Pego o pincel à procura de uma tela. Para um pintor com dotes para lá distantes dos de um Monet, um Van Gogh ou um Dalí, repasso na mente imagens e reconstruo cenários da eterna cidade Parahyba. De repente, visito a Lagoa como uma página de um caderno de colorir. Parece-me alguma cena entre janeiro/dezembro, meio ano findo e tempo novo, sem chuvas, um espaço para serem derramadas diversas cores, cheiros e sabores.
Ali o verde e o amarelo proliferam. Algo bem apropriado para pinturas em inícios de setembro, com ar pré-primaveril. Espicho a mão com cautela, empino o pincel e inicio a brincadeira.
Chuvinha de flores amarelas despencam dos ipês tradicionais da cidade. Pequenos para-quedas soltam das copas das grandes árvores para formar um tapete na grama. Olhos captam esguichos esverdeados das palmeiras que imperam ao redor do antigo charco há décadas dominado e urbanizado. Traços minúsculos para sinalizar a presença das garças em sobrevoos sobre a água verde-turvo ou nas margens em brincadeira de estátua.
Por ali, no centro da cidade, novas pinceladas na aquarela pessoense. Verdes esparramados também pela Bica em manhãs dominicais. Plantas, animais e o movimento de brinquedos infantis.
Em fins de tarde, os amarelos se tornam laranjas e vermelhos pelas frestas e portas e janelas do Centro Histórico. Douram paredes coloridas de casas antigas, preservadas ou semi-destruídas. Muitas memórias em toques rápidos do pincel pelas paredes de prédios famosos ou anônimos, paralelepípedos incompletos, cafés aquecidos pelas mãos amadas.
Em pinceladas reconstruo a Festa das Neves de outrora, com a catedral da dominar o cenário e multidões a circular por entre parque e barracas de maçãs do amor e outras guloseimas.
Das paredes e das histórias, repinto o Palácio da Redenção, a Praça João Pessoa e a antiga Faculdade de Direito, pontos de reflexões, lutas e (in) decisões. A mão sobre a tela acaricia as igrejas de idades e arquiteturas distintas e o pseudo pintor abusa dos tons pasteis.
No Liceu Paraibano, uma parada sentimental do coração de estudante. O prédio que repousa ao longo da Avenida Getúlio Vargas ganha artista pequenos pontos coloridos para sinalizar seus famosos vitrais.
A aquarela pede cenas cotidianas. O pincel é generoso ao retratar os feirantes a vender miríades de coisas à venda dependuradas em incontáveis bancas do Mercado Central e tantas feiras de sábados. E tem a alegria do menino anônimo a correr com pés descalços atrás de uma bola dente de leite meio murcha num campinho desnivelado na periferia. E encontra a menina fardada a sorrir na ida ou volta da escola no trajeto do ponto da condução e de encontro novamente da Lagoa.
Dali, uma esparramada para a orla. Seguindo o traço de curvas do Rio Jaguaribe, quase morto na realidade, vivo na pintura e memória de um dia o ter atravessado a pé. Ele segue vívido com o seu leito formado de pedras junto à ponte do que se chamava Estrada de Cabedelo, a BR-230 ainda não duplicada em algum dia dos obscuros anos 70.
Ali perto, o céu pintado ganha pontinhos multicores. Quantos saltos de para-quedas observados do alto da barreira, enquanto os pequenos cogumelos descem lentamente do céu após pular de um avião passageiro até pousar no Aeroclube. Por estes tempos onde os prédios não atrapalhavam a cena.
Depois, seguir para o encontro com o mar, na pintura cuja cor dominante passa a ser o azul de serenos oceano e céu. E relembrar nos traços as antigas manhãs de caminhada para encontrar as águas e areias ainda não poluídas de Manaíra.
Hoje, quase é possível sentir a lufada do vento mudando o rumo na orla do Cabo Branco e de Tambaú. Assopro que enverga as palhas do coqueiral, dobradas feito folhinhas de papel seda. Na pré-noite, o mergulhar mais recentes de tons divididos do fim de tarde. E os sons soturnos do baixar o véu noturno. Raios rápidos pontilham de luzes a cidade vista de cima.
É noite e a tinta parece que nunca acaba para essa cidade real e imaginária.