Diante do caixa, olhando a capa da edição crítica de A paixão segundo G. H., que a mão acariciava, enquanto o coração se afogava no tempo esvaído, as lágrimas começam a descer devagar, mas continuamente. A moça do caixa pergunta-lhe:
– Senhor: o que se passa? O senhor está bem?
Enquanto a pergunta o fazia regressar ao instante da experiência daquele momento, sem saber por que, lembrou-se de “Casa tomada.”
– Senhor: o que se passa? O senhor está bem?
Enquanto a pergunta o fazia regressar ao instante da experiência daquele momento, sem saber por que, lembrou-se de “Casa tomada.”
“Casa tomada” é o nome de um dos contos mais conhecidos de Cortázar. Dois irmãos moram numa casa grande; de repente, começam a ouvir um barulho nos fundos da casa, e isolam o cômodo. O barulho ressurge em outra parte, eles isolam esta parte, e o barulho prossegue invadindo os cômodos da casa, e eles seguem isolando os cômodos que apresentam barulho, até que resolvem abandonar a casa.
A casa em que ele morava era a casa dos livros, como seus familiares chamavam, entre a brincadeira, a ironia e a reclamação. Era uma casa tomada. Eles tinham razão: se Cortázar tivesse morado naquela casa (a “casa dos livros”), certamente teriam sido os livros, e não o barulho, que teriam tomado a casa e provocariam a fuga dos moradores, em seu conto “Casa Tomada”. Aquela casa, que fora, inclusive, planejada de modo a abrigar aproximadamente 6.000 livros, foi tomada pelos 13 mil livros que passaram a empurrar os moradores para fora de seus cômodos.
No princípio, havia a biblioteca, propriamente dita. Uma sala de 4 metros por 4 metros, com estantes de alvenaria do chão ao teto, lugar naturalmente pensado só para os livros, e uma estante enorme, na sala de estar, com um pequeno espaço, no centro, para um aparelho de televisão e todas as demais prateleiras para livros. Um ano depois, na sala de jantar, em frente à mesa, surgiu uma estante de madeira que ia do chão ao teto com 3,5m de largura, e que era a sua estante preferida. Nela, estavam os livros que ele olhava todos os dias, no café, no almoço e no jantar, como se fora pela primeira vez. Mas, dois anos depois, a estante estava repleta, e novos livros foram se apoderando da casa. Primeiro, invadiram o corredor que conduzia da sala de estar para a sala de jantar, onde impuseram uma estante de madeira de 1 metro e meio por 2. Depois, outros livros aproveitaram um pequeno espaço por trás do lavabo, mal planejado pelo engenheiro, e puseram uma estante lá. Depois, outros livros resolveram invadir o quarto do casal; sem mais espaço patriarcal para estantes, invadiram o quarto do indefeso filho caçula, e, logo em seguida, invadiram, não sem resistência, o quarto do último dos moicanos, o recalcitrante e resistente filho mais velho.
Os livros vinham causando, inclusive, problemas de caixa para a família, de modo que chegar em casa com um novo livro era matéria de protesto geral. A solução encontrada foi, ao sair de uma livraria, colocar os livros recém-adquiridos embaixo do banco do carro e só levá-los para dentro de casa depois de meia noite, quando a casa inteira dormia.
Com todos esses livros e a despeito de todos os problemas que esses livros vinham causando, ele gostava mais de olhar os seus livros do que de lê-los. Para ele, nada como tomar o café da manhã, a preferida refeição, distribuindo, amorosamente o olhar com a companheira, os filhos e as lombadas dos queridos livros. Mirar a lombada dos livros: prazer inefável; pórtico de partida para o imaginário. Para quem gosta do objeto livro, ver o título na lombada já é uma travessia. Cada lombada tem uma história. Ali está Le nausée, que o filho lhe trouxe de Paris, que ele nunca leria, mas que lhe traz o francês que ele espera aprender (certamente, em outras vidas) e que sempre o emociona. Do lado, El principito, que ele trouxe da primeira viagem a sua Buenos Aires querida. A cidade e a roça, que Rubem Braga mudaria, vinte anos depois, para o comercial O verão e as mulheres, e que ele mantinha com as páginas lacradas, pois era do tempo em que o leitor, para ler, tinha de abrir, folha a folha, com uma espátula, já que os exemplares chegavam lacrados à livraria. A primeira edição das poesias completas da sua querida Cecília Meireles, que ele comprou a Bibi, o livreiro eternizado no poema de Assunção. Os três volumes da Aguilar das obras de Machado de Assis, que foram trocados, com um amante do escocês, por dois litros de Johnny Walker Black. A primeira edição de O cacto e as ruínas, com ilustrações coladas na página, conseguida, depois de muita insistência, num lance de sorte, pois era o último exemplar esquecido no depósito da Duas Cidades. A primeira edição de A poética do espaço, de Bachelard, ainda da editora Eldorado, de pequena tiragem, logo esgotada, que ele comprou na saudosa Livraria Pedrosa. José e outros, de Drummond, que nunca teve reedição e que ele ganhou de presente da mãe, ao completar 18 anos. A primeira edição de Um copo de cólera, do Raduan desconhecido de todos, que a editora Cultura, de curta duração, publicou. Os sonetos de Camões, na edição de Maria de Lurdes Saraiva, comprada num sebo, no Chiado, numa manhã amorosa de Lisboa. A tradução do Dublinenses de Cabrera Infante, encontrado num sebo em Salamanca, ou a tradução portuguesa (de Portugal) de A voz subterrânea, de 1912, que encontrou, por acaso, sem capa, numa banca de revista de Florença...
