Gosto de chuva. Não sou sertanejo, mas gosto de chuva. Gosto gratuitamente, sem nenhum interesse, salvo o prazer físico - e metafísico, diria - de vê-la cair, também gratuitamente, sobre o mundo, sobre a paisagem, como que lavando e purificando tudo, até mesmo o que dela se encontra protegido, sob um teto. Fosse eu do campo, compreensível seria esse talvez esdrúxulo gosto pluvial, pois que lá, na campanha, tudo ou quase tudo depende da água que cai do céu, que a tudo dá vida, como se participasse, em alguma medida, da própria divindade fecundante. Mas, não. Sou urbano, profundamente urbano, nascido, criado e formado na urbe, mesmo que aldeã, todavia, urbe, em suas mais autênticas vocação e expressão citadinas.
Da janela ou da varanda, contemplar a chuva que cai sobre a rua, sobre o quintal, sobre o jardim. E aqui contemplar é mesmo a palavra certa, pois que não se trata simplesmente de ver, mas de olhar refletindo, ou apenas divagando, transportado para além do lugar de onde se contempla. Uma transfiguração momentânea e passageira. Mistério de que temos vaga ciência. Sensação, entretanto, da qual temos plena certeza.
A chuva como faxineira do mundo. Lavando calçadas, ruas e avenidas, purgando-as. A impressão, nem sempre confirmada, de que tudo estará mais limpo depois dela. As folhas das árvores, as plantas e flores em geral, e os telhados, sim, restarão brilhantes, como que novos, livres da poeira trazida pelo vento. Das sarjetas, desprender-se-á todo tipo de entulho, o descarte pouco educado de transeuntes distraídos. O asfalto e as pedras dos calçamentos cintilarão novamente como no dia da inauguração. Até as pessoas, molhadas, renovar-se-ão, como se saídas de um chuveiro restaurador.
Por isso, gosto de Londres, urbe que conheço superficialmente, mas que sempre me encanta nos filmes com o céu cinzento e a temperatura amena, pressupostos do elegante vestuário próprio, marca de uma civilização aprimorada nos séculos. Costumo dizer, com certo exagero, que nunca assisti a um filme inglês que não fosse bom. A chuva quase cotidiana da Inglaterra deve ter parte nisso, certamente. É algo que me atrai de cara, fazendo-me fatalmente imergir na trama, interessado.
Sei que uma coisa é contemplar a chuva de um lugar abrigado; outra, é estar exposto à intempérie por necessidade, sem tempo nem espírito para reflexões. Ver a chuva londrina dos filmes a partir do conforto de nossa cama aquecida é bem diferente que viver cotidianamente naquele cenário, acordando na madrugada escura para ir trabalhar logo cedo. O velho contraste entre ficção e realidade. Sim, sei disso, mas... que fazer?
Melancolia da chuva. Sim, há uma certa melancolia na chuva. Mas não necessariamente mórbida. De tal modo, que talvez seja mais correto falar-se no caráter reflexivo da chuva, a qual, por ser naturalmente intimista, costuma nos levar para dentro de nós mesmos e não para fora, como o sol, cujo vínculo normal é com a exterioridade. Evidente que pode haver tristeza sob a luz do céu azul e alegria sob o cinza dos dias úmidos. Sei de tudo isso e ainda assim...
A chuva e a casa. Há um vínculo inato entre ambas, desde sempre, desde as cavernas, onde o homem antigo se protegia do mau tempo. Se não precisamos obrigatoriamente de sair para a rua, a chuva tende a nos reter em casa, guardados entre as paredes e o teto familiares, aconchegos cotidianos, ricos ou modestos, estreitos ou largos, de cada qual. A casa e sua intimidade, com ou sem chuva, mas acentuada por esta, que cai como uma cortina translúcida separando-nos do mundo.
Uma observação necessária: quando falo dessa chuva que acalenta, não é dos temporais nem das tempestades intimidantes que estou falando, claro, mas da chuvinha calma, mansa, quase uma carícia, que não destrói, não alaga, não causa dor a ninguém. Porque é imperioso, nos dias chuvosos, pensar nos que estão nas ruas sem um teto e nos barracos precários dos morros deslizantes. Esse inevitável pensamento solidário compõe certamente a melancolia da chuva, trazendo-nos, neste particular, para fora de nós, em direção ao semelhante fragilizado. Compaixão na chuva.
Os que amam a chuva não renegam o sol, é preciso lembrar. Na vida, sabemos, há lugar e hora para tudo. Mas o amor à chuva, à doce chuva molhadeira, é especial, não tenho dúvida. Por sua provável raridade e principalmente por sua quase mística delicadeza.
Posso estar enganado, mas a chuva melhora os homens.