Capítulo I
Espreitando o espírito iluminado de Gonzaga Rodrigues, lendo a sua bela crônica sobre a Rua Direita, agressivamente chamada pelos ignaros extemporâneos de Duque de Caxias, e por todos aqueles que ignoram a dimensão secular das ruas da Parahyba de então. Rua Direita que na memória fisiográfica “urbana” sempre foi, e para os que têm a dimensão sentimental desta cidade, ela, sempre será a artéria que secularmente irrigou com alegria a nevralgia do centro desta cidade.
O escrito do Neguinho Gonzaga me aguçou o desejo de dedilhar e rever os meus passos na infância e na juventude sublimando cada passo, e em cada olhar, revi e vivi com felicidade a Rua Direita. Ela era um dos meus apreciados endereços afetivos.
A minha caminhada reluzindo da memória, começou no Cruzeiro do pátio de São Francisco onde com dificuldades nos meus dez anos tentava escalar aquele monumento. Era o terreiro de Quincas Brito, com quem batia pelada com ele, Castanha e Péricles Ombreira. O adro da Igreja, as largas calçadas da Rua Nova, a quadra do Lins de Vasconcelos era o nosso chão onde proliferavam grandes topadas.
A memória me conduziu em lentos passos a rever o belo casario, iniciando pela Academia de Letras que pertenceu a recatadas professoras da família Mesquita. Olhando a margem direita, fiquei imaginando Orlandinho, e Maria Santiago née Cavalcanti, esta uma das mais belas donzelas da minha geração. Tinha cabelos pretos e sedosos como as asas da craúna vide Iracema a virgem dos lábios de mel. Ao lado da casa deles, havia morado o Juiz Maurício Furtado, pai de Celso.
Pude ainda sentir ressoando os chamamentos das minhas tias Lucila e Bernadete: "Franz — era o meu apelido —, sai da rua menino". Desobediente prossegui e me postei diante da casa do Professor José de Mello e D. Maria que abrigavam, entre muitos filhos, o grande e valoroso Humberto, e, entre outros, Gilson, o Caveira, Heraldo e Celso. Educadas e recatadas, pude ver os vultos de Maria Lúcia e Maria Helena. A grande e serena Maria Lúcia que sempre percorreu a sua trajetória humana, como médica e mulher com a grandeza de um ser superior. A minha queridíssima Comadre, que se casou com meu primo Carlinhos, e que me concederam esta honraria muitos anos depois.
Andava espionando as casas, apenas ouvia as risadas e as brincadeiras, das quais eu sempre participava com os pupilos de Waldemar e Ivanda Nunes do Rego, pais de Leninha, Francisco Eduardo, o Babinha, Ani e Leonor. Na primeira esquina dava para sentir o halo do brilho e da beleza de Selda Rolim, irmãzinha do inteligente e bem comportado varão Sergio Rolim. A casa dos avós deles, em sua sala, ostentava uma rara beleza ornamental do forro de madeira finamente lavrada no estilo neoclássico.
ESQ ▪ Os irmãos Selda e Sérgio, com os pais, Zuleida Rolim e Francisco Mendonça.
Fonte: livro "O Caçador de Lagostas", de Sérgio Rolim Mendonça.
DIR ▪ A casa do avô, Romulado Rolim, na Rua Direita.
Fonte: livro "O Caçador de Lagostas", de Sérgio Rolim Mendonça.
DIR ▪ A casa do avô, Romulado Rolim, na Rua Direita.
Prosseguindo no lado direito, me acomodando, passei a recordar apenas os apelidos que começaram fluir à margem da residência de Seu Ciro, dono da loja o Faqueiro, que sabia ser o esconderijo de Xaréu e Albacora, e de Ciro, o seu filho mais velho.
Na sequência, não me contive em observar as moradas de Lúcio, Pé de Valsa, e a sua bela irmã Lucinha. Ali em frente, estava o Armarinho de Seu Viana, que nervosamente irritadiço nos atendia
A memória me vaticinou a fazer o reconhecimento dos múltiplos personagens pelos apelidos, muito dos quais foram irreverentemente gestadosno Pio X e nas peladas. Foram os casos de Marcelo Piola, Catabi, Catapora e Catapeba os gordinhos que não economizavam os sapatos Clarks chutando as pontas de calçadas. Vizinho de Roberto Peru, era a Casa de Eudoro Chaves. O apelido Peru viera de cenas cômicas do Pio X, em que ele secundava o velhinho Irmão Anastácio que cuidava de um criação de muitos perus.
