A esperança é um sentimento que transcende o ser humano, e também se manifesta entre os animais. É a sensação de possível realização de que algo agradável vai tornar a acontecer. Portanto, sempre representa a sensação de que algo bom irá novamente ocorrer conosco.
É um nobre sentimento. Está representado em todas as culturas, sob a forma de estátuas, quadros, ícones. É tão nobre que se tornou antropônimo dado a muitas das nossas meninas ao nascerem.
Em frente ao Santuário de Bom Jesus do Monte, na cidade de Braga, Portugal, existe uma belíssima escadaria.
Ela é composta por três lances. O primeiro é o Escadório do Pórtico, e compreende a fachada da própria Basílica.
O segundo é o Escadório dos Cinco Sentidos: as fontes da Visão, da Audição, do Tato, do Olfato e do Paladar. Todas as fontes jorram água. No terceiro Escadório, das Três Virtudes, encontramos as Fontes da Fé, da Esperança e da Caridade.
A Fonte da Esperança, caracterizada por uma Arca de Noé sob a qual escorre a água, apresenta em latim as palavras “Arca na qual se salvaram almas”, e as esculturas de duas crianças: a Confiança e a Glória.
O complexo desce por 116 metros até a base do monte, compondo uma estrutura arquitetônica de rara beleza.
Mas Esperança é um sentimento que pode ser realmente encontrado em diversos contextos. Principalmente em situações adversas, como num regime de exceção.
Profundo erro de avaliação: mal chegava a incomodar o temível aparelho policial, criado para reprimir qualquer tentativa de resistência. O desfecho, como era inevitável, foi trágico para valorosos brasileiros e suas famílias, muitos dos quais pagaram com a própria vida pela ousadia de enfrentar a ditadura, geralmente de forma cruel, torturados até a morte, sendo até eviscerados.
Muitos inocentes também sofreram perseguição e foram assassinados na cadeia, casos do jornalista Wladimir Herzog e do operário Mário Fiel Filho, torturados e assassinados quando estavam presos sem culpa nenhuma.
Profundos sentimentos se instalaram na mente do brasileiro, então. Medo, angústia e esperança predominaram. Muitos desses sentimentos foram manifestados em músicas, desafiando a censura imposta pelos ditadores.
Chico Buarque foi quem mais produziu sentimentos cantantes que traduziam a alma do brasileiro. Com ele, Milton Nascimento, João Bosco e Aldir Blanc, Ivan Lins. Lembro-me bem de clássicos, como O Bêbado e a Equilibrista, Geni , Vai Passar, Cálice.
Menos comum entre sambistas, canções de protesto também podem ser encontradas no meio deles. É o caso de Juízo Final, canção do compositor Nelson Cavaquinho.
Crescido no meio de músicos, Nelson recebeu o apelido, Cavaquinho, pela maneira peculiar de tocar o instrumento: com apenas dois dedos. Trabalhando como pedreiro, compôs a sua primeira música, o choro Queda. Como não podia pagar seu próprio instrumento, pedia sempre emprestado dos outros. Então ganhou um cavaquinho que lhe foi presenteado por um jardineiro português chamado Ventura.
Em 1931 casou-se na delegacia, onde fora levado pelo pai da moça, com a jovem Alice Neves. Com ela teve quatro filhos. Ingressado pelo sogro na Cavalaria da Polícia Militar, patrulhava o Morro da Mangueira montado no seu cavalo Vovô.
Lá no Morro da Mangueira fez amizade com os sambistas Carlos Cachaça e Zé Com Fome. Certo dia conheceu Cartola na Quadra da Mangueira. Depois que Vovô voltou sozinho para o Batalhão, Nelson foi preso mais uma vez. Aliás, ficar detido devido à boemia tornou-se tão corriqueiro que ele comentou: “Eu ia tantas vezes em cana que já estava até me acostumando com o xadrez. Era tranqüilo, ficava lá compondo. Entre as músicas que fiz no xadrez está 'Entre a cruz e a espada'“.
No ano de 1938, antes de ser expulso da corporação, conseguiu dar baixa da Policia Militar. Separado da esposa e dos filhos, mudou-se definitivamente para o Morro da Mangueira, onde pôde dedicar-se à música e à boemia. Vício do tempo em que foi cavaquinista na juventude, ele também tocava violão de forma esquisita, usando apenas dois dedos.
Nos anos 1960 conheceu Durvalina, 30 anos mais nova, com quem viveu até falecer em 18 de fevereiro de 1986.
Segundo Silvio Osias, que é uma verdadeira enciclopédia musical, Nelson Cavaquinho compôs mais de quatrocentas músicas. Porém só gravou dois LPs: Série Documento, de 1972, pelo Selo RCA. E Nelson Cavaquinho, de 1973, pela Odeon.
A letra impressiona pela força, e revela a preocupação dos seus autores com o Brasil daquele momento: quando viu tanto horror, iniqüidade, tomar conta do Brasil político, em Juízo Final Nelson Cavaquinho exprime a esperança de que a semente do mal, a serpente que deixou o ovo em 1968, seja queimada. Que a luz do sol brilhe no coração dos brasileiros. E que o amor vença, e seja eterno novamente, pois um dia havia deixado de sê-lo. Vale a pena ouvi-la e acompanhá-la:
Juízo Final
Nelson Cavaquinho ▪ Élcio Soares
O sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações
O mal será queimada a semente
O amor será eterno novamente
É o juízo final
A história do bem e do mal
Quero ter olhos pra ver
A maldade desaparecer
É o juízo final
A história do bem e do mal
Quero ter olhos pra ver
A maldade desaparecer
O sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações
O mal será queimada a semente
O amor será eterno novamente
O amor será eterno novamente
O amor será eterno novamente
Olhando hoje em torno, tanto horror e iniqüidade manifestando-se, dá vontade de fazer surgir brilhante, entre nuvens flutuantes, um enorme Zeppelin. É quando vemos que os versos de Juízo Final estão se tornando atualizados como não se via desde a redemocratização há pouco mais de três décadas, despertando o sentimento nacional da esperança de que a semente, o ovo da serpente, seja queimada antes que ela nasça.