O soneto “Apóstrofe à Carne”, publicado em Outras Poesias, é um dos que bem exemplificam a estética dissonante e segmentada de Augusto dos Anjos. Nesse poema estão presentes alguns dos tópicos relevantes de sua obra – como o sentimento da morte próxima, a antevisão da própria decomposição física, o julgamento negativo e moral da carne (sexual e perecível) em confronto com o espírito, o desconforto com a hereditariedade (cujo veículo – a conjunção carnal – o eu lírico rejeita). Eis o texto, que a seguir brevemente apreciamos:
Na primeira estrofe, a segmentação evidencia-se em imagens que traduzem a ruína do corpo enquanto objeto de decomposição. O pressentimento do fim não ocorre ao eu poético como um temor vago, ligado ao mistério do que pode vir depois, e sim como uma expectativa concreta da dissociação física. Daí que o horror apareça materializado, tangível, pois o próprio ato de “pegar na carne do rosto” é que prenuncia, ou deixa implícito, o destino da matéria.
Ressalte-se que a iminência agônica do fim advém não apenas dos órgãos referidos no terceiro e no quarto versos – olhos, diafragmas –, mas também da própria enunciação verbal, no presente (“eu pego”), que sugere a ação provisória, momentânea, de alguém fadado a morrer. Auscultando a própria carne perecível, com a qual se confunde, o eu lírico “sabe” que morre com ela. O horror acentua-se na medida em que “olhos” e “diafragmas” não aparecem apenas como restos, partes de um corpo já desfeito, mas como objetos de um processo destrutivo. E concorre para acentuar a dinâmica destrutiva dos vermes, com os quais as vísceras se confundem (formando tudo um “húmus necrófago”), o uso dos verbos “estraçalhar” (no presente do indicativo) e “decompor” (no gerúndio).
Na segunda estrofe, em que se verifica a transição do eu (primeiro verso da primeira estrofe) para o Homem (primeiro verso da segunda), a dimensão individual cede lugar à coletiva (embora essa individualidade já estivesse comprometida pela referência, no plural, a “diafragmas”). À angústia particular do eu lírico, defrontado com o temor concreto da morte, sucede a referência ao homem como um todo, ou seja, à própria espécie humana. Esse processo de converter o “eu” em “nós” é comum em Augusto dos Anjos; ele confirma a amplitude do seu lirismo, que não se confina a temas pessoais, e reflete uma das obsessões mais caras ao poeta: a obsessão de, enquanto indivíduo, converter-se em arauto dos sofrimentos do grupo e, sobretudo, em instrumento regenerador da espécie humana. Liga-se ao seu desejo de ser Cristo para redimir o homem decaído.
A segunda quadra do soneto é, pois, homóloga à primeira, dela se distinguindo pelo tratamento mais geral dado à perspectiva da morte. Considerado não mais em sua individualidade, o Homem é concebido como uma antítese biopsicoquímica em que uma parte “negra e heteróclita” alberga (e colide com) outra “alva e luminosa” – tudo se submetendo, de igual modo, à evidência da dissociação. A “mortalha” referida no terceiro verso envolve o sombrio e o grandioso, o físico e o psíquico. Harmonizando-se com o caráter genérico da segunda estrofe, o espólio humano não é mais anatômico, material (como na primeira, em que se fala de olhos e diafragmas); está representado pelos órgãos dos sentidos enquanto abstrata capacidade sensorial, os quais aparecem segmentados, em sequência assindética, no último verso (“O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!”). Vê-se, pois, que nessa quadra a antítese e o assíndeto são procedimentos retóricos que intensificam o efeito dissonante.
No primeiro e no segundo tercetos realiza-se a apóstrofe à carne de que fala o título. O eu lírico contrapõe à efemeridade da vida a certeza da morte, sentida como deterioração da matéria. A antítese não é propriamente entre a vida e a morte, mas entre a carne e a podridão. A primeira, percebida em seus transitórios lampejos de sensualidade, representa-se expressionisticamente por meio da aliteração (“flâmeo fogo efêmero” - 10o verso) e da metáfora com matiz hiperbólico (“A dardejar relampejantes brilhos” - 11o verso ). Já a podridão, na última estrofe, aparece como o irônico e paradoxal destino do homem votado ao prazer. É significativa a equação que se estabelece, no verso penúltimo, entre a podridão e a herança; esta supõe o “genesíaco prazer” (pois o sexo é que propicia a hereditariedade), sendo por isso alvo do desprezo do eu poético.
