Qualquer leitor, mesmo o mais afeito à poética de Sérgio de Castro Pinto, consideraria o risco ou o desafio de falar sobre essa Folha Corrida que reúne os poemas escolhidos do autor.
Além da simbologia do cinquentenário e da solenidade que se impõe, existe uma fortuna crítica plural e sólida, cuja convergência de pontos de vista é salvo-conduto do poeta, válido em todo o território nacional. Há muito, Sérgio é reconhecido como poeta paraibano e brasileiro pelas melhores e mais respeitadas vozes da crítica jornalística ou universitária, referendadas por depoimentos de poetas incontestáveis.
Teses e dissertações foram dedicadas à obra do autor e muitas são as leituras de textos isolados que merecem destaque pela competência analítica e pela argúcia na decifração dos processos característicos da elaboração poética, reveladores da originalidade inventiva de Sérgio.
O livro inclui três prefácios que acompanharam as publicações precedentes. Em seu conjunto, representam uma síntese dos parâmetros críticos que consagraram os traços fundadores da expressão lírica
onde corre o rio
e onde incorre o risco
da descoberta de cada um.
Neste meio século, a criação literária de Sérgio tornou-se parte de minha experiência existencial. Muitas vezes vivi a alegria de conhecer o novo poema pela emocionada voz do autor, reverberando em todos os tons da revelação que anuncia o milagre.
Leitora, admiradora e amiga, não saberia estabelecer uma ordem de prevalência entre esses atributos. Mas não há dúvida de que, sendo de minha paixão o gênero que identifica o autor, é natural que tenha sido a poesia o elo mais forte a nos aproximar.
Lembro-me do primeiro texto que transformei em matéria para minhas aulas de Português, no segundo grau: “duas odes à borracha”. Era 1971. E tenho ainda presente o impacto da força imaginária do poeta, interferindo como um desafio para aqueles adolescentes. Tantas foram as redações motivadas pela interpretação do poema, todas procurando descobrir o interior das coisas mais surpreendentes. A poesia provocando os jovens leitores para um novo olhar, para transgredir o visível, e ir sempre além do que se pode ir. A utopia teórica do poeta concretizada na experiência transformadora da educação.
Os textos de Sérgio foram uma constante em minha prática pedagógica, especialmente na Universidade. Pela natureza e atualidade da criação e também porque muitos dos seus poemas passaram a integrar a antologia particular de minha preferência.
Essa admiração pelos poetas, pela forma única e insuperável de dizer, que se cristaliza na densidade de cada verso, está presente em tudo quanto escrevo. Sendo evidente que a recorrência à citação implica o reconhecimento de que não existe outra formulação substitutiva para a transfiguração que se condensa na misteriosa condição de poema de onde emerge e se projeta para os séculos a voz da humanidade.
Embora existam versos de Sérgio citados em meu discurso de posse na APL (Academia Paraibana de Letras) e na recente leitura que fiz do memorial e das crônicas de Hildeberto (Barbosa Filho), quero deter-me, particularmente, na apresentação escrita para o EU (fac-símile da edição de 1912) publicado em memória do centenário da morte de Augusto dos Anjos pela Biblioteca Mário de Andrade e Edições Narval.
Inserido em meu texto por uma ordem natural de prioridade, se impõe o encantamento do poema de Sérgio, “a lua de augusto”, ainda mais se comparado a uma longa explicação histórica, teórica e crítica sobre a superação do parnasianismo registrada na concepção poética do gênio paraibano e a consequente antecipação de postulados modernos que ainda viriam a ser anunciados uma década depois.
Participar dessa edição histórica do EU significou um dos resultados mais compensadores de minha atividade crítica. Considero mesmo um presente do Destino, assinalando-me para que se solidificasse um vínculo tangível entre o livro mais que centenário e o poema contundente de Sérgio: lâmina, gume, sabre, conforme se traduz em seu ideal estético,
e se quiserem
esterco, estrume
que aduba a memória.
