O caminhão com a leva de homens, acomodados como podem sobre a carga de postes, dobra a esquina com estardalhaço e sobe, num ronco só, a pequena ladeira na entrada da cidade. Estanca, assim que atinge a parte plana da rua principal, e dele já vai saltando, na iminência do aguaceiro, uma algazarra de capas impermeáveis, amarelas, umas, outras pretas, em busca por qualquer coisa que lhes sirva de abrigo, mas ainda a tempo de ver, à curta distância, a instantânea trilha de fogo seco que lembrou a diáspora luminosa de semáforos na chuva – numa tarde já quase apagada por estranha e precoce escuridão.
O enorme dardo de fogo – entre vertical e inclinado – caiu quebrado em linhas duras, impossíveis de prever, num descompasso certeiro e em direção ao solo. Deixou na retina um requebro de raio parecendo hesitar. Certa vacilação que, nalgum instante tem-se a impressão de perceber em passos de dançarinos de tango, antes que revele sua natureza indecídua. Mas terá sido apenas um momento de ilusão: no que a luz azul se abre e se fecha, a dança hipnótica e apavorante, de passes elétricos, já se executara.
Mas foi aí que ouviram o mundo partir-se num estrépito, cujo epicentro só seria percebido fora de suas cabeças (já entre os braços, baixadas no puro reflexo) quando aquilo passou ribombando por cima delas, no que continuou enquanto lhes forneceu outra – rápida – ilusão: a de que uma imensidão de tempo transcorrera antes daquele matraqueado começar a se transformar em algo parecido com um tropel de imprecações se afastando. Começariam então a erguer cabeças, estremecidos ainda, mais instáveis do que o mundo em volta, pois este finalmente se precipitava na forma absoluta de uma cortina cerrada, ozônica, pesada e oblíqua, de fazer doer à pele.
A partir dali, a chuva bateu firme e compassada, em disciplina já antiga e uníssona de monção, e agora como se não tivesse nenhuma pressa, fosse uma sucessão de forças incontroláveis que, por si, inexplicavelmente, mudasse de diapasão, retroagisse até, e sendo, a partir dali, interrompida apenas pelo som áspero das rajadas de vento que lhe abrem fendas inesperadas, deslocam molhes de chuva hirsuta, a intervalos curtos, franjas variadas que se arremetem em saraivadas regulares, emitindo violentos plangeres, que arrancados fossem ao alaúde de um velho e arquetípico tangerino – na falta de imagem mais feliz - que houvesse passado infeliz provação através da fealdade e silêncio dos desertos, e agora, numa inútil demonstração de ressentimento, golpeasse as cordas desse alaúde numa velocidade que não daria a perceber mais que uma instantânea elevação de notas, seguida de corte seco, numa quase equivalência com esse árdego chicotear nas pedras, paredes e telhados, e, por momentos, abafando o interminável murmúrio que ainda agora ouviam, de um rolar interminável e à distância, feito um eco de céus desabando longe.
A salvação é o pequeno hotel em frente, cujo refeitório com quatro mesinhas é o salão de entrada, e que os permite abrigarem-se, em pé, batendo uns nos outros, enquanto o dono corre a fechar as portas (lutando com uma delas que se acha emperrada), o que faz enquanto as constantes rajadas continuam atirando para dentro do recinto bátegas cortantes, duras e frias como agulhas, numa saraiva extremamente violenta que bate neles todos, à altura dos ombros, pelas costas, matraqueando sobre suas capas e alagando o salão. Mas então aquele homem, num enorme grito do chão com a porta, conseguiu vedar a entrada. Então isso parou.
Porém continuaria o forte e acachapante barulho de serra que a chuva fazia acima de suas cabeças, e um pequeno tumulto que eles mesmos começaram a fazer, pois, de portas fechadas, o restaurante tinha mergulhado numa penumbra irreconhecível para eles, às quatro da tarde.
Alguns começam então a amontoar-se nos fundos, onde um balcão de madeira, em dois lances, fecha um dos cantos do salão. O balcão é forrado por vidros, mas a penumbra não lhes permite distinguir bem o que há disponível por trás deles. Percebem, porém, mais no fundo, em prateleiras pelas paredes, aquele brilho fosco e enfileirado de garrafas - o que lhes parece dar ânimo novo, contribuir para aumentar a balbúrdia estranha e inesperada.
Mas já o dono se havia posto ali, e fazia o possível para atendê-los. Era um homem com mais de cinquenta anos, de aparência forte, tez escura, ágil e solícito, enquanto tentava acomodá-los fizera várias perguntas, e àquela altura já sabia a razão daquela invasão súbita de pessoas estranhas.
De instante a instante pipocam novos trovões, e os homens percebem a imediata resposta do temporal, que, a cada vez parece recrudescer um pouco mais, ficar mais ensurdecedor. Não esperavam aquilo, nunca daquele modo, jamais tanto frio. Estão todos encolhidos agora, e no meio deles, alguém com o maxilar trêmulo e falando o mais alto que pode pede uma garrafa, outro, quase gritando pergunta se tem café.
O homem não demora nem um pouco, traz uma garrafa e dispõe vários copos no balcão, falando também aos gritos Há café, sim Respondeu Esperem só um pouco, é muito inverno Declarou A patroa está providenciando Respondeu a outro Onde, que vão ficar Perguntou Ainda não sabem Concordou Vocês têm uma ideia de quanto tempo leva isso Perguntou Sim, sim, aqui servimos almoço e janta Respondeu Não, não, essa chuva vai entrar pela noite, mas não se preocupem, a patroa já...
Nisso, uma pequena chama surge através do vão de frente para o balcão, no final desse salão, e que dá entrada para a sala de refeições, ao lado. A chama traz para o ambiente de penumbra uma diferença impossível de não notar. De imediato, todos olham naquela direção e veem uma mesa, e de pé, ao lado, o vulto de alguém.
Começam percebendo que aquele vulto bombeia uma lanterna sobre a mesa: a chama cresce à medida que ele calca o dispositivo na base da lanterna – um pistão com um botão na extremidade. A ação injeta gás numa espécie de câmara na parte superior, um invólucro de gaze, e que logo estará inflamado e brilhante o bastante.
Por um instante a cena desperta em alguns a lembrança do imenso trabalho que irão ter naquele lugar, e em seguida todos veem, por fim, a comprida e delgada mulher que se veio acendendo aos poucos como se fosse a lenta exumação de um espectro.
Mas eles agora já podem enxergar o surrado vestido que lhe chega até quase os tornozelos, e quando aquela imagem por fim se compõe na retina, podem perceber um rosto gretado, de idade indefinível, e que lhes falará sorrindo com uma esgrima de voz que tem algo de débil e talvez cansada pelo uso demasiado ao longo de uma vida, cuja simplória prodigalidade, cuja anônima e tenaz trajetória, eles adivinham logo –- feito uma súbita irrupção de luz dentro de outra irrupção de luz — ter vindo o tempo inteiro se construindo e desconstruindo entre a aspereza e a ternura, a luta e a bondade, os racionamentos de crise e as expansões da fartura, as negativas ferozes da integridade e as credulidades da pobreza, porém num tom surpreendentemente alto, cantante - num quase falsete - e muito além do rumor da chuva, Agora vai Ela diz.