Os dez últimos anos de vida de Belchior, o genial cantor e compositor cearense que tanto impactou a música popular brasileira, foram e continuam sendo um mistério, mesmo com todas as informações colhidas até hoje pelos que se dispuseram a desvendar o enigma. Um livro recentemente publicado, de título Viver é melhor que sonhar – os últimos caminhos de Belchior, de autoria dos jornalistas Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti (Sonora Editora, 2021), ajuda muito na compreensão dessa década obscura (2007-2017), mas ainda assim resta muita coisa não esclarecida,
até porque o próprio Belchior guardou só para si as razões mais íntimas da decisão que o levou ao que nós podemos chamar de “exílio”.
Os fatos exteriores desse voluntário exílio são hoje mais ou menos conhecidos. Em 2007, depois de completar sessenta anos, Belchior rompeu com sua vida tal qual era até então. Separou-se de Ângela Margareth Henman, com quem foi casado por mais de trinta anos e teve dois filhos, e gradualmente foi se afastando da família, dos antigos amigos, da vida artística, enfim, de tudo que possamos chamar de “vida normal”, para assumir, ao lado da nova companheira Edna Assunção de Araujo, também chamada de Edna Prometheu, uma existência praticamente nômade, anônima, com muitas dificuldades financeiras e, a partir de certo ponto, também fugitiva da lei e dos credores.
É provável que Belchior não tenha tido, inicial e completamente, consciência da virada de rumo que estava dando à sua existência nem das inúmeras consequências da ruptura com a “normalidade”. Ele certamente não pensou, quando decidiu afastar-se de tudo, que as coisas tomariam uma direção caótica, destrutiva e irreversível que o levaria a passar fome, dormir ao relento, usar roupas emprestadas, fugir de hotéis sem pagar a conta, morar de favor na casa de estranhos, não ter dinheiro para absolutamente nada, perder seu patrimônio, enfim, transformar-se praticamente num mendigo. É possível que, no começo do rompimento com a vida pretérita, ele buscasse apenas um tipo de afastamento provisório, uma certa desconexão com a carreira e suas exigências, uma certa fuga que lhe permitisse descansar e refazer-se à margem da estrada. Mas aí as coisas saíram de seu controle e ele nunca mais conseguiu – ou quis – retomar as rédeas da vida.
E o curioso é que durante esses dez anos finais, com tantas agruras e tantas dores, Belchior manteve-se o mesmo homem cordial de sempre, “firme, sereno, cheio de bom humor, interessado no outro”, conforme apuraram os autores do livro citado, após ouvirem várias pessoas que o acolheram em sua caminhada trágica e sem destino. Essa cordialidade é unânime nos depoimentos dos que cruzaram o caminho do cantor nesses anos marginais. Sempre uma pessoa gentil, sem amargura, comunicativa, que procurava compensar o comportamento difícil da companheira que o guiava, como se dele fosse senhora e dona. Sobre isso, pode-se dizer, para usar um chavão, que nunca perdeu a ternura, e que, perdendo-se, encontrou-se finalmente.
Essa companheira, que entrou em sua vida de repente e dela se assenhoreou completamente, era, pelo que se apurou, uma pessoa instável e talvez mesmo desequilibrada do ponto de vista psíquico. E, no entanto, ele se deixou levar e conduzir por ela, docilmente, rumo ao abismo cada dia mais próximo. E ela nem era muito bonita, essa enigmática Yoko Ono do nosso Lennon cearense.
Nesses dez anos de exílio, Belchior pouco pegou em violão e raramente cantou alguma de suas belas canções. As pessoas com quem conviveu nessa fase final, sem saber de seus dramas interiores, normalmente lhe pediam para cantar, mas ele sempre – ou quase sempre – conseguia se esquivar,
E assim foi sua vida até o final. Vida nômade, marginal e de fuga. Fuga da lei, pelo não pagamento de pensão alimentícia; dos inúmeros credores, pela não quitação de dívidas; da vida regular de outrora, por tudo que ela representava de compromissos com as pessoas e o mundo. Durante a madrugada de 30 de abril de 2017, após ter-se deitado, com dores nas costas, no sofá do escritório da casa em que vivia em Santa Cruz do Sul, Belchior partiu dormindo. Sua aorta rompeu-se sem nenhum aviso. E, em silêncio, ele finalmente encontrou a paz que vinha perseguindo há anos.
Uma pergunta que resta e para sempre restará sem resposta é por que Belchior quis se apartar do mundo, deixando para trás tanta coisa que lhe era cara, como família, carreira, amigos, um certo conforto, uma certa segurança. Ninguém poderá desvendar tamanho mistério, que é da ordem mais íntima e mais profunda. Esse é um segredo que o próprio exilado não quis revelar em nenhum momento de seu degredo. Entretanto, pela intuição, podemos nos aproximar um pouco, mesmo que de longe, de suas personalíssimas razões, pois quem de nós, em algum instante da vida, já não teve a tentação de jogar tudo para o alto?
Cada vez mais, cresce o reconhecimento de Belchior como um dos maiores talentos da história de nossa música popular. Um poeta, um cantor, um compositor, um intelectual inigualáveis. Talvez um gênio. Irmão sofrido de Rimbaud, de Bob Dylan e de John Lennon. Irmão de todos os rapazes latino-americanos em busca de um destino. Irmão sobretudo nosso, nordestinos e brasileiros, cujas angústias e sonhos soube cantar belamente como ninguém.