Um dos muitos livros que li na juventude foi "O ovo apunhalado", de Caio Fernando Abreu. Nem de longe é o seu livro mais conhecido, mas ainda hoje lembro do conto que falava de um hippie que se sentava numa calçada e, todos os dias, desenhava o rosto de um burocrata engravatado que morava no prédio ao lado. O homem observava tudo e não dizia nada. Apenas passava em silêncio. Depois de algum tempo sua curiosidade virou inquietação. Pediu para ver os desenhos e foi prontamente atendido. A sequência de retratos mostrava o tal engravatado envelhecendo.
Em uma semana, já era um ancião. O espanto foi enorme.
Quando li este livro praticamente não pensava na velhice. Era ainda muito jovem. Talvez uns dezoito ou dezenove anos. Com essa idade raramente se pensa nessas coisas. No máximo vemos algo distante e talvez inalcançável. Jamais o fato inevitável aos que permanecem vivos. Não é de espantar, afinal vivemos numa sociedade onde celebração da juventude é o principal fundamento. O mundo moderno virou um lugar estático onde peitos e bundas não caem, pintos não brocham e peles não enrugam. Em geral a juventude não tem olhos e nem ouvidos para a velhice. No máximo, alguma admiração ou comiseração de qualquer vertente. Naquele tempo eu achava que não chegaria aos trinta. Dos vinte aos trinta já seria muito tempo.
A juventude parece soberana. Parece, mas não é. Muitas vezes desconhece sua maior fragilidade. Naufraga em ingenuidades somente reconhecidas décadas mais tarde. Se dilui na fatalidade do tempo. Vivemos e morremos todos os dias em todas as segmentações da nossa história. Alguns mais cedo outros com um pouco mais de misericórdia. Quando os anos passam e a maturidade não chega quem some de vez é a juventude. Afinal ela não está exatamente na aparência viril e petulante. Certa vez encontrei o saudoso crítico literário e professor da USP, João Alexandre Barbosa. Autor de “A metáfora crítica” e outros tantos grandes livros. Fomos jantar juntos. Na passagem por uma linda jovem, ele olhou e disse: “Lau, o problema é que a gente só envelhece por fora.” João estava com uns oitenta anos. Lúcido, pleno, um dos intelectuais mais robustos do país. Do alto da sua sabedoria permaneceu jovem.
Tenho observado duas vertentes específicas. Logicamente reconheço que o envelhecimento é um fator muito mais complexo e diverso. Mas parece que alguns jovens insistem em abortar a juventude antecipadamente. São velhos de pouca idade. Pensamentos escravizados por ideias ultrapassadas e até velhacas. São reconhecidos rapidamente cada vez que abrem a boca ou escrevem um texto nas redes sociais. Dizem coisas estapafúrdias. São agressivos e viram objeto de fácil manipulação. Escravos de ideias falaciosas e absolutamente apartados de qualquer vestígio de ludicidade. Esses jovens insistem em não reconhecer suas realidades. Simplesmente odeiam tudo que possa revelar suas origens. Quando envelhecem se tornam amargos e desiludidos. Perderam os melhores momentos da vida.
Também temos os envelhecidos que brigam com o tempo. Confundem cabelos brancos com falta de virilidade. Conheço velhos com idade bastante avançada que ainda hoje pintam o fino bigode. Uma verdadeira obra de arte. As raízes brancas dos cabelos não param de brotar e denunciar a grande farsa que só ele ainda não sabe. Quando a pessoa busca renovar-se apenas fisicamente está acelerando aquela velhice que vive desde os verdes anos. Esses, tem coisas em comum com os jovens envelhecidos. São escolados na hipocrisia. Os primeiros buscam ostentar uma sabedoria que não possuem. Procuram atalhos no conhecimento e acabam vitimados. Já os do bigode pintado, envergonham-se do calendário que os mantém vivos.
Já os jovens que desde cedo experimentam a boa literatura são mais espertos. Gostam da arte e do conhecimento. Esses, acumulam inúmeras experiências. Somam-se aos retalhos de vidas alheias dos autores e seus personagens ou teorias. Com trinta anos, já estão posicionados diante do mundo. Cometem erros terríveis como os demais. Mas possuem capacidade de observar e reconhecer os próprios erros. Constroem reputação e sabem que podem perdê-la a qualquer momento. Sabem que a ignorância é sempre um degrau a ser superado. Envelhecem conscientes de cada instante vivido. Vendo no espelho o rosto definhar diante de um olhar aguçado. O cabelo cai ou embranquece sem despejar o sorriso do rosto. E está exatamente ali, no sorriso muitas vezes descarnado, a permanência da sua vitalidade. A força de uma juventude que não se rendeu ao tempo.