O vocábulo “podridão” é palavra-chave no poema e deve ser entendido para além do seu sentido comum. Ele não se refere apenas à deterioração do corpo, ou melhor, não diz respeito apenas à decomposição material. Na visão de uma consciência culpada e melancólica como a de Augusto dos Anjos, esse termo alude sobretudo à mancha, ao legado vicioso que o homem transmite aos seus filhos. Nisso reside, como se sabe, o núcleo do pecado original, que supõe uma Falta, na origem, a qual se transmite por hereditariedade. Ou seja: supõe uma transgressão, perpetrada por nossos primeiros pais, na qual todos acabamos implicados e para cuja propagação todos concorremos.
O traço de podridão/perversão a que se resume a herança é enfatizado, no primeiro verso do primeiro terceto, pelo uso do vocábulo “bastardas” aplicado a “mônadas” (de que a carne é um “feixe”). Enquanto marca de uma filiação ilegítima, a bastardia define metaforicamente o caráter transgressivo de uma espécie que se rebelou contra a Natureza – designada em outro poema de Augusto dos Anjos como “madrasta”, por antítese a “mãe”.
O “Eu e outras poesias” admite várias leituras. O essencial é saber vê-lo antes de tudo como um livro de poesia, ou seja, como um acervo de fonemas, vocábulos e imagens cujo compromisso é primeiro com a expressividade e com a beleza. Em uma palavra: com a Arte. A despeito das interpretações que se venham a dar dessa obra, continuará impressionando pelos séculos vindouros a forma como, nela, o debate intelectual de uma época serviu à expressão radical, vigorosa e intensa de um sentimento e de um conflito pessoais.
Quando eu pego nas carnes de meu rosto,
Pressinto o fim da orgânica batalha:
– Olhos que o húmus necrófago estraçalha
Diafragmas, decompondo-se, ao sol-posto...
E o Homem – negro e heteróclito composto,
Onde a alva flama psíquica trabalha,
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!
Carne, feixe de mônadas bastardas,
Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,
Dói-me ver, muito embora a alma te acenda,
Em tua podridão a herança horrenda
Que eu tenho de deixar para meus filhos!
Na primeira estrofe, a segmentação evidencia-se em imagens que traduzem a ruína do corpo enquanto objeto de decomposição. O pressentimento do fim não ocorre ao eu poético como um temor vago, ligado ao mistério do que pode vir depois, e sim como uma expectativa concreta da dissociação física. Daí que o horror apareça materializado, tangível, pois o próprio ato de “pegar na carne do rosto” é que prenuncia, ou deixa implícito, o destino da matéria.
Ressalte-se que a iminência agônica do fim advém não apenas dos órgãos referidos no terceiro e no quarto versos – olhos, diafragmas –, mas também da própria enunciação verbal, no presente (“eu pego”), que sugere a ação provisória, momentânea, de alguém fadado a morrer. Auscultando a própria carne perecível, com a qual se confunde, o eu lírico “sabe” que morre com ela. O horror acentua-se na medida em que “olhos” e “diafragmas” não aparecem apenas como restos, partes de um corpo já desfeito, mas como objetos de um processo destrutivo. E concorre para acentuar a dinâmica destrutiva dos vermes, com os quais as vísceras se confundem (formando tudo um “húmus necrófago”), o uso dos verbos “estraçalhar” (no presente do indicativo) e “decompor” (no gerúndio).