Passando pelo Beco da Companhia de Comércio PB/PE que existira no século XIX, e que desembocaria na Maçonaria da Rua Nova. Em seguida divisava a Chefatura de Polícia com o seu repelente camburão, uma Chevrolet preta 1948, da RP, a rádio pancada, guardada repressivamente por Balbino, um policial que não hesitava em invocar o seu bastão de borracha. Ele era terror dos incipientes delinquentes. Balbino respeitava apenas Newton Borges — amigo de meu pai —, que valentemente o surrara na calçada-bar do Cabo Branco. Perto dali, podiam-se ouvir os gritos abafados que vinham dos confessionários. Reinava o Capitão Belmont.
Defronte à Chefatura, estava a Praça Rio Branco, que frequentava assiduamente lá trabalhavam na bela agência dos Correios a minha mãe e a minha tia Bernadete. Passava timidamente pelo suspeito bar do Camonge, cujo dono era deficiente de um olho, frequentado pelos pés de cana, que bebericavam, e tinham por parede um caldo de ovo de boi que era propagandeado numa lousa – Caldo de colhões. À frente ficava o Foto Stuckert, onde podia se divisar Guilherme, que secundava o pai.
Ao lado da Polícia, e sob a sua proteção, se homiziava ordeiramente uma figura com singular nome de Luiz de Marillac, casarão que abrigava também a escola de datilografia de D. Alzira, minha professora, que não hesitou em me dizer: Meu filho vá fazer outra coisa, faz uma semana e você não consegue passar do a s d f g, o primeiro exercício. Você será sempre dedógrafo. Revoltado, fui embora... semi-desmoralizado.
Capítulo II
No lado direito da Rua Direita a curiosidade me empurrava para ver as bacanas se lapidando pelas mãos de D. Edith, a cabelereira mais famosa da cidade. Vizinha estava a redação do Jornal O NORTE. Nunca adentrei, mas ouvia os sonidos tipográficos. Quase em frente estava a Farmácia do Seu Teixeira, que era vizinha ao Restaurante Lido muito frequentado pelo meu pai, amigo que era do Coronel Fialho, e de Inácio Pedrosa, os donos, sempre atenciosamente atendidos pelo garçom Cobrinha.
Conhecia e frequentava muito o Cine Rex, com um porteiro intransigente Seu Etelvino, que nos tangia para não entrar nos filmes interditados para os menores de 14 anos. Era insuportável e repugnante a sua vigilância. Era muito difícil ludibriar. Só conseguíamos quando ele ia ao banheiro. Não conseguiu segurar a enxurrada de fãs quando foi exibido O Balanço das Horas – Rock Around the Clock com Billy Halley e seus Cometas nos idos de 1958. Pararam a sessão, e chamaram a polícia tamanha era a algaravia e alucinação destruindo muitas cadeiras do Rex. Ia às sessões matinais, aplaudia Fumanchu, e fazia um escambo de Gibis. Os mais cotados eram os heróis Rock Lane, Roy Rogers, Hopalong Cassidy e Jesse James.
Em frente ao Salão, estava o Restaurante Flórida, de Zezé Laet, vizinho ficava a Sinuca de Seu Salú, onde íamos goderar e espionar os jogos dos outros. Mais atraente era ir à Casa dos Frios do alemão, Seu Ernesto, pai de Gasolina e Erica, meus colegas de Pio X. Era permitido que tomássemos um chope com ovos cozidos coloridos. Em seguida, íamos para o bar de Forzinho, num beco transversal à Rua Direita.
Mais adiante, podia se avistar a Escola Underwood, que abrigava Tartaruga, sobrinho da dona do estabelecimento. A escola era chamada, de modo insultante e irreverente, de Cabaré de Osmarina... Havia ainda a livraria de Nólo Pereira: a Casa do Estudante.
Foto Antônio David Diniz
A Rua Direita assomou as minhas lembranças à conta da enorme influência de Gonzaga Rodrigues, e me fez mergulhar nas minhas infantis e adolescentes andanças. Fui só, queria muito ter tido o prazer de rastrear o Neguinho ao meu lado. A rua sempre abrigou uma fase muito feliz. Ela foi o início da longa e tortuosa estrada que percorri na vida.
Se a memória me acenou para voltar à Rua Direita, devo dizer que o Neguinho Gonzaga, sem o saber, me empurrou e me deu o prazer de lhe dedicar esta crônica desembalada. Gostaria de tê-lo tido ao meu lado, mão no ombro, o querido Gonzaguinha. Fiz o meu itinerário sozinho, recorrendo, aqui e acolá, às luzes de Humberto Mello.
Merci, Gonzaguinha
A Rua Direita — a de ontem, não mais a devastada de hoje — foi o principal berço viário de uma vida jovem semeada de aventuras e brincadeiras, e inicio de muitas amizades e paixões carbonárias.