Quando aqui neste texto eu empregar a palavra “milagre”, não a entendam com alguma conotação mística ou religiosa, estou apenas fazendo alusão às impossibilidades probabilísticas, ou a quase isso. Explico melhor: refiro-me a algo que dificilmente ocorreria ou se ocorresse desafiaria as estatística e as probabilidades.
Vamos lá.
Vamos lá.
Pense quão difícil é você acertar a sena num concurso de nossa loteria. Marcando seis dezenas sua chance seria 1 em 50.063.860. Já se você marcar 10 dezenas suas chances pulariam para 210 nos mesmos 50 milhões e mais alguma coisa. Mas isso, vemos que toda semana acontece. Então, não podemos ver o concurso de nossa Loteria Federal como algo quase impossível de acontecer.
Que tal tentar encontrar determinada gota d’água em um copo cheio desse nosso precioso líquido, Que tal em um balde? Em uma piscina olímpica? E num oceano? Aí as coisas complicam. Aí é que eu digo: só um milagre mesmo.
Mas vamos deixar nossa gotinha d’água lá no oceano e vamos abrir uma de nossas gavetas e retirar um baralho comum de 52 cartas. Imagine 4 pessoas em torno de uma mesa circular, vamos misturar (embaralhar) essas cartas e distribuí-las entre os 4 ocupantes da mesa. Cada um deverá receber 13 cartas. Sabe qual a chance de que todas recebam cartas só do mesmo naipe? Isto é, uma recebe 13 cartas de paus, outra recebe 13 cartas de espada, outra 13 cartas de ouros e a última 13 cartas de copas? Pois vou contar: é 1 em 2 235 197 406 895 366 368 301 599 999!
É como pedisse para você encontrasse uma determinada gota d’água no Oceano Pacífico (o maior de todos os oceanos). É, ou não é um milagre? E por que estou dizendo isso? Simples meu caro leitor, minha cara leitora. A chance de termos nascido é algo parecido com essa história do baralho. Estarmos aqui é o mais absurdo descuido da lei das probabilidades. Somos aquela gotinha d’água encontrada no oceano. Não era para termos nascido. São tantas as variáveis, mas tantas consideradas nessa questão, que cada vez que estivermos tristes ou abatidos, devemos trocar todas as nossas tristezas por um momento de regozijo e dizer em alto e bom tom: eu nasci!.
Algo parecido em termos probabilísticos deve ocorrer com o porco, com o boi, com o cabrito, com a onça, acho também que com a galinha, o periquito e a tartaruga. Com a minhoca, acho que não.
Aí fico com meus botões... Como é difícil termos nascido. Só nós? Nós e esse montão de bichos que conhecemos. Andei pensando naquela picanha suculenta de meus churrascos dominicais. Não foi colhida em alguma árvore. Veio de uma rez abatida precocemente. Não merecia ela usufruir mais da vida, viver à solta num pasto verdejante, soltar seu mugido nos tempos de acasalamento? Pobrezinha, virou churrasco.
Como chora de desespero o porco ao ser sangrado. Alguém já presenciou tal cena? É de dar pena. É sua luta pela vida. O grito mais triste de se ouvir, o instinto lhe diz o que estão lhe roubando. Uma cena estarrecedora que seus algozes veem com naturalidade. Ele, o porco, que não entende de estatísticas, mas sabe ao seu modo o que é a vida, entende à sua maneira como usufruí-la. Por que vamos nós transformar toda aquela expectativa em toucinho?
Já viram Dona Nonoca, minha vizinha, matar uma galinha? Já vi e olhei nos olhos da bichinha (da galinha e não de Dona Nonoca) e pude ver o pavor ante a perspectiva de que sua vida estava indo a termo. Esperneava, cacarejava. Debalde, a faca de Dona Nonoca era bem mais afiada do que a língua da própria e o sangue jorrou farto e a pobrezinha (não Dona Nonoca) seria servida mais tarde à cabidela, ou ao molho pardo, se preferirem.
Eu mesmo, faz uns três anos que não vou pescar. As tralhas de pescaria estão ali em um canto da garagem. Dei um tempo devido a essas minhas reflexões. Quando peixe vai sendo puxado, preso pelo anzol, vem se debatendo como um doido. Não está participando de um bloco carnavalesco. Está desesperadamente lutando pela vida. Tente pescador amigo, ao retirar seu troféu escamado da água olhar nos olhos do pobre. Verá escrito “me solte, por que está me tirando a vida?”. Foi isso que li nos olhos do último bagre que pesquei. Soltei o bicho. Só me faltou pedir desculpas.
Essas reflexões são frutos da velhice, quando os anos que temos pela frente são bem menos do que aqueles que deixamos para trás. Enxergamos a vida por um outro viés. Estou com medo de que a minha também seja roubada. Foi muito difícil tê-la conquistado. É isso aí.
Hoje salada de rúcula com palmito e tomate e bife à base de soja. Pelo menos vou tentar.