Restou-me de alguma leitura uma frase que, como a água do pote a que se refere, parece-me inesgotável. A frase de duas linhas sugere a viagem de quem foi e nunca deixou de ser esperado. E com dureza de itacoatiara não larga minha memória:
“A jarra está com a mesma e igual porção que ele deixou quando partiu, há mais de meio século.”
A ela vem juntar-se o parecer de um velho advogado da antiga amizade que me vendo chegar e sentar a seu lado, no lugar e hora de sempre, em tempos da sede central do Cabo Branco, tentou me adivinhar: “Você ri como defesa, para se enganar, mas o banzo é seu natural”. Ficávamos na calçada do clube, sob uma empanada que encobria a visão inquisitorial da Misericórdia. Já aposentado, doutor Jeremias Maurício de Sena mantinha lugar cativo entre os convivas, sempre reservado, ouvindo uma hora para falar um minuto. Eu ainda moço, sem escola formal, era atraído pela sabedoria menos despretensiosa daquele amigo velho. Sabedoria da lei e da vida.
Ocorreu-me a lembrança de seu nome, de sua cadeira preciosa e do clima de que nunca me livrei, ao dobrar, nesse domingo, a esquina da Academia e sair medindo os passos pela Rua Direita, a segunda em idade e sempre a primeira no meu itinerário de vida e de espírito. Ali, trechos adiante, consegui meu primeiro trabalho; ali firmei os passos de marujo de primeira viagem. Ali fui revisor nas folgas e férias dos outros até chegar a vez da carteira assinada. Ali me fiz repórter e, numa emergência, escrivão de polícia. Ali, num prédio romano sem mais a águia que pousava na cúpula, cheguei a secretário do jornal, designado por Octacílio de Queiroz, único posto que alcancei com gosto de verdadeira felicidade.
Numa das casas parede-meias da Duque de Caxias senti, pela primeira vez, a cidade em seu acolhimento. Ganhei a intimidade de dona Maroca Sobral e de seu Bertino do Carmo Lima, pais do mais influente dos companheiros de leitura que a sorte me oferecia, Geraldo Sobral. Com ele, penetrei sua casa, participei de sua mesa e me vi chamado de “nego”. E pela primeira e única vez vi com meus olhos uma versão francesa de O Capital como leitura de rede de alguém que não pintava ser intelectual.
Domingo à tarde, ninguém na rua, eu sozinho, os olhos no que resta do copacabana das nossas calçadas, e as janelas, desde as do professor José Baptista de Mello, do Cruzeiro até o clube, com o povoamento da minha saudade. No segundo trecho, onde restam dois velhos sobrados que ilustram a sociologia urbana de Juarez da Gama Batista, uma ferida enorme de parede me detém. Ruiu a caliça do reboco e a do século entranhado lá dentro rebenta avermelhada e viva do tijolo. Viva como se estivesse saindo agora da caieira em fogo para as mãos do pedreiro de Gama e Melo ou de Augusto dos Anjos.
Rua imortal esta, já bem antes da Academia de Letras. Se eu voltasse no tempo com a cabeça que tenho hoje, iria pregar-me à porta da prefeitura, fazer greve de fome, água só para molhar o grito, até conseguir que o prefeito mobilizasse seus poderes para restaurar dois ou três sobrados de linhas históricas, proibir carro e calçar de pedra bem polida essa nossa Rua Direita.
Para o prédio do clube não pegar fogo, como ia pegando, instalaria os cibernéticos que fazem a festa de hoje ou a festa que faziam o xadrez, o gamão, a dama, atrativos sem pecado do ócio de ontem.