Era bem cedo e eu já estava ali agarrado com o folclore do Câmara Cascudo, apreciando cada página, quando lembrei que não tinha lido o jornal de ontem. Não por qualquer lapso, mas uma série de obrigações me impediu o habitué. Não me fiz de rogado e fui salvar o periódico da asfixia de um saco translúcido fechado por um nó muito bem dado.
No canto de um sofá, lá estava o A União dobrado ao meio. De fora, o ‘ÃO’ parecia dois olhos a observar com desconfiança se eu novamente iria passar por ali e desprezá-lo mais uma vez. Sorri, larguei a parcimônia e rasguei o embrulho ao meio, faltou paciência para enfrentar o nó de marinheiro. Sem muita resistência, o saquinho plástico violado deixou escapar no ar a inconfundível doçura do perfume de papel impresso. Peguei o jornal com cuidado e encarei a capa por completo. Não contive o impulso de cheirá-lo bem na cabeceira, onde letras azuis lembravam: 128 anos – Patrimônio da Paraíba, logo acima da data e abaixo das letras garrafais imponentes que o nomeia. Enquanto ia para meu refúgio, a manchete e chamadas iam sendo decifradas ao mesmo tempo em que os dedos deslizavam no papel como se estivesse a contar dinheiro.
Manhãzinha de sexta. Abro o jornal da quinta na companhia de uma xícara de café e um copo com água gelada. Não tardei em acender um incenso de erva doce (às vezes me perco no encanto daquela fumacinha, capaz de transmudar pensamentos). No meu cantinho, ergui os braços, pegando-o nas extremidades de sua cintura e como estivéssemos de mãos dadas, fui passando as páginas até a primeira que desejava ler – a dez – buscava eu a coluna ‘Artigo’ do amigo e confrade da Academia de Letras de CG, o Prof. José Mário da Silva Branco, escritor e um dos críticos literários mais respeitados da Parahyba. Lê-lo é ter a certeza de muito aprendizado, e eu não iria conseguir, página a página, não pensar em chegar sem demora na dez, escorreguei logo para lá. Naquele dia, ele publicou “A poética de Vinícius de Morais” ressaltando o valor da obra do poeta carioca com uma intocada e convincente escrita. Depois de mais uma aula do Prof. Zé Mário, concluí a leitura do precioso Caderno de Cultura compenetrado nas crônicas de Germano Romero e do confrade do IHGP José Nunes.
Concluída a leitura, acabara também de tocar no rádio o programa de cultura popular ‘Universo dos versos’, uma verdadeira ode a poesia, dirigido e apresentado por Iponax Vilanova (fiho de peixe...) na Rádio Caturité. A partir de então, abrindo espaço para os noticiários. Tomei o celular que findava sua carga e nas notificações vi algumas do Instagram. Fui deslizando o dedo na tela de baixo para cima, observando despretensiosamente as imagens postadas e suas legendas, até que chego a foto de um menininho lindo segurando um exemplar do ‘Diário de Pernambuco’. Na mesma postagem mais três retratos. Após a criança, vi o amigo Leidson Farias (decano da advocacia em Campina) em duas fotos e na última, seu filho mais velho, o advogado Taney, justamente o autor da postagem, todos eles na companhia de um jornal. Disse ele:
Na nossa família, o jornal "de verdade" é uma instituição: lembro criança que toda noite meu pai colocava os três filhos no carro para "levar os jornais de seu avô!” Eram os jornais de CG (Diário da Borborema, Jornal da Paraíba e Gazeta do Sertão, todos editados na cidade, competindo com os de JP) e as edições do Jornal do Brasil e Folha de São Paulo, que chegavam à tardinha na "Banca do Orlando".
Linhas antes desse relato, reproduziu a frase do francês Arnaud Lagardère (editor de 261 periódicos no mundo, dentre eles o Le Monde) que afirmou:
“Mais uma década, e os atuais jornais impressos desaparecerão. A tinta e a textura do papel ficarão para publicações mais sofisticadas”.
Taney continua: “além de ler você sente, cheira, segura a notícia, recorta o artigo que gosta para guardar, colocar dentro de um livro!”. Ora, eu acabara de ler meu jornal e senti o duro impacto de sua sentença de morte.
Revendo as fotos de três gerações: Leidson, Taney e Taneyzinho, lembrei da emoção de Papai quando viu pela primeira vez minhas letras no saudoso Diário da Borborema; lembrei da primeira vez que entrei em uma redação, da emoção que sempre foi receber comentários de gente que nem mesmo conhecia; das declarações de amor por pessoas e coisas que escrevi em coluna; da devoção em rastrear paisagens íntimas e sensíveis para poder, em crônicas, buscar encantar o exigente público. Lembrei da tristeza que foi em dezembro de 2018 quando o Diário de Pernambuco deixou de vir para às bancas de Campina, o último jornal de fora que nos chegava. Tristeza em ver fechar o DB, o Jornal da PB, o Correio, o Contraponto, o Norte.
Tombado como patrimônio da Paraíba, o jornal A União tem assegurado não só a sua perpetuação por mais uma era, como nos dá o grande e honroso presente de podermos manter a sagrada tradição de ler e a alegria de sentir o impresso, mesmo que seja a edição do dia anterior.