I Minha terra é uma ilusão da linguagem. Tenho de meu esse rastilho de palavras que pressinto atadas aos calcanhares. Se o d...

Balada dos ossos

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I
Minha terra é uma ilusão da linguagem. Tenho de meu esse rastilho de palavras que pressinto atadas aos calcanhares. Se o desfaço, perde-se o encantamento das vivências cerzidas. Sei que as mãos ensaiam obscenidades entre dois espelhos. Quero mesmo criar algumas reentrâncias na estrutura dos olhares. Mas olhos extraviados não ardem no lugar comum em que me perco...
II
Os espaços se desdobram, esticam-se oferecidos; e vão se alinhavando, precisos, retocando com lembranças o reto da vida.
III
Dou conta de minhas cicatrizes; e são bem humanas: com cheiro de menstruação e defunto. Para os crentes, desejo o reino dos Céus. Para mim, a realidade. Sou um desencontrado; Não me cabem subterfúgios.
IV
Percorro com a língua as bordas adocicadas do infinito. (açucar na taça de marguerita) Diz o psicanalista: “É necessária a subjetivação da morte” (Os antigos fechavam com açúcar a borda das feridas)
V
Se olho assim, olhar meio cerrado,– é por ser minha a culpa do peito rasgado. Essa substância que me escorre, lambo-a entre os dedos. Distribuo-a, porque é farta.
VI
Para compartilhar a loucura, tem-se que guardar em segredo a penúria dos instintos que avassalam a alma. A loucura atordoa, é inventiva demais...
VII
Mas, na manhã do despertar do espírito, assim, obsequioso, fui entrando nas casas. E todos desviaram de mim o olhar. Surgi lento diante dos portais, quando os primeiros raios oblíquos da manhã não ousavam passar do peitoril das janelas. E a ausência de luz no interior das moradas, fez maior o impacto daquele que se (anunciava).
VIII
Raios de sol escorriam-me pela face onde já adormecera o orvalho que trazia da madrugada fria. De súbito, toda a luz esfacelou-se. Um olhar sem temor, fez calar os poucos que ensaiaram dizer de sua objeção à minha presença, assim, tão cedo, e sem convite.
IX
A sobrevivência de certos espíritos depende da discrição dos gestos. E, por ter deixado de acreditar na cautela do silêncio, fui derramando a língua sobre os móveis da sala onde os moradores, perplexos, mantinham-se sentados. As palavras me enchiam a boca; e se as tentasse calar, era possível ver as protuberâncias que a fala contida criava ao serpentear em meu rosto. Sentia-se o arrebatamento do grito arremessado.
X
Dormir é distrair-se do mundo Jorge Luiz Borges - Onde não estive custa-me adivinhar trevas. A imprecisão do escuro não reveste nem meus sonhos. Sou um companheiro da morte.
XI
- É necessário não prescindir da loucura. Ser, quem sabe, um contrapeso à tensão da corda. Quem estabelece o limite, além de nós mesmos? Se o absoluto sentido foi encomendado nas véspera da chegada do Verbo, passou batido por minhas mãos e espalhou-se ruidoso pelos cantos do mundo.
XII
- Certa é a incerteza. É a dúvida uma potência guardada a sete chaves. E o que se pede é a aniquilação do momento, da pungência do instante, do renascimento à cada aurora.
XIII
- Resta um agora diluído em cada desejo. Nada basta aos nômades nas areias das praias. (estão sempre paranóicos com a perseguição do crepúsculo dominical) Alguns, querem ser criança para picotar os limites. Outros, urgem pelo calabouço.
XIV
Uns, tinham o silêncio como adorno – sinal de impossibilidade de aproximação. Já os outros, desmentiam tudo, inclusive a malícia da boca cerrada.
XV
As têmporas fervilham na iminência do instante. Todo calor disperso, coagulou, condensou, no que se costuma chamar alma. (Um ar quente, de paradoxal leveza, pairava impenetrável aos bons pensamentos.) Nos dias quentes certas idéias são indissolúveis...
XVI
Olhos extraviados não ardem no lugar comum em que me perco... Falei da irrelevância relativa da existência. Aqueceram-se do calafrio com velas. (As sombras, somadas, ocuparam todo lugar no espelho). Custou-me entender que não se deve revirar prateleiras alheias, desmantelar espaços, desarranjar a ordem estabelecida para a vida. Mas também, que besteira!... Não se compartilha o fundilho rasgado para morder o rabo!
XVII
Para tudo existe um peso, uma medida e uma visão distorcida.
XVIII
Olhos extraviados não ardem no lugar comum em que me perco... E veio a tempestade... As nuvens escorrendo na janela arrastando a sombra cansada de meu corpo. Distante dos seres obtusos, com seus relógios na testa, desapontado, decidi partir com o rastejante silêncio das últimas águas. Logo estarei distante, para não sentir o impacto do adeus.
XIX
Meu punhal tem duas faces: a que brota e a que geme.
XX
Podia terminar assim – recuado – o eu dentro de mim. Licenciosa... a mosca verde já contorna o corpo fendido. Nada se justifica no corpo perdido. Nem mesmo a morte. Vejo minha terra Com olhar de bumerangue. Resolvi ficar!... Descobri o propósito dos cantos empoeirados.
XXI
Entre uma lufada e outra do vento os dias fizeram-se esquecer... E o necessário descaso entorpeceu o seifador de palavras. O tempo mostrou-se tolerante com minha impaciência.
XXII
Não se ruminam os sonhos. Eles se costuram e crescem...
XXIII
Todas tentações deixadas no passado – e insistiram em benzer minhas cinzas com água benta. Desconhecem que após a morte não brotam incertezas. Foi a última chance de jogar meu corpo no lugar comum das dúvidas.
XXIV
Trago interrompidas as melhores frases. As paredes ignoram os versos de festim esparramados no reboco. Aguardam o amálgama do sol que de tão alentado, não chega.
XXV
Eis a introdução não escrita. Alijada da obra. Pensá-la, virou um hábito de reinicio; pausa no entreposto das suposições. Passado? Mas os tomates podres são de um vermelho tão sincero...
XXVI
Dentre todos os vermelhos com que me deparo frente a vastidão das janelas abertas, eu cá fico com o vermelho liso sobre o qual deslizo por esse entardecer.
XXVII
Vou sair na noite e me travestir de amenidades. Desenhar na névoa elefantes com trombas sonoras, zebras com listras de estrelas, casais gozando em seus fuscas falantes, de faróis de neblina iludindo o passeio dos guaiamus. Sentarei a meia-distância de lugar algum e gritarei seu nome em vão. E então amanhecerá, e me despedirei da aurora.

