No sábado 19 de janeiro de 1924, a primeira página do jornal “A União - Orgao do Partido Republicano da Parahyba do Norte” trazia uma matéria que iniciava, assim:
“A Parahyba e seus Problemas – Sahiu, hontem, dos prélos da Imprensa Official a obra do sr. dr. Jose Americo de Almeida – ‘A Parahyba e seus Problemas’, mandada escrever pelo sr. dr. Solon de Lucena, presidente do Estado, em homenagem à actuação administrativa do sr. dr. Epitacio Pessôa na terra adorada do seu nascimento. [...]”
José Américo de Almeida, o autor da obra (volumosa: 637 páginas acrescidas de um apêndice) referida na matéria do jornal “A União” era, na ocasião, Procurador Geral do Estado Nascido na cidade de Areia, havia, em 1908, obtido o diploma de bacharel na Faculdade de Direito do Recife e, conforme as suas próprias palavras:
“Formado, aos 21 anos, fui parar em Sousa, uma comarca sertaneja, como promotor público [...] Decorrido menos de um ano, larguei a comarca, passando-me para Guarabira, onde meu irmão Inácio era vigário e empregava o último vintém na compra de livros. [...] Quando menos esperava, com 24 anos incompletos, fui nomeado Procurador-Geral do Estado, com hierarquia de desembargador e os mesmos vencimentos [...]”
José Américo, naquela época, escrevia, com certa frequência, artigos em jornais e revistas da capital da Paraíba e, em 1922, conseguira repercussão como escritor com a novela “Reflexões de um cabra”, que fora publicada em uma revista local.
O livro “A Paraíba e seus Problemas” fora encomendado, pelo Presidente do Estado Solon de Lucena, a José Américo de Almeida e ao jornalista e escritor Celso Mariz. No prefácio da obra (datado de dezembro de 1923), José Américo escreveu que Celso Mariz, já credenciado pelo seu livro “Apanhados Históricos da Paraíba” estava pronto para mais uma “demonstração da sua capacidade”. Em novembro de 1922, José Américo e Celso Mariz haviam viajado pelo Estado levantando dados para a publicação.
Segundo José Américo, Celso Mariz teve que deixar os trabalhos de redação de “A Paraíba e seus Problemas” porque era “solicitado pela imprensa diária” e estava empenhado na feitura de outro livro. Lourdinha Luna, secretária de José Américo e com a autoridade de anos de convivência com ele, tem outra versão (muito provavelmente ouvida do escritor areiense) para justificar o abandono da empreitada por parte de Celso Mariz.
“Celso Mariz, no entanto, habituado a vida mansa da capital e das tardes palacianas, não suportou a distância dos amigos e do vinho cotidiano, na hora do almoço. A saudade das reuniões do Clube dos Diários (Cabo Branco) onde o carteado oferecia distração e angústia, afligia quem era afeito à animação social”
A versão apresentada por Lourdinha Luna para o afastamento de Celso Mariz na elaboração do livro que fora encomendado pelo Presidente Solon de Lucena, ao que parece, carece de veracidade, porque os trabalhos da pesquisa de campo foram realizados em apenas um mês, período que seria perfeitamente suportável por Celso Mariz por se manter afastado dos entretenimentos e da “animação social” da capital do Estado. O fato é que algo ficou nebuloso no episódio do término da parceria entre José Américo e Celso Mariz porque, cerca de meio século depois, abordado pelo historiador José Octavio sobre a sua participação em “A Paraíba e seus Problemas”, Celso Mariz pediu ao historiador para não tratar do assunto.
Mas por que o Presidente Solon de Lucena havia incumbido aos dois escritores a preparação de um livro em defesa de Epitácio Pessoa?
Em novembro de 1922, Epitácio Pessoa deixara a Presidência da República sob intensas criticas de parte da imprensa com relação à execução de um grande programa de obras no Nordeste, que ele havia implementado durante o seu mandato presidencial, Segundo José Américo, o Presidente Solon de Lucena considerava que o livro seria “o meio mais sensível de expressar ao sr. Epitacio Pessoa o reconhecimento da Paraíba pelos benefícios outorgados, como solução do problema das secas”. Poucos dias antes da saída do prelo de “A Paraíba e seus Problemas”, um editorial do jornal “A União”, que era dirigido pelo escritor Carlos Dias Fernandes, expunha a situação:
“O Nordéste e a tarefa grandiosa de Epitacio Pessôa - Accusam o ex-presidente Epitacio Pessôa, por ter ido ao encontro das necessidades da população nordestina, de haver de preferencia desviado as suas vistas de govêrno para a região calcinada do Brasil. Duzentos mil contos de reis foram despendidos com a construção de poços tubulares, açudes de terra e mistos, grandes barragens de alvenaria, portos, estradas de ferro, de rodagem e carroçaveis e coordenadas geographicas”.
