Domingo passado, após o almoço, fui, como de hábito, fazer a sesta no terraço de casa, contemplar o meu álacre jardim, enquanto degustava uma deliciosa sobremesa. Uma cenazinha pacata do cotidiano, mas, como nos lembra o poético Yasujiro Ozu, “a rotina tem seu encanto”.
Pois logo o encanto foi quebrado. Vinda de uma das casas vizinhas, uma música alta tomou conta da tarde.
Eu disse música? Foi por falta de outro termo. O que chegou aos meus pobres ouvidos, ferindo-os impiedosamente, não tinha melodia, nem ritmo, nem harmonia, e a letra, mal cantada por uma voz feia, era um amontoado de vulgaridades.
Em linguagem prosaica, contava a situação de um marmanjo que tenta convencer a ex-namorada a deixar o fulaninho atual e voltar pra ele. E se seguia uma série de argumentos, todos de natureza estrita e explicitamente sexuais. Não cito todos, que não vale a pena, mas o mais supostamente convincente era o de que “ele não chupa direito”. (sic).
Não sou afeito a moralismos e não é da temática que me ressinto, e sim, do tratamento chulo dado, e do mau gosto que, como já disse, se estende à música (?) toda.
Como nós todos sabemos, o erotismo, a sensualidade, o desejo não estão ausentes da música popular brasileira. Sempre brotaram sem problemas e foram bem-vindos, sobretudo se expressos com adequação, beleza, e, se possível, sentido poético.
Basta lembrar certas canções, como “O Meu Amor” de Chico Buarque (“meu corpo é testemunha do bem que ele me faz”), ou “Esse cara” de Caetano (“ele é o homem / eu sou apenas uma mulher”), ou “Os seus botões” de Roberto Carlos (“Nos lençóis macios, amantes se dão, travesseiros soltos, roupas pelo chão...”) ou então, muito mais pra trás, “Da Cor do Pecado” de Sílvio Caldas, com letra de Bororó: “Esse corpo moreno, cheiroso e gostoso que você tem / é um corpo delgado da cor do pecado, que faz tão bem...” Porém, que diferença! Nem faz sentido comparar.
E o mais drástico é pensar que a música (?) que estragou minha sesta dominical não é coisa isolada, nem episódica. Como somos obrigados a constatar nestes nossos tempos insípidos, ela é só mais um sujo detalhe no mar de lama musical que assola o país inteiro.
Não sou da área, nem sequer melófilo me considero, mas um mero ouvinte comum, porém, uma pergunta que há muitos anos me persegue é: o que aconteceu com a MPB, com a chegada do novo milênio? Por que as pessoas com um mínimo de bom gosto musical estão, hoje em dia, inevitavelmente condenadas a sentir – expressão do Ruy Castro - saudades do Século XX?
Ao mencionar os cantores e músicas do passado, posso estar dando a impressão de que tudo era maravilhoso naquela época. Não era. Havia música de ótima qualidade e música de má qualidade, lado a lado. E nenhuma das duas era hegemônica.
O que não entendo hoje é por que é que a baixa qualidade tem que ser hegemônica. Como não sou do ramo, deixo a questão para os entendidos. Sílvio Osias que nos acuda.
Pessoalmente, acho desolador esse quadro atual – que, por conta própria, chamo de lama musical – e quando penso nele fico triste. Não consigo deixar de me alarmar, ao considerar que é essa lama musical que está chegando aos ouvidos das crianças e jovens de hoje e que é essa lama que, certamente, formará seu gosto.
Em tom de consolo, um amigo ou outro me assegura que há, por aí, muita gente boa fazendo música boa e que, apenas, essa música boa não encontra espaço nos meios de divulgação, simplesmente porque a maioria das pessoas só gosta da música do meu vizinho.
E, assim, continuo desconsolado...
Para voltar ao domingo passado no meu terraço, o barulho lamacento – ou a lama barulhenta - vindo da vizinhança fez com que, feito um caramujo, me recolhesse ao meu quarto, onde fui lavar os ouvidos com um pouco dos deliciosos dramas amorosos do velho Lupicínio Rodrigues, outra rotina encantada a cujo luxo costumo me dar.