A história a seguir me foi contada pelo meu muito querido e saudoso irmão, João Neto. Ele jurava que havia presenciado o “diálogo”, pois estava no assento de número 20. É um retrato da índole do sertanejo, de uma forma geral, e do habitante do Vale do Piancó, de forma especial.
Nos idos dos anos 50 e 60 os principais transportes coletivos para o alto sertão eram o trem e umas poucas companhias interurbanas, que arriscavam seus ônibus em estradas pouco melhores do que carroçáveis.
Nos idos dos anos 50 e 60 os principais transportes coletivos para o alto sertão eram o trem e umas poucas companhias interurbanas, que arriscavam seus ônibus em estradas pouco melhores do que carroçáveis.
A hoje BR-230, principal rodovia que corta o Estado da Paraíba de leste até extremo-oeste, só era pavimentada até a cidade de Campina Grande. Os pavimentos eram grandes placas de cimento, que com frequência rachavam ao peso do tráfego.
Depois de Campina Grande a BR era uma larga estrada de terra até Patos, e daí a Cajazeiras, a oeste, e Conceição a sudoeste. Nessa época a rodovia não passava por Santa Luzia, e sim por Salgadinho, hoje rodovia PB-228, onde havia a temível Serra da Viração, horror dos caminhoneiros, como sugere o nome.
Quando foi criada a BR-230 esta passou a passar por Santa Luzia, ampliando em muito o percurso. Dizem que isso aconteceu graças à forte influência dos políticos locais.
De Patos dirije-se ao Vale do Piancó percorrendo a BR-361 até o Estado de Pernambuco. Este ramo da estrada era pouco mais resistente do que barro ou areia, e passava por Santa Terezinha, Catingueira, Olho D’Água, Piancó, Itaporanga (então Misericórdia), Boa Ventura, Diamante e Ibiara, até chegar a Conceição.
Na época então muito pequena, a cidade de Olho D’Água tinha uma peculiaridade: só tinha uma rua de acesso. O primo Dehon dizia, jocosamente, que o ônibus entrava e saía de ré, pois não havia como fazer a manobra. E que ninguém descia e ninguém subia, na cidade. Nem uma carta deixavam...
Bom, eu acho que não era bem assim. O fato é que nunca um estudante-passageiro tinha sido testemunha do uso do ônibus da Gaivota por algum habitante local. Talvez pelo fato de que, a esta altura da viagem, todos os estudantes já estivessem àquela altura!
A única companhia de ônibus que nos levava até Misericórdia, e daí para Conceição, era a Gaivota. Antes dela só existiam caminhões de boléia e carros de praça.
Nas férias de junho viajávamos com Mamãe e Papai no ônibus da Gaivota, para passar as férias em Misericórdia. Nossos pais permitiam que os filhos mais velhos seguissem sozinhos.
Para eles era uma deliciosa aventura, pois viajavam juntos com os colegas, que retornavam à cidade para passar as férias com as suas famílias.
Muitos dos colegas eram figuras excêntricas, e, portanto hilariantes. Uma delas era o saudoso Cleanto Pinto. Ele hoje provavelmente seria diagnosticado como portador de TDH.
Não ficava quieto. Não suportava ficar parado. Por isso ele chegava ao cúmulo de comprar dois assentos: um nas primeiras poltronas e outro nas últimas. Isso permitia com que ele ficasse a viagem toda se mudando para a dianteira e para a traseira do ônibus.
Nesses tempos era permitido transportar passageiros em pé. O bilhete era mais barato, claro. Esses passageiros menos afortunados acumulavam-se ao longo do corredor do ônibus, os mais altos equilibravam-se segurando corrimãos presos ao teto. Os mais baixos seguravam-se nos encostos das cadeiras.
Muitos eram matutos, caipiras voltando de uma consulta médica na capital, ou de alguma necessidade premente que lhes obrigou a realizar aquela viagem, dias antes.
Era o caso de Dona Lídia, em pé no corredor à altura do assento 18. E de Seu Prudêncio, agarrado ao teto ao lado do assento 20. Ambos eram sertanejos, e portanto de índole muito tímida e introvertida.
O ônibus já saiu lotado de João Pessoa e com uma hora de atraso, para festa dos estudantes a bordo, alguns deles levando a sua própria garrafa de cana e um saquinho de cajás para tira-gosto. Muitos deles já haviam “começado” a viagem enquanto esperavam, na Praça Pedro Américo, em frente ao belíssimo prédio do Correios e Telégrafos, e do Quartel da Polícia Militar.
Pela importância o ônibus passaria pelas cidades de Campina Grande, Soledade, Juazeirinho, Salgadinho e Patos. Depois desviaria para o Vale do Piancó, pelas cidades já citadas.
Lá pras tantas, entre Soledade e Juazeirinho Seu Prudêncio perguntou, respeitosamente, a Dona Lídia:
“A senhora é de Santana dos Mangueiras?” Ela não respondeu.
O ônibus seguiu viajem. Alguns passageiros desceram em Patos, onde outros subiram ocupando os seus lugares. O casal continuava em pé quando o ônibus se dirigiu para o Vale do Piancó.
Lá pras tantas, entre Catingueira e Olho D’Água, ela respondeu:
“Não.” A viagem prosseguiu.
Quando ônibus estava chegando a Misericórdia Dona Lidia perguntou ao Seu Prudêncio:
“E o senhor é de Santana dos Mangueiras?” Ele não respondeu.
Duas cidades depois, chegando a Santa Maria do Ibiara ele respondeu:
“Não”
Os dois desceram em Conceição. E nunca mais se falaram na vida...