Capítulo I
Espreitando o espírito iluminado de Gonzaga Rodrigues, lendo a sua bela crônica sobre a Rua Direita, agressivamente chamada pelos ignaros extemporâneos de Duque de Caxias, e por todos aqueles que ignoram a dimensão secular das ruas da Parahyba de então. Rua Direita que na memória fisiográfica “urbana” sempre foi, e para os que têm a dimensão sentimental desta cidade, ela, sempre será a artéria que secularmente irrigou com alegria a nevralgia do centro desta cidade.
O escrito do Neguinho Gonzaga me aguçou o desejo de dedilhar e rever os meus passos na infância e na juventude sublimando cada passo, e em cada olhar, revi e vivi com felicidade a Rua Direita. Ela era um dos meus apreciados endereços afetivos. A rua dos meus avós, dos amigos da infância e adolescência. A rua da primeira paixão aos 13 anos em que os hormônios despertaram para o sentido de um amor ainda infantil. Declarei-me timidamente: você quer ser a minha namorada? Ela fez um afirmativo e discreto e lindo sorriso. Não passamos desta mise em scène sem palco e sem atos. O tempo nunca esmaeceu aquele primeiro amor.
A minha caminhada reluzindo da memória, começou no Cruzeiro do pátio de São Francisco onde com dificuldades nos meus dez anos tentava escalar aquele monumento. Era o terreiro de Quincas Brito, com quem batia pelada com ele, Castanha e Péricles Ombreira. O adro da Igreja, as largas calçadas da Rua Nova, a quadra do Lins de Vasconcelos era o nosso chão onde proliferavam grandes topadas.
A memória me conduziu em lentos passos a rever o belo casario, iniciando pela Academia de Letras que pertenceu a recatadas professoras da família Mesquita. Olhando a margem direita, fiquei imaginando Orlandinho, e Maria Santiago née Cavalcanti, esta uma das mais belas donzelas da minha geração. Tinha cabelos pretos e sedosos como as asas da craúna vide Iracema a virgem dos lábios de mel. Ao lado da casa deles, havia morado o Juiz Maurício Furtado, pai de Celso.
Ao lado, pude distinguir o casarão de Seu Sassá Norat que recolhia os travessos Hardman, Ives, Badu, Marquinhos e muitos outros filhos que faziam travessuras na vetusta rua. Os meus passos, se paralisaram diante da casa de meus avós Luiz e Carolina Lopes de Mendonça. Lembro-me de uma frondosa goiabeira na qual minha delicada e culta avó pendurava suas peneiras com passas de caju. Eu e os primos, especial Beto Oião dizimávamos sempre as suas sedutoras passas.
Pude ainda sentir ressoando os chamamentos das minhas tias Lucila e Bernadete: "Franz — era o meu apelido —, sai da rua menino". Desobediente prossegui e me postei diante da casa do Professor José de Mello e D. Maria que abrigavam, entre muitos filhos, o grande e valoroso Humberto, e, entre outros, Gilson, o Caveira, Heraldo e Celso. Educadas e recatadas, pude ver os vultos de Maria Lúcia e Maria Helena. A grande e serena Maria Lúcia que sempre percorreu a sua trajetória humana, como médica e mulher com a grandeza de um ser superior. A minha queridíssima Comadre, que se casou com meu primo Carlinhos, e que me concederam esta honraria muitos anos depois.
Mais à frente, a memória me reeditou as imagens infanto juvenis de Gabriel, Zé Elias, Chico e a formosa Ângela, todos os rebentos de Sr. José Metri. Nesta mansarda, residia também o meu estimado e atencioso professor de biologia Antônio Augusto de Arroxelas, a quem chamávamos jocosamente de espirilo.
Andava espionando as casas, apenas ouvia as risadas e as brincadeiras, das quais eu sempre participava com os pupilos de Waldemar e Ivanda Nunes do Rego, pais de Leninha, Francisco Eduardo, o Babinha, Ani e Leonor. Na primeira esquina dava para sentir o halo do brilho e da beleza de Selda Rolim, irmãzinha do inteligente e bem comportado varão Sergio Rolim. A casa dos avós deles, em sua sala, ostentava uma rara beleza ornamental do forro de madeira finamente lavrada no estilo neoclássico.
