É a lei da natureza. O leão come o antílope, o lobo come a ovelha, a raposa come a lebre, e assim por diante. É a lei da selva, mas também dos oceanos, onde os peixes maiores comem os menores e estes, por sua vez, se impõem aos seres que lhes são subalternos. Por ser natural, essa lei é isenta de considerações morais e religiosas, ou seja, antecede e ultrapassa o mundo da cultura, existindo simplesmente como algo que “é”, o que significa, filosoficamente falando, que pertence à esfera do “ser” e não à do “dever-ser”.
Nos seus primórdios, quando ainda imersos na natureza, os humanos também submeteram-se a essa lei implacável, não só no relacionamento com animais de outras espécies, mas também nas relações entre si, o que, claro, gerava um permanente clima de insegurança entre os menos fortes, a maioria. Nada podia então ser guardado, acumulado, construído ou cultivado de forma segura e contínua, pois, a qualquer momento,
Com a civilização, o Direito e as leis (a princípio consuetudinárias e posteriormente escritas) passaram a ser os reguladores principais dos conflitos entre os homens. Aliás, mais correto seria dizer que o Direito e suas normas (inicialmente não escritas) é que criaram a civilização. Então, acima do mais forte (em todos os sentidos) passou a existir um poder maior (as leis), mais recentemente criado, aplicado e imposto a todos pelo aparato estatal (legisladores, juízes, polícia etc), de tal modo que, de maneira geral, o “direito da força” cedeu lugar à “força do direito”. Com isso, gerou-se a lenda, muito divulgada nos cursos jurídicos e muito cara aos juristas, de que a chamada lei do mais forte simplesmente deixou de existir em nosso admirável mundo civilizado.
Muito bem. Imaginemos agora a seguinte situação, tão comum nas periferias do mundo, onde é mínima ou pelo menos difícil de ser acessada a presença protetora do aparato estatal: numa comunidade dominada pelos traficantes, uma adolescente é raptada e estuprada por um conhecido e violento chefe de gangue, o qual, após terminar o “serviço”, libera a jovem advertindo-a de que, se contar a alguém o ocorrido, morrerão ela, seus pais e seus irmãos. A vítima, diante dessa ameaça tão concreta e tão provável de se concretizar, naturalmente cala, para proteger a si e à sua família, e com isso estimula a reprodução cotidiana e impune da violência na comunidade. O mais forte, o traficante, impôs impunemente a sua lei, como se fosse um leão.
Situações semelhantes, que ocorrem diariamente em todos os lugares, são inumeráveis, o que prova que “A civilização não fez desaparecer completamente os conflitos resolvidos pela lei do mais forte. De acordo com uma série de fatores (políticas públicas falhas, ineficiência dos sistemas policial, judicial e penitenciário etc), inúmeros conflitos ainda são resolvidos por meio desse irracional padrão pré-civilizatório”. Esta é a constatação feita pelo respeitado jurista Fábio Ulhoa Coelho, em seu livro recentemente publicado, Biografia não autorizada do Direito, Editora WMF Martins Fontes Ltda., 2021.
Nisso tudo, o que chama a atenção não é propriamente a comprovação de que a antiga lei do mais forte continua em vigor, pois isso todos nós já sabíamos, por experiência própria ou por ouvir dizer. O inusitado é isso ser dito por um jurista, já que normalmente a corporação jurídica costuma crer – e propagar com muito orgulho – que o direito fez (e faz) desaparecer a barbárie (onde reina soberana a lei do mais forte). Como se vê, pura ilusão. Na verdade, a barbárie é nossa vizinha e não raro mora em nossa própria casa. Essa e outras afirmações iconoclastas (e verdadeiras) fazem da obra citada uma leitura recomendável a todos que, juristas ou leigos, se interessem pela presença (ou ausência) do Direito em nossas vidas. Veremos que nossa civilização, a despeito de tantos avanços, e em muitos aspectos das relações sociais, é ainda muito pouco civilizada.