... até que um ator "chegue" ao personagem
Há exatos vinte anos, eu, com 60, ao me ver prestes a participar — sob o sol do sertão ao redor de Monteiro, a 300 km de João Pessoa — das filmagens do curta A Canga, de Marcus Vilar, baseado em trecho de meu livro com o mesmo nome, senti que o velho e sedentário escritor burguês tinha que se preparar... fisicamente... para ser o ancião camponês acostumado ao trabalho duro do arado e enxada.
No autorretrato que fiz a partir de uma das chamadas fotos de still – fotografias feitas, do elenco, para que se garanta continuidade dos figurinos, adereços, penteados e maquiagens – a cargo de nosso grande fotógrafo, que é o Gustavo Moura —,
Arte W. J. Solha
Éramos eu (que fazia o filho rebelde / Everaldo Pontes na versão de Marcus), Altemir Garcia (falecido em 2019, fazia o irmão doido / depois Servílio de Holanda), Lucy Camelo (que fazia a mãe / depois Zezita Matos) e Anunciada Fernandes (que vivia a grávida / depois Verônica Cavalcanti), todos capitaneados pelo célebre folclorista Tenente Lucena (falecido em 1985), no papel que eu viria a fazer 30 anos depois.
OK. Foi disso que me lembrei quando, antes de fazer essa pose do autorretrato para o Gustavo Moura, me apresentei ao Marcus, lá em Monteiro, devidamente preparado para entrar em cena, e o vi me dizer: “Tá muito clean!”, ao que me baixei, enchi as mãos com a terra quente e solta do semiárido e me “banhei” com ela. Marcus riu quando me reergui. Disse-me: “Ótimo! Todo mundo vai fazer a mesma coisa”.
Arte W. J. Solha
— Pare-pare-pare! — pedi ao motorista. E fui ao cabra, propondo a troca das minhas roupas pelas dele, tal como na história de Aladim, em que são oferecidas lâmpadas novas em troca de velhas, a fim de que se encontre a que é... mágica. O homem topou na hora.
Foram cinco dias inesquecíveis, os das filmagens. Ao fim do derradeiro, quando me vi no espelho do banheiro de meu quarto no hotel, senti pena daquele ser humano que iria deixar de existir com meu banho.