Sou do signo de Aquário. Um pé na lua. Mas meu ascendente é Câncer. Um pé enfincado na terra. Daí, passei a vida abrindo escalas. E não teve ballet que melhorasse essa abertura entre o céu e a terra.
Por isso, minha dificuldade com des-arrumação. Sou caótica nas gavetas. Sem método. E não sei onde achar uma tesourinha. Então, como me mudei, há 3 anos, de uma casa onde morava havia 34 anos? Falam para des-apegar. Mas essa não é a questão. Os meus “objetos sólidos” fazem parte dos meus braços e pernas. E não vejo como amputá-los. Quem vê assim, pensa que tenho coisas. E tenho. Mas só vendo as coisas. Desimportantes aos olhos dos mortais. Mas são a minha poética, do meu corpo e do meu espaço. Bachelard que me ajude! Os cantos, as conchas, as paredes, os ninhos e as gavetas. Procurando por mim em toda brecha e me perdendo de tanto que não me acho.
A primeira ação foi justamente a paralisia. Aí começo. Vejo meus cadernos da graduação e da pós. Montes de notas. Passei a vida tomando nota. Rascunhos. Pequenos ensaios à mão. Comentários e mais uma dezena de desenhinhos do tédio que sentia em algumas aulas. Como jogar fora minha história, minhas narrativas, minha voz, minha vida? Isso é memória! Mas assim, sem pensar, ajuntei tudo em sacos pretos, opacos, e junto com as mil agendas e todos os não-compromissos, avoei no lixo.
Coleções de jornais, recortes, revistas, pastas, artigos, colagens. Tudo para o cesto de recicláveis! Orgulhando-me de mim, de tanta insensatez! Isso tudo junto ao período de eleição, atos públicos, Elenão!, brigas em internet, debates, medos e des-esperanças. Muita angústia para uma gastrite só.
E os livros? Como des-arrumar estantes da vida toda? Livros de trabalho, de cinema, poesia, de viagem, das mulheres, livros. E os livros dos amigos, com dedicatória? Tão carinhosos. Caligrafia caprichada. Não era só doar. Mas doar para quem? Seria muito fácil deixar ali em qualquer lugar. Mas a gente gasta muito em livros o dinheiro pouco. E aí, na hora de se des-fazer, quer que eles sirvam, andem, continuem. O desejo de perpetuar os aprendizados e conhecimentos nossos de cada dia.
Ah! Vi tanto de mim! Achei bilhetinhos de amor, fotos tantas, ex-amores (será que existem esses?). Sempre achei que os amores vão se somando na estante do nosso dicionário das palavras ao vento de Adriana Falcão! Poemas! Missivas que vinham dos quatro cantos. Esses vão na bagagem! Vejo cotidianamente na velhice dos de perto que o que fica dessa vida é o amor. Dane-se o resto. Minha coleção de cartões de arte! E livros que comprei fora do país. Pós-modernismo, Virginia Woolf, Freud, Alain de Botton, Terry Eagleton, Linda Hutcheon, André Bazin, Ismail Xavier, Genilda Azeredo, Nadilza, Vitória, colegas de departamento. Minhas amigas produzem! Fico sempre achando que vou precisar. A precisão! Nos ambos sentidos. Nossos livros são uma radiografia também da nossa identidade. Nossa vida pelas folhas! As estantes continuam lotadas. Não me descolo dessa parte!
E os discos? Os LPs. Dei de cara com Duke Ellington do meu pai. Ella e Billy. Dele também. O meu pai gostava de jazz e de música norteamericana. E de Isaurinha Garcia. Os de Chico e Caetano, todos! Ou muitos. E mais Victor Jara e Woodstock. Minha vida. Tom Waits e JJ Cale, para me lembrar do fog inglês e meu ano abroad. Warwick. Quanta vida vivi em 1986/87! Distância do meu filho pequeno; as portas da pesquisa, as 4 estações do ano e London London a me esperar em Notting Hill e Camden Town. Eu que desde pequena olhava longe no horizonte, aquele ano foi demais para minha cabeça que rodou na Grécia, Turquia, Escócia e Bahia... Os amigos, as festas, a biblioteca e o cascalho dos backyards de Cambridge de que tanto falou Virginia Woolf.