Precedido pela estrofe de “Tristeza de um quarto minguante”, onde A lua magra é comparada a um paralelepípedo quebrado, “a lua de augusto” se ergue crescente, no apelo a elementos contidos na epígrafe, mas que se vão revestindo de outra conotação, até que a releitura lírica alcance o absoluto da desconstrução crítica.
Desde o título, a lua e suas fases extrapolam o referencial para instaurar no estrato simbólico a semântica da criação literária. De modo que nova e cheia de modernidade é a lira de Augusto dos Anjos, na preamar de sua linguagem arrebentadora e arrebatadora. Aqui exemplificada pelo imprevisível da comparação, cujo vigor se reitera na sugestão visual, auditiva e conceitual.
O poema de Sérgio se desenvolve, inicialmente, em três dísticos, todos estruturados pela afirmação categórica da metáfora predicativa. Neles predominam os versos de seis sílabas, sendo o último abreviado para que nele se instaure o ritmo da intrepidez iconoclasta. É no terceiro dístico que se redimensiona a inusitada imagem do paralelepípedo quebrado e, então, transfigurada pelo aprimoramento de que resulta a estilização,
a lua de augusto
é uma pedrada.
O autor é exímio nesse procedimento retórico que considero suporte para muitas de suas características de estilo reconhecidas pela crítica. No caso específico da criação em análise, é quase mágico, é mesmo extraordinário o efeito obtido pelo uso da palavra transitiva, posta como núcleo predicativo da representação metafórica.
Apura-se o epílogo do poema pela superposição da exigência sintática com o recurso poético do “enjambement”. E surge, como o nome, o complemento, o transbordamento estrambótico, aquele antes elevado a príncipe dos poetas brasileiros, cuja identidade chegava a se confundir com a métrica de sua predileção. Destacado das três pequenas estrofes, para maior rendimento expressivo, projeta-se o último verso, expandindo-se no longo encadeamento de sílabas e sons a que se reduz o alexandrino, desfigurado pela ironia. O nome completo, na exorbitância de sua extensão, perde o referencial das alturas parnasianas e subjaz à força impactante que impulsiona o deslocamento da pedra, sinalizando o esmagamento das impropriedades repetidas pela história, pela crítica e até pelo folclore literário, quando comparados Augusto e Bilac.
Na sequência desta leitura, enfatizei a coerência entre a realização do poema analisado e o que chamei de ideal estético do poeta. Ou seja, os pressupostos que se afirmam sempre que o autor elege como tema a linguagem, o poema, ou o próprio processo de escrever.
Existe uma tradição neste procedimento, de modo que certos poemas passam a representar verdadeiros manifestos, repetidos como princípios de uma tendência que se instaura. Não se pode medir exatamente a repercussão de versos como: A vida só é possível reinventada ou Não quero mais saber do lirismo que não é libertação ou, ainda, Penetra surdamente no reino das palavras. Mas reconhecemos que eles representam linhas de força na poética do século XX.
Nessa Folha Corrida também se incluem textos enriquecidos pela reflexão metalinguística. Neles, o poeta coloca de modo mais incisivo a aguda consciência do ofício de escrever, enunciando princípios que se concretizam e podem ser conferidos em suas publicações pela interação entre o dizer e o fazer.
Chama a atenção o amadurecimento dessa temática, desde o primeiro texto, publicado em 1970, com o título de “poema”. Nele, Sérgio se alonga mais do que é comum na maioria de suas criações e fixa princípios dos quais não se afasta até hoje
e por isto provoca e rasga cortes
na superfície lisa de cada um.
Firma-se um credo poético, uma profissão de fé, quando o autor emite conceitos originais sobre os elementos característicos de sua atividade: a palavra, o poema, o poeta, o escrever. Sérgio também inclui o lápis e o papel, no tratamento peculiar que reserva aos objetos, reinventados pela figuração inaugural de suas metáforas.
o lápis
é um caniço
pensante
na maré
vazante
da linguagem.