Prosseguia o editorial de “A União” defendendo as obras feitas pelo governo federal no Estado, apresentando como exemplo a construção de estradas, tema que seria abordado por José Américo em um capítulo do livro “A Paraíba e seus Problemas”:
“Argumenta-se, porém, que as estradas de rodagem não resolvem o problema das seccas [...] Contamos já com o transporte de malas postaes, feito de automovel, de Campina Grande a Patos, numa distancia de quarenta leguas [...] Hoje, dentro de poucas horas de viagem temos em Patos a correspondencia enviada de Campina. Há quatro annos nesse percurso as malas levavam oito a nove dias, em costa de animaes [...] Na Parahyba, por exemplo, o primeiro presidente a visitar o sertão foi Silva Nunes, em setembro de 1861, e o segundo o dr Solon de Lucena, sessenta annos depois. Isso sem falar em Frederico Carneiro Campos (em 1846) e Camillo de Hollanda (em 1919), que não chegaram a descer a serra da Borborema, regressando de Campina Grande e Soledade, respectivamente”
Epitácio Pessoa, em 1919, quando da sua primeira mensagem ao Congresso Nacional como Presidente da República, já estabelecia entre as “despesas que deveriam sobrelevar a qualquer preocupação de economia” aquelas relacionadas com o problema das secas no Nordeste, que ele considerava como o “pagamento de uma dívida de honra para com a população pobre do interior, a quem quase tudo tem faltado”.
As principais obras estruturantes incluídas no Plano do governo federal que foi elaborado para o Nordeste (como a construção de açudes de grande porte) foram contratadas com empresas estrangeiras, o que veio a se transformar em um dos principais alvos da oposição ao governo federal, como relata Laurita Pessoa Raja Gabaglia, filha e biógrafa de Epitácio, justificando a posição adotada pelo governo:
“Um dos pontos dessa campanha visou a escolha de firmas estrangeiras ao invés de organizações nacionais. Não podia, no entanto, ser de outro modo, dada a natural inexperiência dos nosso engenheiros nesses assuntos e o caráter delicado dêsse gênero de construção, a requerer técnicos especializados e material adequado, abundante e valioso, ‘coisas que não se obtêm só com inteligência e estudo, mas pedem tirocínio e capitais avultados’”
As obras do Nordeste eram administradas pela precária e ineficiente Inspetoria Federal de Obras contra as Secas – IFOCS, embrião do futuro DNOCS, que, depois, seria a principal fábrica da chamada “indústria da seca”, na conhecida expressão, cunhada nos anos 1960, pelo jornalista e escritor Antonio Callado. A atuação do IFOCS e a execução das obras no Nordeste, durante o período do governo de Epitácio Pessoa, foram analisadas pelo jornalista cearense J. (Júlio) Ibiapina em cinco artigos publicados, em dezembro de 1922 e janeiro de 1923, no jornal carioca Correio da Manhã, que são os depoimentos mais criteriosos sobre o Plano de Obras para o Nordeste que foi implementado pelo presidente paraibano.
As críticas que eram feitas pelos setores oposicionistas às obras que estavam sendo realizadas pelo governo no Nordeste eram repelidas, com vigor, por Epitácio Pessoa, como se extrai da sua Mensagem ao Congresso no ano de 1921:
“As sêcas do Nordeste – eis um dos temas favoritos da oposição. Despesas adiáveis, gastos excessivos, obras insensatas... sempre a mesma toada a embalar a nossa imprevidência e induzir a Nação a se deter, ingrata e pusilânime, diante de um problema, cuja solução lhe é imposta pelos mais preciosos interêsses econômicos e pelo mais imperioso dever moral!!”
