Aquela noite da agonia derradeira, quando contemplei o rosto sereno de minha mãe na cama do hospital, segurando meu braço, ela murmurou com os lábios trêmulos “que Deus te abençoe”, e fui abençoado com a meiguice do seu olhar para o resto de minha vida.
Eu sentia o fim de sua vida, mas tentei não repassar desânimo aos que estavam no hospital nem àqueles que ficaram em casa. Caso não tenha sido um bom filho, se beijos não lhe ofereci em toda a nossa convivência, naquele momento recordava tudo o que passamos juntos. Foi um olhar demorado e silencioso, entre mãe e filho, como uma despedida. Deitada na maca envolta em lençóis brancos, uma despedida que durou alguns segundos, acariciei seu braço. Sinto a maciei de sua pele e seu olhar para mim, como a dizer “Deus te abençoe, meu filho”. Chorei silencioso, andando pelos corredores do hospital fúnebre. Novamente choro recordando nosso adeus num “até mais tarde”, para o reencontro na primavera celestial.
Nossos olhares nunca se separaram, a não ser no dia de sua despedida derradeira, naquela tarde longa e silenciosa, enquanto o sol se abaixava por trás de longínquas serras, quando a brisa morna da Primavera se espalhava sobre nós, numa aspersão divinal enquanto a terra recebia mamãe de volta para fazê-la rebrotar no Paraíso.
Acompanhei silencioso até a cidade de Arara o carro fúnebre que transportava o esquife com o corpo da minha mãe. Foram três horas amargas durante o percurso, enquanto recordava toda nossa história e me lembrava de papai que tempos atrás fez o mesmo caminho num carro da funerária.
Somente quando colocaram o caixão na Igreja de Nossa Senhora da Piedade, para as despedidas finais, tive a certeza de que ela estava a caminho do encontro com os entes queridos adormecidos.
Continuei calado.
Feitas as exéquias, o féretro seguiu pelas ruas nos braços de amigos e familiares, retribuindo a amizade de tantos anos em que se reuniram ao nosso clamor, enquanto o sol perto do horizonte desfolhava luz sobre nossas cabeças e refletia nos lados dourados do caixão.
Os raios do sol, como que se despedindo de mamãe, penetravam no túmulo enquanto o caixão era depositado, depois de orações, seguindo de saraivada das palmas vindas dos que rodeavam o sepulcro, e flores eram colocadas sobre o túmulo da família.
Naquele momento, fechei os olhos e desenharam-se muitas das cenas que passamos juntos, enquanto seu corpo era depositado na sepultura. Não chorei para poder consolar os que vertiam enxurradas de lágrimas. Mas agora, choro calado, quando me lembro de tudo aquilo.
Depois daquele momento, afastado no tempo, algumas vezes me recolho ao silêncio para sufocar a dor.
Na minha solidão, desenham-se as imagens destes entes queridos, guardadas e relembradas, diariamente, como estrelas a consolar-me e enxaguar as minhas silenciosas lágrimas que não consigo reter.
Durante chuvas torrenciais e/ou na aragem do verão sobre os pedregulhos, caminhei sozinho. Nas noites escuras, acendia um fósforo e caminhava. Agarrando-me às lembranças que me dão sobrevida, ultrapassei tempestades, dias longos e noites esticadas, fazendo a reconstrução de nossa história.
Quando tudo me parecia escuro e distante, sem paz e silêncio torturante, lembrava meus pais e, lentamente, surgia uma luz para a contemplação. A contemplação revelada nos gestos caritativos que afloraram sem que esperasse tão cedo obter os resultados. A minha fé tem removido os pedregulhos dos meus caminhos.
Depois que papai e mamãe morreram, meu caminhar ficou noturno e ainda mais silencioso. Parece-me que distante velam por nós, seus filhos, netos e bisnetos.
Mamãe, mulher viúva que nunca desistiu dos filhos, manteve-se ativa em seus afazeres domésticos e no trabalho para criar os filhos. Andou devagar, mas andou. Enquanto andava, o tempo fluía e sua mão nos agasalhava, abençoando-nos todos os dias.
Mamãe viveu para consolar a todos. Ensinou a nunca esquecer nosso papai, apesar de tudo, dizia-nos. Repetia para que nunca deixássemos de pedir a benção e de reverenciar nosso pai.
Nunca deixei de me sentir necessitado da benção de ambos e, quanto mais se distanciam no tempo as despedidas, continuei esperando que abrissem para mim a porta da casa sem parede.
Essas duas árvores queridas, que me deram a vida e sombra, as recordo com saudade. Como convém aos mortos, no silêncio, faço a chamada de seus nomes.
Ambos, meu pai e minha mãe, sim, são duas sombras queridas, cujas almas nas alturas velam por nós, seus filhos, netos e bisnetos.
Deles conservei lembranças, boas ou tormentosas, mas regadas pelo vento espiritual, e recordadas não apenas quando deposito flores em suas sepulturas, mas quando necessito dos seus abraços e de suas benções.
Meu pai e minha mãe ataram as duas pontas do laço de minha trajetória de vida.
Alimentam-me nas minhas fraquezas.
REGISTRO
Este texto é parte do livro “Tapuio – do nascer ao entardecer”, de 2020, escrito para lembrar os 65 anos de minha vida, e que agora (01 de outubro), lanço mão para marcar os 25 anos da passagem minha mãe à eternidade.
Este texto é parte do livro “Tapuio – do nascer ao entardecer”, de 2020, escrito para lembrar os 65 anos de minha vida, e que agora (01 de outubro), lanço mão para marcar os 25 anos da passagem minha mãe à eternidade.