A memória é uma espécie de armadilha. Para o poeta Wally Salomão, “uma ilha de edição”. Ou quase isso. Bem mais algumas vezes. Alçapão escondido na mata esperando o pássaro. Quando menos se espera canto e voo se entregam em troca de migalhas. A partir de então, só o que foi aprisionado existe. Um canto triste para a alegria cruel dos seres esmaecidos. Aprisionado, o voo não se mantém na insuficiência das asas. Beleza que sangra num passear serelepe pelos poleiros. Movimentos que parecem graciosos, mas são tristes. Do mais puro desespero nasce o canto. Tristes penas cumpridas sem condenação.
O enigma das gaiolas me acompanha desde sempre. Quando menino observava com tristeza canários e outros pássaros engaiolados. Vivi de perto as manhas da captura. Quanta metáfora naquelas cenas e eu nem sabia. Os caçadores eram meninos, como eu. Entre muitos, só eu não apreciava o canto aprisionado. Não gostava de ver um pássaro sendo capturado. Não falava nada. Eles eram normais, eu não. Gostava e gosto de observar os pássaros na distância. Meus amigos tinham medo de corujas. Diziam que trazia a morte. Eu gostava de ver aquele bicho exótico pousado no mourão. Jamais via um pássaro. A coruja era o pássaro além do pássaro. Uma coisa eu admirava nas corujas, nos pardais, nos abutres e nas águias: não cabiam nas gaiolas.
A vida vai dando o compasso dos nossos cantos e voos. Nos torna alvo dos próprios enganos. Não são raras as vezes em que trocamos a amplidão por migalhas. A gaiola parece segura. Mais que isso: objeto de desejo. Um lindo artesanato. Aliás, como toda mentira bem contada. Toda prisão é o lado de fora. A ausência que nos completa. Nunca percebemos o ponto de fuga entre as grades. Os escapes do invisível. Noutras vezes somos aprisionados por dentro e não temos olhos para portas abertas. As rotas de fuga são perenes e a permanência, às vezes, não passa de um desejo injustificado. Reencontrar o voo faz parte do canto. No mais é um eterno perder-se e reencontrar-se. Perder-se no bater de asas até que a própria vida estanque num estampido. Momento de reencontrar-se nos cacos de cada amanhecer.
O que há de simbólico na gaiola é a apreensão da beleza. A liberdade é apenas o detalhe suprimido. Um protagonismo fora de cena. Prevalece a beleza do canto e a exuberância das penas. Mas a beleza é tudo que se perde nas armadilhas. Ninguém aprisiona um pardal ou uma árvore de rapina. Por quê? O que se deixa aprisionar é a delicadeza. Jamais a vulgaridade ou a força. A fragilidade que nos cobre de espanto quando menos esperamos. Quanto mais belo o pássaro, quanto mais impressiona pelo seu canto, maior o seu crime. Se torna caçado como um assassino em série. Um larápio de sensações. O quanto há de ser belo, há de ser livre. Os pássaros não dissimulam. Não trocam de ninho. Mas se perdem no que parece fácil. No que se expõe ao espantalho e não teme o que desconhece. Experimenta o que parece um pouso seguro e paga o seu preço.
Perdas são sempre incalculáveis para quem adormece no conforto das migalhas. O tempo vai desorganizando tudo enquanto o mundo perde as cores. Cada vez menos pássaros, abelhas e jardins. Nunca teremos noção do que é perda e do que é libertação. Não reconhecemos a dor que liberta. Geralmente perdemos o que nunca nos pertenceu. Quando aprisionamos somos nós os prisioneiros. Laceramos os dedos para impor cadeados e correntes. Não nos acostumamos ao que é instável. Descobrimos na gaiola a estabilidade da morte previsível. Certeza do mesmo canto no mesmo espaço de migalhas garantidas. A vida fora da gaiola devolve ao pássaro para a amplidão perdida. A noção exata das víboras, das aves de rapina e dos felinos que dormem o sono insuspeito. Aqui e ali, uma liberdade compartilhada nos torna ainda mais convictos de todas as distâncias. Somos pássaros insurgentes numa manhã chuvosa de agosto.