João Cabral de Melo Neto tinha uma extrema capacidade de dar vida às coisas em seus poemas. Vejam como ele fala da faca que habita o corpo ou do relógio vivo e revoltoso, também sinônimo de jaulas ou gaiolas. Observem como Cabral educa pela pedra em sua poesia ou faz um monumento à aspirina.
Minha relação com a poesia de João Cabral, confesso, veio tardia. A primeira vez, surgiu através de “Morte e Vida Severina”, naquele especial da Globo com Elba Ramalho. Achei fascinante quando assisti na época, mas esse ainda não era o Cabral que precisava conhecer.
Daí, um dia, entro numa livraria e vejo “Serial e antes” e “A Educação pela Pedra e depois”, reunião de sua poesia em dois volumes pela Nova Fronteira. Foi ali que descobri o verdadeiro Cabral, aquele tão idolatrado pelos vanguardistas.
Mas o que me encanta em Cabral não é o dos vanguardistas, com a linguagem seca, concisa, enxuta até dizer basta. O que me encantou em Cabral, nesses dois volumes que comprei na época do seu lançamento (final dos anos 1990, acho) é o Nordeste que existe dentro de sua poesia. Mesmo quando não estava morando no Brasil, sua poesia é a cara desse Nordeste, com seus costumes, manias, encantos e contradições. E isso é pouco estudado em sua poesia, preocupados que estão os críticos em valorizar sua linguagem em detrimento do conteúdo. Cabral é um dos maiores poetas de língua portuguesa. Não tenho dúvidas.
Morando em Londres (ele morou por muito tempo na Europa), disse, em carta a Manuel Bandeira, que compreendia melhor como para qualquer artista brasileiro deixar de ser brasileiro para ser "universal" significava empobrecimento.
Segundo ele, europeus, em geral, demonstravam desinteresse diante de autores brasileiros considerados "universais" na época, como Lúcio Cardoso, Cecília Meireles, Schmidt, etc.
Em contrapartida, havia um entusiasmo dos europeus por certos autores brasileiros, como Manuel Bandeira, Mário de Andrade, etc, apesar de considerá-los difíceis.
"E posso garantir que não era o gosto do exótico que determinava o interesse de que estou falando", afirmava Cabral, em 1951.
Penso que sei do que ele falava...
Não à toa, no primeiro poema de meu livro “Metáforas para um duelo no sertão” faço uma homenagem a Cabral. Toda primeira estrofe de “Entre o rio e o mar” é construída a partir de sua poética:
tem semanas que acordo janeiro
versos feito cabral
seco ácido sertão
lâmina e pedra na poesia
galo escondendo a manhã
dias em que custam suores
recordar outros valores
lembrar dos asfaltos de jambeiros
andar pelas ruas, Jaguaribe
: há que sempre mirar adiante
nadar nada no capibaribe
colhendo feijão e poemas
lá na cozinha da casa grande tão pequena