Do terraço de Ivanda sempre acenávamos para o Padre Juarez Batista, o nosso Juju, cabelos revoltos, e que ainda ajeitava a embaraçosa batina, sempre atrasado ia para a Catedral. Figura luminar, que quando descia a Rua Direita levava horas, proseando para chegar ao Ponto de Cem Réis. Era muito querido e admirado.
Prosseguindo no lado direito, me acomodando, passei a recordar apenas os apelidos que começaram fluir à margem da residência de Seu Ciro, dono da loja o Faqueiro, que sabia ser o esconderijo de Xaréu e Albacora, e de Ciro, o seu filho mais velho.
Na sequência, não me contive em observar as moradas de Lúcio, Pé de Valsa, e a sua bela irmã Lucinha. Ali em frente, estava o Armarinho de Seu Viana, que nervosamente irritadiço nos atendia quando íamos comprar bolas de gude e outras indefinidas bugigangas. Não ligávamos para o grau de insuportabilidade demonstrado ao nos atender sempre com o indisfarçado mau humor: "Vão querer o quê?"
A memória me vaticinou a fazer o reconhecimento dos múltiplos personagens pelos apelidos, muito dos quais foram irreverentemente gestadosno Pio X e nas peladas. Foram os casos de Marcelo Piola, Catabi, Catapora e Catapeba os gordinhos que não economizavam os sapatos Clarks chutando as pontas de calçadas. Vizinho de Roberto Peru, era a Casa de Eudoro Chaves. O apelido Peru viera de cenas cômicas do Pio X, em que ele secundava o velhinho Irmão Anastácio que cuidava de um criação de muitos perus.
Passando pelo Beco da Companhia de Comércio PB/PE que existira no século XIX, e que desembocaria na Maçonaria da Rua Nova. Em seguida divisava a Chefatura de Polícia com o seu repelente camburão, uma Chevrolet preta 1948, da RP, a rádio pancada, guardada repressivamente por Balbino, um policial que não hesitava em invocar o seu bastão de borracha. Ele era terror dos incipientes delinquentes. Balbino respeitava apenas Newton Borges — amigo de meu pai —, que valentemente o surrara na calçada-bar do Cabo Branco. Perto dali, podiam-se ouvir os gritos abafados que vinham dos confessionários. Reinava o Capitão Belmont.
Defronte à Chefatura, estava a Praça Rio Branco, que frequentava assiduamente lá trabalhavam na bela agência dos Correios a minha mãe e a minha tia Bernadete. Passava timidamente pelo suspeito bar do Camonge, cujo dono era deficiente de um olho, frequentado pelos pés de cana, que bebericavam, e tinham por parede um caldo de ovo de boi que era propagandeado numa lousa – Caldo de colhões. À frente ficava o Foto Stuckert, onde podia se divisar Guilherme, que secundava o pai.
Ao lado da Polícia, e sob a sua proteção, se homiziava ordeiramente uma figura com singular nome de Luiz de Marillac, casarão que abrigava também a escola de datilografia de D. Alzira, minha professora, que não hesitou em me dizer: Meu filho vá fazer outra coisa, faz uma semana e você não consegue passar do a s d f g, o primeiro exercício. Você será sempre dedógrafo. Revoltado, fui embora... semi-desmoralizado.
Capítulo II
No lado direito da Rua Direita a curiosidade me empurrava para ver as bacanas se lapidando pelas mãos de D. Edith, a cabelereira mais famosa da cidade. Vizinha estava a redação do Jornal O NORTE. Nunca adentrei, mas ouvia os sonidos tipográficos. Quase em frente estava a Farmácia do Seu Teixeira, que era vizinha ao Restaurante Lido muito frequentado pelo meu pai, amigo que era do Coronel Fialho, e de Inácio Pedrosa, os donos, sempre atenciosamente atendidos pelo garçom Cobrinha.
Na esquina da Rua Direita com o Beco da Misericórdia, estava a imponente sede do Cabo Branco, que com frequência ia ver os habitués do xadrez, lembrei-me de Yves Beach desafiando Chico Espínola, Arnaldo Tavares, ou Ivo Bichara, ameaçando sempre os concorrentes com seus xeque-mates. Era imbatível no relógio. Havia várias sinucas, mesas de jogos de baralhos onde foram destronados muita gente abonada, e o indefectível Pelé Tuxaua dos Índios de Mandacaru. Fazia um café irretocável. Sempre dava uma espiada nas vitrines da Livraria de Benevides em frente ao Cabo Branco. Na diminuta loja Seu Ciro, o Faqueiro fui presenteado pelo meu pai com uma linda capa de Gabardine, marrom clara, que me fez parecer um diletante imitador da extremada elegância de Humphrey Bogart.
