Quem não conhece a tal de babosa? Cientificamente chama-se Aloe vera, uma espécie de folhagem pontiaguda e altamente suculenta. Cresce selvagem ou em jardins em terras tropicais e é muito cultivada para usos agrícolas, medicinais e para fins decorativos. Cresce também com sucesso dentro de casa em vasos, se houver boa luminosidade, mesmo indireta.
Consta-me que a babosa tem muitas aplicações junto ao público feminino: trata queda de cabelos, hidrata as madeixas de nossas beldades, elimina aquela incômoda farinha chamada caspa, remove maquiagem, combate a flacidez da pele de nossas balzaquianas e limpa as dobrinhas (vulgo rugas) de nossas senhorinhas.
Andei fazendo um composto a base de casca de banana, farinha de osso, carvão triturado, cinza tirada da churrasqueira e a poderosíssima babosa. Tive o cuidado de colocar antes a casca de banana com a babosa no liquidificador e depois acrescentar esse caldo aos demais componentes. Despejei a bruxaria nuns vasos e carreguei no pé de pitanga. Faz isso há uns dois meses. A pitangueira, mesmo estando plantada em um vaso, está uma boniteza, carregadinha, carregadinha. Mais uma semana e lá vou estar eu saboreando o acre doce dessas frutinhas abençoadas. Por isso tenho muito cuidado com minhas Aloes vera. Recebem regas regulares e estão plantadas num lugar muito especial de meu jardim. Parece-me aquele cantinho tem alguma magia. Uma força inexplicável que emerge daquele pedacinho de chão, adere às minhas babosas e essas quando requisitadas dão robustez e viço às minhas plantas.
Ali onde meus pés de babosa exibem toda essa pujança, descansa a uns quarenta centímetros, chão abaixo, Chimbica, uma criaturinha da melhor qualidade. Dia 6, desse mês de outubro da graça do Senhor, fez um ano que a bichinha recebeu o chamado de São Francisco de Assis e foi, tendo o santo como anfitrião, falar com Deus. Se é a minha Chimbica, está de prosa com o Criador. Sim, de conversa mesmo, pois essa danadinha se fazia entender por aqui.
Sabia pedir carinho e comida (gulosa que só). Dormia aos pés de minha cama, fingia estar em sono profundo, mas sabia identificar o som que denunciava de que alguém estava abrindo a geladeira. Pulava toda serelepe e ia reclamar o naco de alguma coisa. Gostava de frutas e de pitanga nem se fala.
Estando eu em casa, gostava de ficar perto de mim. Aqui de onde escrevo, era seu lugar preferido. Quantos dos meus textos produzi com sua cabecinha sobre meus pés. Reclamava se seu me levantasse.
Duas coisas, ou se preferirem, duas atividades, tinham sua preferência: passear de carro e ver o mar. No carro gostava de ficar entre a nuca de quem tivesse ao volante e o banco. Ficava ali toda cheia de pose sem se importar com desconforto do ou da motorista. Mas fazíamos esse gosto dela.
Já praia, era com ela mesma. Eram seus momentos de êxtase quando podia enfiar seu focinho onde as ondas perdiam suas forças e iam se desfazendo. Nesses momentos a linguagem corporal agitando a calda marrom com a pontinha branca,denunciava sua alacridade quando recebia aqueles bafejos quentes que sempre chegam de sudeste.
Chimbica era uma beagle, filha de Molie que havia cruzado com um cão de um jovem que hoje é deputado federal. Isso permite-me dizer que tinha sangue azul, pelo lado paterno e algumas raspas de burguesia pelo lado da mãe. Daí quem sabe a origem de sua altivez. Era muito cheia de pose nossa Chimbica.
Mas de uns anos para cá sua saúde foi declinando. Duas cirurgias e depois da segunda se constatou que o câncer era mais forte que ela. Dura a convivência nos últimos dois meses. Era uma espera dolorosa quando o calendário denunciava um dia menos, menos um, menos outro e a vida de Chimbica ia se encurtando. Mesmo assim à tardinha gostava de sair à rua para ver seus dois parceirinhos, Lucas e Matheus, vizinhos aqui de casa.
Numa dessas tardes, os garotinhos haviam saído com os pais, ela foi até o portão deles, latiu um pouquinho e ao entender inúteis seus chamamentos, retornou, Aquilo nos comoveu e resolvemos dar a volta de carro que ela tanto gostava. Fomos. Ela no colo de minha filha e assim que viu o mar pendeu a cabecinha e nos deixou. Embrulhamos seu corpinho e colocamos numa caixa de presentes, a mais bonita que tínhamos em casa. Escolhemos um cantinho do jardim para que ela dormisse seu último e definitivo sono.
Meu pé de pitanga está carregado, é minha danadinha, por sua vez enchendo energia meu pé de babosa. Dali sai a gororoba que reforço o vaso de minha pitangueira. A safra vai ser boa, vai faltar Chimbica ali comigo. Mas sabem de uma coisa? Algo me diz que ela estará por ali. É isso aí minha garotinha. Obrigado por ter existido.