Tendo assumido a APL em 14 de agosto de 1992, Tarcísio Burity era titular da cadeira número 26, que tem como patrono o padre Inácio Rolim. Seu discurso de posse, intitulado Pedro Anísio, foi uma exaltação à atualidade do pensamento filosófico e pedagógico do antecessor que, em 1923, já negava o fator racial como principal determinante do progresso das comunidades humanas. Associando-se, portanto, ao pensamento de Boas, Desmoulins e outros sociólogos modernos.
Constituindo-se a cadeira 26 de uma sequência de pensadores e educadores, desde o patrono e passando por todos os ocupantes, Tarcísio vai buscar, na estátua de Atenas, pensativa, apoiada sobre sua lança, a mensagem final para seu discurso de posse. "É o símbolo da união entre o saber e a coragem", explica ele, para, em seguida, propor aquele ícone como ideal acadêmico: "Que esse símbolo seja também o nosso, a fim de que as gerações mais novas aprendam que não existe nada de mais digno do que o saber a serviço das grandes causas".
Apaixonado pela cultura grega, reportava-se frequentemente aos temas e valores daquela civilização como verdadeiros motivos recorrentes, identificados em grande parte de seus pronunciamentos. E igualmente referidos, mesmo em conversas informais, onde o entusiasmo de suas convicções sempre resvalava para a compreensão erudita de todas as coisas.
Ouvi-lo, acompanhar o desenvolvimento matemático de seu raciocínio era um dos encantos desta preciosa convivência. Não que ele se impusesse por arrogância ou convencimento. Mas pela necessidade intrínseca, que fazia do exercício da inteligência uma prerrogativa de sua natureza. Se tivesse que lembrá-lo por uma só palavra, eu escolheria diálogo, pois nenhuma outra revelará, com tanta propriedade, o traço que consubstanciou a sua maneira peculiar de estar no mundo, a sua definitiva afirmação de ser. Por formação, por escolha ou por vocação.
Ao concluir uma conferência ou ensaio, após o silêncio e isolamento impostos pelo ato de escrever, submetia o texto à apreciação. Neste aspecto, era de uma surpreendente simplicidade, quase tangenciando a humildade. Não buscava elogios. Queria a análise crítica, a leitura verdadeiramente acadêmica. O diálogo do saber, que compreende a falha ou a imperfeição como estágio para o crescimento e a superação.
Antes de escrever, Tarcísio convivia longamente com os temas escolhidos. E fazia parte deste processo a exposição oral, em repetidos encontros, como forma de testar a pertinência e a originalidade dos aspectos a serem desenvolvidos. Era a consciência científica, no rigor de sua honestidade, sabendo que escrever pressupõe o compromisso de descobrir e acrescentar.
Se o tema era literário, cercava-se ainda de maiores cuidados. Foi assim, quando produziu a conferência O trágico em José Lins do Rego e Gilberto Freyre, proferida no Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Mas, no instante de ler, é que ele ainda se superou. Porque então era o professor em toda sua plenitude, com tal poder de domínio e de convencimento que o texto surpreendeu, como se, antes, existisse apenas a letra, o poema e, naquele instante, tivesse recebido a melodia que o transformara em canção.
Lamentavelmente, a política interrompeu esta vocação pedagógica. Aparentemente, como se fosse o aceno de um Destino benfazejo que premiasse a inteligência e o saber com a possibilidade da ação resolutiva, concedendo-lhe o poder de interferir sobre a contingência histórica. O poder de influir sobre o tempo presente e os homens futuros. Um sonho de Prometeu, cujo despertar inclui, de forma inevitável e para todo o sempre, o ataque dilacerante da águia e a mortificação do rochedo.
Em sua grande admiração pela cultura grega, nenhum tema foi tratado por Tarcísio com tanta intensidade quanto o trágico. Mas não falarei em premonição, embora seja quase impossível deixar de associar os acontecimentos de sua experiência individual à sequência de ações estabelecidas na teoria aristotélica para a configuração da tragédia e de seu herói.
No entanto, a preferência de Tarcísio por este tema tinha razões objetivas. Fazia parte de uma seleção de valores que integravam sua visão de mundo e, por consequência, a sua compreensão do homem.
Neste aspecto, não se restringia somente à cultura grega. Identifica-se claramente, em suas afirmações, a adesão a pensadores como Unamuno, Pascal, Kierkegaard, Kant, em suas formulações sobre a grandeza e a pequenez do homem. A humana aspiração ao absoluto e a consciência da extrema fragilidade perante o universo infinito. A certeza do caminhar inevitavelmente para a morte e de nada poder contra esta fatalidade.
Enfim, reflexões sobre o milagre da consciência, que é o homem, submetido, sem possibilidade de ação, às armadilhas do tempo, diante do absoluto soberano e impassível.
Tarcísio percorria toda uma sequência histórica de autores e de conceitos para concluir que, "entre os valores e sentimentos próprios da condição humana, o sentimento trágico da vida é o mais verdadeiro, porque mais próximo à nossa natureza de seres inteligentes e dotados de senso de moralidade".
Não mais que uma adesão filosófica, forma de aprofundamento do olhar sobre o sentido de existir, sem nenhuma intenção biográfica ou confessional.
É inegável, porém, que dois tempos ostensivamente contrastantes compuseram o trajeto desta individualidade em sua experiência existencial. E, na linha divisória, a reviravolta com a intensidade irreversível da ação trágica. Realidade que instiga associações, como a que traz lembrança os versos de Augusto, supondo Tarcísio como sujeito da enunciação:
Gozei numa hora séculos de afagos,
Banhei-me na água de risonhos lagos
E finalmente me cobri de flores…
Mas veio o vento que a Desgraça espalha
E cobriu-me com o pano da mortalha.
Muito se tem repetido que a vida imita a arte e os exemplos são inumeráveis. Neste caso, a vida tam bém confirma uma concepção filosófica.
À semelhança de Édipo, o desventurado rei tebano, Tarcísio se expôs ao desafio extremo e falaz: "decifra-me ou te devoro". A política foi a sua Esfinge.