Da janela do meu apartamento, vejo o quintal da casa lá embaixo. Largada, ao lado da churrasqueira, uma pequena bicicleta. Sob uma árvore, uma mesa, na qual repousa um chapéu branco, possivelmente tricotado, de abas largas, ao lado de um par de luvas de cozinha. Próxima à mesa, uma antiga cadeira de balanço. Não conheço as pessoas que moram na casa, e, vistos assim, sem pertencimento, esses objetos não transcendem sua condição material, genérica; vale dizer: carecem da singularidade que só uma pessoa (um “dono”) a quem pertencessem lhes doaria. Tautologicamente: esses objetos, como os vejo agora, não passam de objetos.
Se aquele chapéu e aquelas luvas fossem de minha tia, que, com seus acepipes e sua alegria, sempre deu um sabor de festa a tantos anos de churrasco, certamente o chapéu e as luvas não seriam chapéu e luvas quaisquer, meros objetos: eles teriam uma face: neles, eu veria minha tia, e meu coração recordaria risos, cheiros e sabores ao vê-los abandonados num quintal vazio.
E se a cadeira fosse de meu avô, que não perdia um churrasco, menos pela mesa, que pouco o alimentava, do que pelos receptivos ouvidos de que tanto precisava para desfiar suas inúmeras histórias? Certamente, aquela cadeira estaria balançando sozinha e contando histórias que nunca teriam fim.
E fosse de meu netinho, aquela bicicletinha estaria girando sem parar em torno da pequena piscina, trazendo de volta o repetido sobressalto dominical ao meu coração, porque eu estaria temendo que meu netinho, na sua velocidade, despencasse na piscina.
Por outro lado, mesmo sendo singularizados pelo traço do pertencimento, se não houvesse um olhar para resgatar as pessoas à sombra daqueles objetos, aqueles objetos e aquelas pessoas o que seriam, além do nítido nulo?
Essas ligeiras observações ocorreram-me após uma longa conversa que tive com Fernando Pessoa. Depois de me falar sobre alguns mistérios da vida, alguns de seus sonhos, de seus impedimentos, de suas tantas incertezas e sobre a metafísica do chocolate, Pessoa convidou-me a debruçar-me, com ele, à janela de seu quarto, para observar a Tabacaria, lá embaixo, e me mostrar o Esteves sem metafísica. Depois, apontando para o Dono da Tabacaria, que chegava à porta e ajeitava a tabuleta da Tabacaria, Pessoa me disse:
“Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.”
Não satisfeito, Fernando ainda soprou-me ao ouvido:
“E vou escrever esta história para provar que sou sublime.”
P.S. Vale a pena conversar com Pessoa.