Conhecia e frequentava muito o Cine Rex, com um porteiro intransigente Seu Etelvino, que nos tangia para não entrar nos filmes interditados para os menores de 14 anos. Era insuportável e repugnante a sua vigilância. Era muito difícil ludibriar. Só conseguíamos quando ele ia ao banheiro. Não conseguiu segurar a enxurrada de fãs quando foi exibido O Balanço das Horas – Rock Around the Clock com Billy Halley e seus Cometas nos idos de 1958. Pararam a sessão, e chamaram a polícia tamanha era a algaravia e alucinação destruindo muitas cadeiras do Rex. Ia às sessões matinais, aplaudia Fumanchu, e fazia um escambo de Gibis. Os mais cotados eram os heróis Rock Lane, Roy Rogers, Hopalong Cassidy e Jesse James.
O Salão João Mata, estava ao lado do Rex, e era dirigido pelo barbeiro Severino, que nos impunha cortes de cabelo à la Jack Deman, canastrão hollyoodiano no estilo zero de recruta. Um desastre agravado pelos selos que nos eram infligidos no colégio.
Em frente ao Salão, estava o Restaurante Flórida, de Zezé Laet, vizinho ficava a Sinuca de Seu Salú, onde íamos goderar e espionar os jogos dos outros. Mais atraente era ir à Casa dos Frios do alemão, Seu Ernesto, pai de Gasolina e Erica, meus colegas de Pio X. Era permitido que tomássemos um chope com ovos cozidos coloridos. Em seguida, íamos para o bar de Forzinho, num beco transversal à Rua Direita.
Ao desembocar no Ponto de Cem Réis com seus belos pavilhões art déco e um belo relógio ao centro, aguardávamos os bondes para ir até a Praça Dom Adauto, sendo impiedosamente perseguidos pelos cobradores. Ainda no Ponto de Cem Réis podíamos observar à distancia: o Bar Duas Américas, a Padaria de Seu Aranha, o Café Alvear, a loja de long-plays de Walmir dos Santos Lima, a Sorveteria Canadá no Paraíba Palace Hotel, de João Minervino. Na Praça de Táxi, eu procurava os taxistas Elias Teixeira, Zé Papagaio e Dionísio, para saber os rastros de meu pai, do qual eram amigos.
Ao subir a Rua Direita, em direção à Praça João Pessoa, destinava um olhar curioso em direção do Bar Querubim, e que era detentora de uma quadrinha irreverente: “Na Paraába existe coisa de admirar. Subindo é o Bar Querubim. Descendo é Quero Bimbar". Silva Jardim, Rua da Areia e Maciel Pinheiro eram os pontos de aterrissagem. Muito tempo depois entendi a inversão semântica.
Mais adiante, podia se avistar a Escola Underwood, que abrigava Tartaruga, sobrinho da dona do estabelecimento. A escola era chamada, de modo insultante e irreverente, de Cabaré de Osmarina... Havia ainda a livraria de Nólo Pereira: a Casa do Estudante. Em seguida — em nossa inesquecível perambulação, a consumir quase tudo que a memória permitiu —, a rua deságua na burocrática Praça João Pessoa.
A Rua Direita assomou as minhas lembranças à conta da enorme influência de Gonzaga Rodrigues, e me fez mergulhar nas minhas infantis e adolescentes andanças. Fui só, queria muito ter tido o prazer de rastrear o Neguinho ao meu lado. A rua sempre abrigou uma fase muito feliz. Ela foi o início da longa e tortuosa estrada que percorri na vida.
Se a memória me acenou para voltar à Rua Direita, devo dizer que o Neguinho Gonzaga, sem o saber, me empurrou e me deu o prazer de lhe dedicar esta crônica desembalada. Gostaria de tê-lo tido ao meu lado, mão no ombro, o querido Gonzaguinha. Fiz o meu itinerário sozinho, recorrendo, aqui e acolá, às luzes de Humberto Mello.
Merci, Gonzaguinha
A Rua Direita — a de ontem, não mais a devastada de hoje — foi o principal berço viário de uma vida jovem semeada de aventuras e brincadeiras, e inicio de muitas amizades e paixões carbonárias.