta ao projeto Claustro já têm demonstrado inumeráveis expressões de adesão, cumplicidade, identificação, reconhecimento e gratidão, da parte da esfera pública.
Enfim, tudo isso poderia ser apenas uma mera estratégia de sobrevivência na zona de conforto doméstica, simples exercício de terapia ocupacional, esquema tácito de enfrentamento das adversidades, uma experiência vivencial em “estado de exceção”. Mas em despeito de todos os fundamentalismos de mercado, religião e fetiche tecnocrático, a substância estético-filosófica e imagético-comunicativa de que é feita o Claustro envolve obstinação, perseverança, investimento físico e intelectual.
Consiste, portanto, em um simbolismo poderoso, que forja o “mistério da conjunção”, graças à intuição do artista no ato da criação e a vontade de saber acerca dos gigantes transcendentais, como o milagre da vida e a experiência extrema da morte.
Uma consciência trágica que reconhece a dimensão de perigo, o horror da enfermidade e a eminência da “visita da velha senhora” (a morte), mas como na filosofia de Nietzsche, se coloca afirmativamente face às intempéries e diz sim à vida.
Na luta contra os afetos regressivos, contra as abominações estéticas, políticas, cognitivas que nos assolam, o Claustro deve ser visto como algo extraordinário, pela sua potência criativa, ousadia, originalidade, pelo insight (sacada) face às correntes alternantes do bem e do mal, pela coragem de “olhar nos olhos da tragédia”; um ritual de amor à vida, um libelo que saúda a espontaneidade das artes populares e invenções coletivas. Em suma, uma experiência de Iniciação.
Poderíamos, no interior do Claustro, seguir o percurso, como Dante acompanha Virgílio , mas esquecendo os versos lúgubres: “Vós que aqui entrais abandonais toda vossa esperança”. Após a jornada iniciática nos labirintos do Claustro, talvez a melhor imagem que traduza o nosso estado de espírito esteja na complexa visão de Noites de Cabíria (Fellini, 1957), cujo olhar da personagem, após o pranto, se ilumina em radiante claridade, e se joga de corpo e alma na Estrada da Vida.