▪ Poema do livro “Os ossos da baleia” – Prêmio Secult, Espírito Santo

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  1. Já fiz resenhas de vários livros de Jorge Elias Neto. A identificação com sua poesia me levou a conhecê-lo pessoalmente no festival de cinema de Vitória, em 2012, com o filme Era uma vez eu, Verônica – do Marcelo Gomes - , em que eu fazia o pai da protagonista, vivida por Hermila Guedes. Temos em comum, entre outras coisas, a veneração ao mestre do idioma, José Augusto Carvalho – também do Espírito Santo. Agora mesmo, ao rever estes versos de Jorge Elias,
    “Para os crentes,
    desejo o reino dos Céus.
    Para mim,
    a realidade”,
    pensei que teria sido pertinente tê-los como epígrafe de meu novo livro – “1/6 de Laranjas Mecânicas, Bananas de Dinamite”. Jorge Elias tem dessas grandes sacadas sobre as quais se passa geralmente desatento. Como esta outra, que parece completar os dois primeiros versos acima:
    “Não se ruminam os sonhos.
    Eles se costuram
    e crescem...”
    Cardiologista, a profissão dele, na “vida real” me lembra a de outro grande poeta contemporâneo, José Eduardo Degrazia, oftalmologista. O gaúcho, especialista da visão. Ele, do coração. Talvez venha do bisturi, esta outra anotação que igualmente vai fundo:

    “Meu punhal tem duas faces:
    a que brota
    e a que geme.”
    É bom, muito bom, reencontrá-lo neste espaço nobre do Germano Romero.

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