A melancolia acompanha o homem desde os seus primórdios, confundindo-se com o desencanto consequente à perda do Paraíso. Na literatura ocid...

Por uma poética da melancolia

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A melancolia acompanha o homem desde os seus primórdios, confundindo-se com o desencanto consequente à perda do Paraíso. Na literatura ocidental, a representação do afeto melancólico remonta a Belerofonte, herói da mitologia grega, e desde então aparece em artistas, filósofos, cientistas e intelectuais cujo luto pelo Objeto Perdido precipita-os num abismo de devaneios e cogitações.

Daí a ênfase com que neles se manifesta o gosto pela reflexão e o pendor criativo, conforme Aristóteles já observava na Poética. Um pouco de tristeza, segundo o estagirita, era o melhor condimento para a criação artística ou intelectual.

Em cada época a melancolia se reveste de feição própria. Da falta do herói mitológico passou à acedia medieval, ou desesperança do espírito; à cisma contemplativa dos românticos; ao encarceramento espiritual dos simbolistas; e chegou ao desamparo e à descrença do homem moderno.

Belerofonte cometera um agravo aos deuses e teve, por isso, o coração devorado pela mágoa. No soneto “Aberração” Augusto dos Anjos revela um profundo vínculo com esse personagem, destacando a metamorfose mediante a qual, na melancolia, a deterioração e a morte tendem a cercear ou transformar no oposto os impulsos vitais: “Criando na alma a estesia abstrusa da ânsia,/ Como Belerofonte com a Quimera/ Mato o ideal; cresto o sonho; achato a esfera/ E acho odor de cadáver na fragrância!”.

Além de se conformar aos estilos de época, a representação da melancolia varia segundo a própria intensidade do afeto melancólico. Disso depende a forma como em cada autor se representa o corpo – tanto o corpo físico, domínio dos prazeres e por isso um dos principais alvos do sentimento de culpa, quanto o corpo da linguagem. O corpo linguístico é uma metáfora do corpo físico e traduz analogicamente as vicissitudes e deformações que nele aparecem.

Assim, há nas distintas representações da melancolia tanto a exemplar caracterização estilística do período em que os autores escrevem, quanto a diferenciação individual na forma de sentir, expressar e mesmo “resolver” o seu luto. Tal diferença é responsável pelas distintas formas de traduzir o conflito desejo versus interdição e, consequentemente, o sentimento de culpa; é responsável também pelo modo como cada um traduz a perda do Objeto e os desdobramentos disso decorrentes, numa gama de estratégias que podem variar do escapismo nostálgico à postura irônica.

Para se compreender a representação literária da melancolia, é fundamental associá-la ao conceito de dissonância. Mais do que simples artifício retórico, a dissonância traduz por meio da fragmentação do significante e da “desconstituição da matéria” o despedaçamento a que a visão melancólica submete o homem e o mundo.

A melancolia suscita uma gama de procedimentos retórico-poéticos, que se configuram como desvios e “topoi” cuja feição agônica assume o aspecto da alegoria – no sentido que dá a esse termo Walter Benjamin. A alegoria deve ser entendida aqui não como sucessão metafórica, mas como figuração de escombros e ruínas. O que se tem nesse cenário não é um “mundo às avessas”, mas um eu avesso ao mundo. Um eu que projeta no espaço textual o vazio, o desencanto ou a dilacerante estranheza que há em seu interior.

A abordagem de autores como Augusto dos Anjos, Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Olavo Bilac e Carlos Drummond de Andrade permite fixar os contornos de uma poética da melancolia, definida como um conjunto de procedimentos (fônicos, lexicais, estruturais, semânticos) vinculados à representação e, sobretudo, à expressão da outrora chamada bile negra.

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