Des-arrumar minha casa foi uma viagem por mim e todas as paredes da minha subjetividade. Nunca dei valor à casa. Ao invés de sofá e fogão novos sempre preferia passagem aérea. Adoro aeroporto e, um dia, sonhei em ser aeromoça. Até que descobri que era uma profissão difícil, sem tanto glamour, e, além disso, havia a chatice dos passageiros.
E os trabalhos dos alunos meus? Também foram para os recicláveis! Passei a vista pelos nomes. Lembrei da maioria e das dificuldades de fazer um outline. Os essays. Os TCCs. As dissertações, qualificações e algumas teses de doutorado das quais fiz parte da banca. Como jogar esses trabalhos fora? Não. Esses vão. Os melhores. A prova viva e concreta de tanta labuta.
Tem também o arquivo memória do amor e saudades dos que se foram. Meu pai e Juca. Sair dessa casa foi deixar Juca por lá, pelo cheiro dos cajus de conta e do pé de tamarindo que ele plantou. Desde que se foi, sempre senti sua presença forte na batida do portão ou me chamando pelas paredes. Foram esses sons que me acalantaram nas noites solitárias e chorosas. Agora iria para outro espaço, onde, com certeza, ele não estaria. Está mais ocupado com os peixinhos que nadam nas ondas do Bessa. Ah! Essas alturas nas profundezas do mar sem fim. Mar adentro. Eu sei que isso é bom. Mas também assusta. O último corte no cordão que nos uniu tanto. A casa. Nosso quarto. As tantas reformas-puxadinho. Uma vida toda. Daniel e Lucas. Pequenos. Crescendo. Homens feitos. Enfim, outro pequeno dicionário amoroso que fica. Ou que vai junto?
Depois de tanto jogar fora tudo, estava quase me enviando num saco vazio também. Será que serei outra sem as partes de mim, incrustadas na minha pele? Será que sairei mais leve? Como dizem os peregrinos que vão deixando o rastro e pegadas pelo caminho sagrado? Não sei, por enquanto estava atordoada. Cansada. Confusa. Achando sempre que iria precisar ali do meu exemplar de O mal estar da civilização! Como separar o joio do trigo? Isso é um talento. Tudo que não tenho. Preciso do caminho certo. De rotina. Pouca mudança real para poder ter as mudanças subjetivas e simbólicas. Vejo gente que des-arruma tudo a toda hora. Fico a me perguntar como andam essas veias e poros de um ser tão mutante?
E o guarda roupa? Roupas roupas roupas... e todo o resto que vamos acumulando em camadas em um corpo que envelhece. Uma amiga me deu a dica: “É bonito? Vai fazer você feliz? Leva! Não vai? Doa!” Até parece que é assim que funciona essa nada mole vida...
A mudança estava só começando. O caminhão nem havia chegado ainda. Meus brincos e apetrechos ainda estavam ali, na espreita. Meus cacos, retalhos e meus atalhos dessa rua tão grandiosa com nome do oceano maior – Pacífico! Do outro lado da margem do rio chegando, a loucura continuará, des-arrumar dos caixotes e achar lugar para tudo e mais. Para mim. Que moraria numa rua com nome de gente. Nem sabia quem foi ou quem é?? Se bem me conheço, achava que levaria um século para decorar. Lembrei que minhas pernas agora teriam que fazer outros caminhos. Atalhos. Que os anjos me protejam para que eu consiga ser feliz na nova morada. Assim mesmo, surtei! Em pânico com tanta caixa de papelão que me rondava dia e noite. Já nem sabia mais o lugar da tesourinha! Nunca soube!