Fico cada vez mais feliz com a possibilidade de lembrar dos sonhos. Quando acordo, sinto que a espuminha deles já vai se desfazendo, indo pro limbo da des-memória. Mas vem cá, digo, e espicho o juízo e pego aqui um objeto, ali um sentido, vou dando nó e pegando o próximo, e dou outro nó. Aí vejo o que prendi e tento achar um fio de narrativa. E quando me dá vontade, caço outras literaturas, Kafka, Kerouac, Borges, Hesse e esse povo todo que foi fazendo diários de sonhos. E os amigos aqui que escrevem, que contam sonhos, também. Inveja boa de quem os lembra. Pedacinhos das mil e uma noites forjadas no travesseiro.
André Ricardo Aguiar
André Ricardo Aguiar
Eu sonho muito. Por uns tempos, mais. Outros, menos. Sonho à noite, pelas madrugadas e até na siesta da tarde. Há sábados ou domingos em que me espalho na cama, durmo horas e acordo sem saber se é dia ou noite. Demoro alguns segundos para ficar feliz e saber que não é hora de trabalhar, mas de continuar o sonho. Claro que são sonhos nada lineares, misturados, coloridos, em preto e branco, desconexos e loucos. Também há os sonhos eróticos. Ah! Quando isso acontece é a glória. Ganho o dia... a semana... pois se sexo já é bom na vera, imagine sonhando e voltando a acordar, com as carnes trêmulas e estremunhadas.
Fico intrigada porque não sonho somente com pessoas e/ou situações. Também sonho com tempo e espaço. Sonho com minhas cidades. Com lugares avulsos. No sonho, eles são iguais às minhas ruas. E são diferentes também. São sonhos! Muito recorrente sonhar com a Praça da Independência, atravessando a Avenida Maximiano de Figueiredo, que foi meu percurso a pé por anos, a caminho das Lourdinas. Como gostava de caminhar e de olhar os carros passando — poucos. Aí avistava um conhecido, uma prima, um paquera, e acenava para eles. Sonho com a padaria de uma esquina, trânsito maior da hora do rush. Atravessando. Correndo. Um leve susto na alma. Um supetão de sensações!
Também há os sonhos continuados. Aqueles que têm sequência. São interrompidos e, se acordo, continuam. Ou depois são retomados. Parece até novela. Vai ver que é! Acordo confusa, não sei se perdi algum capítulo. Ou se já é outra novela. Tem aquela situação. Menina. Moça. Mulher. Os amores. Aqueles dos quais fugia. Um medo qualquer, por vezes tão banais. Ou quase sempre. Tem o mar. Ah! o mar, tão presente na minha vida. O cheiro de sargaço - Wide Sargasso Sea?! Outras vezes um quintal, uma janela, uma fresta! Alpendres e becos das casas. Existe a imagem de um ladrão, meus pavores de menina de ficar de janela aberta, de ter os pés pra fora do cobertor, de ver vultos à meia noite. Mas os sonhos também têm seus medos próprios. Mas, mais com a brisa, com os araçás, os caminhos das areias, um sabor de leite de coco...
Sonho muito com o Rio de Janeiro também, minhas férias inesquecíveis por tantos anos. Avenidas largas, as lojas. Eu na adolescência, deslumbrada por Copacabana. Desse meu Rio eu sonho com o sonho! E nada mais. E sonho também com Londres, esse meu sonho de estudo e vivências tantas. Então sonho com as estações de trem, anônima circulando pelos vagões. Cenas de crime, de policial, de encontros fortuitos. Victoria Station era o meu local para imaginar filmes privados. De amor, claro! Mas como resistir ao Orient Express, que toda vez que eu lia a indicação nos trens, lembrava de Agatha Christie? E seguia imaginando, eu, perambulando pelos mercados, nunca achava aquele específico. Procurava minhas lojas indianas dos anos 70/80 e elas não existiam mais. E me angustiava sonhando. Acordava aflita, achando que tinha esquecido minhas compras em algum lugar. Nunca mais fui a mesma depois de um domingo em Peticoat Lane! Ou em Notting Hill. Barracas, vestidos de espelhinhos, e túnicas que comprei, usei, sonhei a vida toda. Tudo passou. Tudo passa. Mas nos meus sonhos, continuo a procurar um determinado trem e uma barraca singular por entre as ruas de uma galeria qualquer.
São imagens borradas. Flashes. E fico a pensar como a geografia de um lugar nos importa a vida toda. Quando era menina (sim, andei sozinha a partir dos 10 anos), eram tempos pacatos e tomava ônibus para ir à aula de música no Centro – de D. Luzia Simões. Depois, o ballet no Santa Rosa (com a Professora Yara Rosas), aí mais velhinha – 12 anos. Como eu gostava de ser uma transeunte qualquer! Acho que fui flâneur sem ainda nem conhecer nada de poesia francesa. Ainda não conheço! Desde já, a solidão me atraía. Gostava de andar sozinha. Hoje, gosto mais ainda. Observar as pessoas, parar onde gosto, como gosto, o tempo que for necessário. Andar no Centro era uma aventura. Morava na Av. Almirante Barroso, descia pela Lagoa e ia embora pelas lojas da cidade, fazer mandados da minha mãe, encontrar o namorado em uma rua qualquer, sentar na lanchonete para um queijo quente e uma Vaca Preta (sorvete de ameixa com coca cola!). Já nem sei mais se estou falando do vivido ou do sonhado...
Na adolescência, também sonhava com os olhares. Mesmo magrela e de roupas pouco afeitas a babados e outros recortes mais femininos, a juventude é um chamariz para a sedução anônima. Gostava disso. A Rua das Palmeiras – meu percurso durante muito tempo. O Centro! A casa tal, a família tal, as amigas da Rua Afonso Campos, (Joana Emília, Erise e Dodora Diniz), do Beco (Glauce Caldas, Márcia Porpino, Marcos Feliciano, Fernando Rolim), e de Manaíra (Dada Novais, Chola Henriques, Antonio Carlos Martins, esse meu primeiro namorado dos tempos de menina ainda). Esse mapa, todo meu, ficou impregnado feito tatuagem nas minhas memórias, e por isso, quando durmo, sonho tanto com ruas, penumbras, percursos, luzes da cidade!
João Pessoa, Rio de Janeiro e Londres, são lugares que me pertencem. Andei exaustivamente por essas cidades. Hoje ninguém anda mais a pé. Tudo de carro. Violência urbana, não dá para ir na esquina. Os de hoje não sonharão com suas ruas. Esquinas. Vãos. Travessias. Outros tempos. Outros Sonhos!