Na elaboração do poema “lapidar”, é a sutileza de utilizar o verbo partir, em sua forma pronominal, que permite ao poeta converter o papel em pedra e acumular o título de significações. Apenas cinco versos que parecem imantados em sua coesão. E o mínimo de palavras para o fecho breve, intensificado pela elipse cortante:
a folha é lousa.
poemas, epitáfios.
Não utilizando as formas fixadas, Sérgio cria, para cada poema, arquiteturas que se integram ao conteúdo e à expressão.
Quando equipara o “escrever/ não escrever” ao dilema existencial ser ou não ser, ele trabalha com a premissa dupla, o raciocínio insolúvel, do qual toda saída leva ao sofrimento, à mortificação: um suicídio branco ou um suicídio em branco; um consumir-se ou um consumar-se.
Detendo-se na proposição maior, o leitor descobrirá que escrever é a saída para o dilema. Escrever é ser. Ser não apenas da palavra mas sobretudo do símbolo. Assim chegamos às alternativas finais do dilema: com ou sem metáforas, eis a questão. Portanto, é imperativo consumir-se/no fogo brando das palavras, nessa alquimia geradora da alegoria poética.
Na representação do confronto “poeta x poema”, também se impõe a rendição à palavra, com o poeta submetido a nova provação:
às vezes, fera presa e acuada
entre as grades do poema-jaula
doma-o o chicote das palavras.
O texto com que encerro a leitura desta sequência de conceitos que corporificam os princípios poéticos do autor é o “recado a pound”. Mensagem aparentemente direta e clara, como se espera de um recado. Mas o contraste entre o que se nega e o que se afirma traz para o poema a tensão do universo globalizado império da imagem em tempo real, com os consequentes desdobramentos da dominação ideológica, veiculada na sedução da cor, do brilho e da perfeição ilusória. Tudo sustentado pelo poder da antena em seu alcance ilimitado.
É esse estado de coisas que o poeta recusa, em sua negação enfática:
pound, eu não sou
nenhuma antena.
E, quando se define, é para acentuar ainda mais a diferença entre as duas realidades: a do poeta e a representada pela antena, mesmo que ambas existam em função da imagem. A confissão lírica, em sua natureza de antítese, acumula símbolos para subverter a nitidez captada pelo engenho tecnológico:
eu sou a pane
e a interferência
dos meus fantasmas
no tubo de imagens dos poemas.
Essa aguçada consciência da construção poética confere um seguro desenvolvimento ao processo criativo de Sérgio, sempre marcado por uma forte coerência interna e por um nível de qualidade sem oscilações.
A originalidade acompanha todas as suas fases. Há sempre um novo olhar capaz de enxergar o inimaginável, de equiparar as realidades mais distintas. Não tenho dúvida em afirmar que a metáfora predicativa é o instrumento mais eficaz do seu estilo. Ela interfere, definitivamente, nas características mais marcantes desta poesia de obstinada elaboração. No absoluto poder de síntese, na capacidade de extrair do mínimo o máximo de significação e abrangência. No processo estrutural que faz desabrochar o poema para explodir em substantiva conclusão.
Não é por acaso que Sérgio é profeta em sua terra. Construiu um lugar de destaque na cena cultural, desde jovem, e cada vez mais se faz marcante a influência que exerce na poesia aqui produzida. O texto de Sérgio é intertexto para outros poetas que dialogam com seus temas e com suas concepções estéticas inovadoras.
Lembro aqui o querido Lúcio Lins com o título As lãs da insônia. E poderia multiplicar os exemplos para dizer que a liderança do poeta-professor tem sinal positivo. É a divisão que soma, que acrescenta e faz diferença de qualidade, no ambiente cultural contemporâneo.
◼ Apresentação de Folha Corrida
(coletânea de poemas de Sérgio de Castro Pinto, disponível na Amazon)
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