Tudo, ou quase tudo, é possível na poesia. Do hermetismo ao prosaísmo. Da metafísica ao pragmatismo. Liberdade é o que não falta, desde que não se dilua a essência do poema.
Macro e microscopicamente imensurável, a poesia atinge nas Letras a amplitude e diversidade criativa semelhante ao que se consegue na Música. Mesmo sem discordar da professora Ângela Bezerra de Castro, para quem “só a música supera a poesia”, hei de considerar a dificuldade em estimar os limites da beleza em ambas. Ou até de separar uma da outra.
Macro e microscopicamente imensurável, a poesia atinge nas Letras a amplitude e diversidade criativa semelhante ao que se consegue na Música. Mesmo sem discordar da professora Ângela Bezerra de Castro, para quem “só a música supera a poesia”, hei de considerar a dificuldade em estimar os limites da beleza em ambas. Ou até de separar uma da outra.
A propósito, é notável a densidade poética, simultaneamente concisa e frondosa, nada frugal, que existe em Sérgio de Castro Pinto. Sobretudo nos pequenos grandes poemas. Um poeta que lapida com inebriante e aristotélica habilidade a linguagem capaz de produzir, sem perdas nem sobras, o reflexo mais cristalino do que pretende. E justamente naquilo que aparenta ser sutilmente lacônico, ou até abstrato, está lá, no âmago, a mais perfeita e burilada compleição da ideia.
Longe de saber fazer crítica literária, falo como sinto o que me diz a emoção diante de obras bem limadas. Assim como a música faz-se-me escrita, tão logo escutada, com a mesma sensação. Afinal, não seria esse o fim de tudo o que é poesia ou melodia?
No poema “Caranguejo”, a arquitetura emblemática e protetora da intimidade visceral do bichinho é logo definida na referência lustrosa e metálica como “capuz medieval”. E o caráter pugnaz de sua postura sempre armada é também muito bem lembrado no início.
Do busto guardião e compacto do curioso crustáceo, salta o par de olhos vivos, atentos, espertos, “em riste”. Nada como um “estojo” definiria a perfeição com que se encaixam em sua cavidade ocular, moldada com capricho no “elmo do guerreiro medievo”.
A sugestiva “miopia”, envidraçada por suposta e opaca “cegueira”, é desafio vencido pela destreza sincronizada deste andejo que tateia os caminhos com a delicadeza das pontiagudas oito pernas. Tanto lhe faz direita como esquerda. Passeia indiferente sem saber que o mundo é dos “destros sapiens”.
A sugerida “dialética” animal, inclusive gastronômica, se estende na imaginação do leitor pelas “controvérsias” de seu habitat, modo e meios de vida, ora destros, ora canhotos, ora carne, ora osso e quiçá até “barroco”. Lá vem de novo a arquitetura da carcaça, indubitavelmente barroca. Que riqueza!
De vivenda emersa ou submersa, tem o dom de se virar na lama, no mar, terra ou mangue, com igual aptidão. “Ser ou não ser”, ver-se ou esconder-se, tudo isso Sérgio viu. E como viu.
Decerto na brincadeira hamletiana estaria a grande ameaça de um dia ser extinto o jocoso caranguejo. E virar “radiografia” de um bicho “acuado”, amedrontado, assustado.
E quem viu radiografia de pulmão ou de costela, sabe bem que seu desenho lembra muito o “esqueleto” do crustáceo apreciado. Talvez findo em museu, pintado em raio x, o bichinho arquivado restará sequer citado por esta humanidade incapaz de ver poesia numa lua sobre o rio, que dirá no caranguejo, ou na prosa de um Sérgio…
Enquanto isso, eis o poema em sua plenitude:
O caranguejo
elmo de um guerreiro medievo. estojo de um par de olhos em riste como dois dedos míopes, quase cegos, tateando pelo avesso um mundo destro. ser dialético, canhoto, osso e carne, bicho barroco, vive entre o ser e o não ser. em terra firme, no mangue ou no mar alto, radiografia de um esqueleto acuado.
elmo de um guerreiro medievo. estojo de um par de olhos em riste como dois dedos míopes, quase cegos, tateando pelo avesso um mundo destro. ser dialético, canhoto, osso e carne, bicho barroco, vive entre o ser e o não ser. em terra firme, no mangue ou no mar alto, radiografia de um esqueleto acuado.