Na segunda estrofe, em que se verifica a transição do eu (primeiro verso da primeira estrofe) para o Homem (primeiro verso da segunda), a dimensão individual cede lugar à coletiva (embora essa individualidade já estivesse comprometida pela referência, no plural, a “diafragmas”). À angústia particular do eu lírico, defrontado com o temor concreto da morte, sucede a referência ao homem como um todo, ou seja, à própria espécie humana. Esse processo de converter o “eu” em “nós” é comum em Augusto dos Anjos; ele confirma a amplitude do seu lirismo, que não se confina a temas pessoais, e reflete uma das obsessões mais caras ao poeta: a obsessão de, enquanto indivíduo, converter-se em arauto dos sofrimentos do grupo e, sobretudo, em instrumento regenerador da espécie humana. Liga-se ao seu desejo de ser Cristo para redimir o homem decaído.
A segunda quadra do soneto é, pois, homóloga à primeira, dela se distinguindo pelo tratamento mais geral dado à perspectiva da morte. Considerado não mais em sua individualidade, o Homem é concebido como uma antítese biopsicoquímica em que uma parte “negra e heteróclita” alberga (e colide com) outra “alva e luminosa” – tudo se submetendo, de igual modo, à evidência da dissociação. A “mortalha” referida no terceiro verso envolve o sombrio e o grandioso, o físico e o psíquico. Harmonizando-se com o caráter genérico da segunda estrofe, o espólio humano não é mais anatômico, material (como na primeira, em que se fala de olhos e diafragmas); está representado pelos órgãos dos sentidos enquanto abstrata capacidade sensorial, os quais aparecem segmentados, em sequência assindética, no último verso (“O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!”). Vê-se, pois, que nessa quadra a antítese e o assíndeto são procedimentos retóricos que intensificam o efeito dissonante.
No primeiro e no segundo tercetos realiza-se a apóstrofe à carne de que fala o título. O eu lírico contrapõe à efemeridade da vida a certeza da morte, sentida como deterioração da matéria. A antítese não é propriamente entre a vida e a morte, mas entre a carne e a podridão. A primeira, percebida em seus transitórios lampejos de sensualidade, representa-se expressionisticamente por meio da aliteração (“flâmeo fogo efêmero” - 10o verso) e da metáfora com matiz hiperbólico (“A dardejar relampejantes brilhos” - 11o verso ). Já a podridão, na última estrofe, aparece como o irônico e paradoxal destino do homem votado ao prazer. É significativa a equação que se estabelece, no verso penúltimo, entre a podridão e a herança; esta supõe o “genesíaco prazer” (pois o sexo é que propicia a hereditariedade), sendo por isso alvo do desprezo do eu poético.
O vocábulo “podridão” é palavra-chave no poema e deve ser entendido para além do seu sentido comum. Ele não se refere apenas à deterioração do corpo, ou melhor, não diz respeito apenas à decomposição material. Na visão de uma consciência culpada e melancólica como a de Augusto dos Anjos, esse termo alude sobretudo à mancha, ao legado vicioso que o homem transmite aos seus filhos. Nisso reside, como se sabe, o núcleo do pecado original, que supõe uma Falta, na origem, a qual se transmite por hereditariedade. Ou seja: supõe uma transgressão, perpetrada por nossos primeiros pais, na qual todos acabamos implicados e para cuja propagação todos concorremos.
O traço de podridão/perversão a que se resume a herança é enfatizado, no primeiro verso do primeiro terceto, pelo uso do vocábulo “bastardas” aplicado a “mônadas” (de que a carne é um “feixe”). Enquanto marca de uma filiação ilegítima, a bastardia define metaforicamente o caráter transgressivo de uma espécie que se rebelou contra a Natureza – designada em outro poema de Augusto dos Anjos como “madrasta”, por antítese a “mãe”.
O “Eu e outras poesias” admite várias leituras. O essencial é saber vê-lo antes de tudo como um livro de poesia, ou seja, como um acervo de fonemas, vocábulos e imagens cujo compromisso é primeiro com a expressividade e com a beleza. Em uma palavra: com a Arte. A despeito das interpretações que se venham a dar dessa obra, continuará impressionando pelos séculos vindouros a forma como, nela, o debate intelectual de uma época serviu à expressão radical, vigorosa e intensa de um sentimento e de um conflito pessoais.