José Mindlin, dono da maior biblioteca particular das Américas, fazia questão de frisar que era um leitor mais do que colecionador. Infelizmente, o nosso pobre diabo não poderia dizer o mesmo. Era mesmo apenas um colecionador de livros. Tinha até pena de abrir um livro. Ao longo da vida, sempre que podia, comprava dois exemplares do mesmo livro; um para guardar – o outro, às vezes para ler, mas principalmente para olhar. Raramente, estava disposto a ler, mas sempre estava disposto a olhar livros. Olhar alguns livros, para ele, era como ver postais de uma cidade que desejava conhecer. Tocar nesses livros (nunca sem antes lavar as mãos) era bater à porta do saber.
Atualizando a frase famosa de Virginius da Gama e Melo sobre o dia bom para habitar os bares, o nosso colecionador de livros diz sempre que o final de semana é o momento mais impróprio para ir-se à livraria, pois é o momento em que ela está repleta de amadores. Profissional só vai à livraria até a quinta-feira.
Contumaz frequentador de livrarias, sentia-se ofendido quando algum vendedor vinha atendê-lo ao entrar numa livraria, oferecendo-se para ajudá-lo a encontrar o que procurava. Nunca foi à livraria comprar um livro específico. Mesmo quando ia à procura de determinado livro, passava horas olhando outros livros, antes de decidir o que levar, e se porventura alguma vez saía da livraria sem ao menos um exemplar adquirido, certamente estava vivendo um momento de tristeza intensa ou passando por um grave problema, e passava o resto do dia deprimido.
E quando os colegas dos encontros semanais na livraria vinham com a pergunta: “Já leste todos aqueles livros que compraste quinta-feira passada?”, ele tinha prazer em responder: “ Eu comprei o livro, e ainda tenho de ler? Ler para quê? Eu sou apenas um voyeur de livros: livro, pra mim, é só para olhar.
– Senhor: o que se passa? O senhor está bem?
Com a voz hesitante e ainda lacrimosa, pergunta à moça se ela quer mesmo saber o que provocou aquele choro. A moça responde que sim, claro!
– Há mais ou menos um ano, estive aqui com minha esposa e peguei três livros, para levar pra casa. Ao perceber entre os livros um exemplar dessa edição, que agora tenho em mãos, minha esposa fechou questão:
– Esse você não vai levar!
– Por quê?
– Por que desse aí já tem uns quatro lá em casa!
– Eu ainda argumentei que, além da festa para os olhos e para as mãos que eram a beleza da capa, o papel bíblia e a qualidade da encadernação, aquela era uma edição especial, diferente de todas que eu tinha em casa, com muitos textos críticos, comentários de rodapé. Mas ela fez questão de lembrar que eu nem gostava de ler, gostava mesmo era de olhar os livros, portanto não fazia diferença. Ainda quis contra-argumentar, mas ela fez finca-pé, e eu, que não tinha mais moral pra discutir sobre aquisição de livros, encolhi as orelhas, deixei os três livros sobre o balcão e fui saindo da livraria de mãos vazias. Inexorável, minha esposa ainda acrescentou:
– Parabéns! É mais sensato ainda não levar nenhum livro.
Mas há seis meses, minha esposa faleceu. Agora, com esta edição belíssima na mão, eu tinha tudo para sentir-me pleno, mas a alma está vazia. Vou levar este livro de modo quase mecânico, já que o direito à felicidade que esta bela edição me teria proporcionado já não existe mais.
E a moça do caixa começou a chorar.