No último ano do seu governo, Epitácio Pessoa designou uma comissão para averiguar a situação das construções que foram executadas, ou estavam em curso, no Nordeste. A comissão era chefiada pelo general Cândido Rondon e tinha como membros o médico e político paulista Paulo de Moraes Barros e Simões Lopes, ministro da Agricultura do governo de Pessoa. No seu relatório, a comissão fez apenas pequenos reparos com relação às obras, como os de que os dados topográficos e hidrológicos disponíveis não permitiam determinar precisamente as áreas irrigáveis. Para o jornalista cearense J. Ibiapina:
[a Comissão de Inspeção das Obras do Nordeste, como foi denominada,] “percorreu com ‘ligeireza’, por entre festas, o vasto e complicado labyrintho das obras a cargo do sr. Arrojado Lisboa (o engenheiro-chefe da IFOCS). Sem disporem de tempo necessario ao exame meticuloso dos trabalhos, sob os pontos de vista technico e administrativo, esmagados sob o peso das amabilidades por toda a parte recebidas, apressaram-se, do nordeste mesmo, a transmitir o seu pensamento em telegrammas de tal modo elogiosos ás firmas estrangeiras encarregadas das construcções, que tornaram impossivel qualquer reparo critico posterior sobre o andamento dos trabalhos”.
Com o fim do mandato presidencial de Epitácio Pessoa e a posse do Presidente Artur Bernardes o programa das obras no Nordeste foi, bruscamente, interrompido. Para Laurita Raja Gabaglia:
“O sucessor de Epitacio Pessôa não levou adiante a campanha contra as sêcas. Em março de 1923, quatro meses decorridos do novo quatriênio, foram as obras suspensas por motivo de ordem financeira”.
Foi nesse contexto, que o Presidente da Paraíba Solon de Lucena projetou um livro em defesa das obras feitas pelo governo de Epitácio Pessoa no Estado. José Américo de Almeida comentou sobre aquele momento em que “A Paraíba e seus Problemas” foi escrito:
“E veio o desastre, maior que todas as sêcas juntas. [Epitácio] Mal deixava o Catete, os trabalhos eram suspensos. Foi tudo pôsto de lado, ainda em começo, inacabado, como um simples arcabouço, o monstruoso esqueleto que não chegara a ter vida [...] O sertão não se consolava. Um povo em pêso revertido aos mesmos azares apelou, protestou, levantou um clamor humano que se perdeu no deserto. Publiquei ‘A Paraíba e seus Problemas’ pugnando pelo prosseguimento do programa em execução”.
O livro “A Paraíba e seus Problemas”, que poderia ter sido um mero arrolamento de obras e serviços, um simples relatório com apresentação de estatísticas e tabelas, foi transformado por José Américo, pelo aprofundamento sociológico dos assuntos abordados e pela sua competência estilística, em uma das principais obras escritas sobre a Paraíba em todos os tempos.
A importância do livro “A Paraíba e seus Problemas” foi logo percebida por um jovem pernambucano (ainda não completara 23 anos de idade) que retornara ao Recife após obter diploma e defender tese em universidades norte-americanas. Embora escrevesse, já há algum tempo no Diario de Pernambuco o jovem que voltara para a sua terra natal era pouco conhecido na cidade, conforme escreveu, no Diario, o jornalista Aníbal Fernandes:
“[...] é quase escusado que eu fale aqui; toda gente que lê o “Diario” de há muito se familiarisou com o seu nome. A principio, houve quem o atribuisse a um pseudonymo.
- Quem é esse Gilberto Freyre, perguntava-se?
É que o grande publico não o conhecia. Conhecia-o, e muito bem, a meia duzia de seus intimos e de seus condiscipulos [...] O resto ignorava-o”.
- Quem é esse Gilberto Freyre, perguntava-se?
É que o grande publico não o conhecia. Conhecia-o, e muito bem, a meia duzia de seus intimos e de seus condiscipulos [...] O resto ignorava-o”.
Dois meses depois do seu retorno ao Brasil, Gilberto Freyre faria aquela que é a primeira análise crítica do livro “A Paraíba e seus Problemas”, um texto que é praticamente desconhecido pelos estudiosos da obra de José Américo.
Gilberto Freyre iniciava o seu artigo escrevendo que o livro dava, ao primeiro contato, “a falsa impressão de simples esforço de apologeta” ressalvando que “os panegyristas são como os poetas: nascem. E ninguém nasceu menos panegyrista que o sr. José Americo de Almeida” e acrescentava:
“Sem o ranço dos panegyricos officiaes, seu livro é antes formidavel obra de reportagem e avaliação. Reportagem e avaliação dos elementos economicos e sociaes que constituem a Parahyba. Um bello esforço de geographia e sociologia regionaes”.
O jovem sociólogo pernambucano abordava, no seu texto para o Diário de Pernambuco, a conjuntura pela qual passava, na época, a região nordestina:
“O Nordeste brasileiro, como o chamado ‘old South’ nos Estados Unidos, vem soffrendo consideraveis refracções na sua personalidade regional. Nos seus mais intimos valores e interesses. Contra esse processo de absorpção serviu um pouco de contra-vapor a presidencia do sr. Epitacio Pessôa. Mas sem effeitos definidos e definitivos”.
José Américo de Almeida, no livro “A Paraíba e seus Problemas”, atribuía a Epitácio Pessoa ações descomunais tais como “a salvação integral do nordeste” e “a segurança do nosso ingresso na fraternidade do regime”. Gilberto Freyre contradizia essa opinião de José Américo considerando que a atuação do presidente paraibano, em favor do Nordeste, não alcançara tamanha amplitude, embora reconhecesse que “pela energia e superior bravura de ação, o sr. Epitacio muito honrou, na presidencia da republica, suas origens nordestinas”.
José Américo reportava-se, em “A Paraíba e seus Problemas”, à disparidade no desenvolvimento dos Estados nordestinos com relação aos do sudeste do país, situação que os mantinha submissos, tanto do ponto de vista econômico como do político, àqueles Estados que, na época, eram chamados do “centro”. Esse enfoque do problema dado pelo escritor paraibano foi devidamente destacado por Gilberto Freyre:
Preoccupa-o, como a todo nordestino que se não tenha desgarrado de suas raizes, a condição precaria dum grupo de Estados como os nossos ante a força soberana dos tres Estados do sul que nos regulam, ao sabor dos seus interesses regionaes, a vida politica e nos querem até impôr uma como curatella da economia particular, sem o menor criterio representativo. Não é uma questão de Estados pequenos, a da nossa subalternidade de provincias lacaias: “a questão é, mais propriamente, de zona”, opina o escriptor parahybano”.
E é pena que havendo no Nordeste o que o sr José de Almeida chama uma ‘causa de zona’, tenha sempre falhado, nos momentos opportunos, a cohesão, a acção em conjuncto para os fortes effeitos em massa. É que a norma da politica dos nossos Estados tem sido, para recorrer ainda ás justas palavras do sr. José de Almeida, “a solidariedade com os grandes Estados, pela cautela das situações dominantes receosas de represalias”.
E é pena que havendo no Nordeste o que o sr José de Almeida chama uma ‘causa de zona’, tenha sempre falhado, nos momentos opportunos, a cohesão, a acção em conjuncto para os fortes effeitos em massa. É que a norma da politica dos nossos Estados tem sido, para recorrer ainda ás justas palavras do sr. José de Almeida, “a solidariedade com os grandes Estados, pela cautela das situações dominantes receosas de represalias”.
No tocante à parte estilística do livro, Gilberto Freyre escreveu:
“Em paginas que adquirem ás vezes um sabor tragico de romance russo, mostra-nos o sr. José de Almeida a acção erosiva das seccas sobre valores de toda a especie – ás vezes quando o bruto da natureza não se deixa fixar por um tão fino processo, vem um pouco de côr e as paisagens nos apparecem em ‘gouaches’ deliciosas [...] Assim, ‘o estio embalsamado pelos pereiros em flôr é um mortifero derrame de luz que transforma as campinas num cinzeiro... E no meio desse cinzeiro ‘rebenta um paraizo de supetão’ [...] Isto está saborosamente dito. Sente-se a flagrancia da paisagem tropical em constante processo de renovo e revirginização desorientando-nos quase pelo seu rhytmo difficil de seguir”.
A obra do escritor paraibano causou tamanha impressão no jovem sociólogo recém-chegado da Universidade de Columbia que fez com que ele concluísse, assim, o seu artigo para o Diário de Pernambuco em que abordava “A Paraíba e seus Problemas”:
“Tanto há no livro do sr. José de Almeida de provocante e digno de nos reter, que é como um lago cheio de peixe, á beira do qual se tem vontade de ficar dias inteiros, pescando á linha. [...] é dos melhores que se teem produzido no Brasil. É um bello e forte livro. Surprehende o estar escripto com uma tal elevação, que não parece ter sido escripto todo de perto, na propria Parahyba, sem espaço para as vantagens da perspectiva. Nada como a distancia para vêr bem um objecto. Vêr de perto, e só de perto, é, em regra, vêr mal. Mas o sr. José de Almeida viu de perto, e só de perto, e viu bem. Vantagens, talvez, do vidro do seu “pince-nez”.
Prestes a completar um século, “A Paraíba e seus Problemas” é um estudo sociológico e antropológico precursor sobre o Nordeste brasileiro. Tornou-se uma obra perene.