A figura da madrasta comumente faz lembrar personagens desprovidas de afeto, inclusive estereotipadas negativamente pela sonoridade (“má”) da palavra portuguesa. Diferente da versão francesa: “belle mère” (bela mãe) ou do inglês “stepmother” (um grau de mãe) — que poesia... Nos filmes, romances e fábulas infantis são tenebrosas as referências de crueldade.
Na vida real também. Um dos conhecidos e comoventes exemplos é o de Chico Xavier, muito maltratado por sua (nada) belle mère, na difícil infância. Sofrimento compensado pela descoberta da mediunidade, ao ser visitado pelo espírito da mãe em conversas confortadoras e revigorantes. A outra parte de sua notável história, dispensa aqui considerações.
Imagine quando a “madrasta” se personifica numa malvada tia “afim”, que passa a tutorar a órfã desamparada após a morte do tio, que dela cuidava desde a partida da mãe… Este, o início do revolucionário romance “Jane Eyre”, de Charlotte Brontë.
Muitas eram as dificuldades da convivência doméstica, não apenas pela falta dos pais, do tio, mas sobretudo por enfrentar o desprezo de todos, agravado pelo pior tipo de bullying — o que ocorre dentro de casa — que incluía até agressão física. As razões de tanta rejeição não se limitavam ao fato de Jane não ser filha, irmã legítima, mas — o que é ainda pior — por ser desprovida dos protótipos superficiais que tão equivocadamente conceituam a beleza de alguém.
Repudiada, mas longe de se curvar à repressão, a garota nutre progressivamente a convicção da necessidade de se impor. Ainda mais difícil pela condição feminina, num tempo em que a mulher era tão discriminada e desvalorizada. A típica hegemonia intelectual do homem na era vitoriana, período simultaneamente vivido pela autora e personagem, talvez confundidas na opção pela narrativa autobiográfica, obrigou Charlotte (tal como suas irmãs, Anne e Emily Brontë) a se esconder no pseudônimo com que assinou a obra. O que já demonstra o desejo de que Jane fosse diferente.
E foi! Perante o destino que a colocou naquele ambiente e a rudeza com que a tratavam, a rebeldia foi determinante para sua evolução, assim como de muitas mulheres que vieram a ler Jane Eyre, o marco dos “romances de formação” (Bildungsroman), na Inglaterra, já preconizado na Alemanha por Goethe em “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”.
Os sortilégios infligidos a Jane estavam apenas começando. A personalidade forte que se delineava nas renitentes reações ao constante subjugamento que sofria foi confundida propositalmente como patologia psíquica para recomendar a sua internação em um orfanato.
A nova fase é igualmente desafiadora. Ainda que sob condições materiais muito limitadas, ela consegue estudar francês, piano, bordado, atividades condicionalmente femininas dentro dos rigores da escola. Nestes oito anos de confinamento, Jane progride, conhece a amizade, desperta a sexualidade, sofre perdas, confronta-se com a doença, com a morte de uma amiga íntima e fortalece suas convicções pela independência, por um espírito livre e pela coerência de princípios. Conhece mais de perto a influência da religião no ser humano, nem sempre harmonizada com os princípios verdadeiros da doutrina em que se baseia. Por vezes constata a hipocrisia que se interpõe entre valores e conduta. Até que se torna professora, nos dois últimos anos de internato.
Ela quer mais! Candidata-se com boas referências a uma vaga de preceptora e passa a viver em uma tradicional mansão administrada por uma governanta de quem se torna amiga. Ali conhece laços familiares mais saudáveis do que os cruelmente vividos na infância, causa boa impressão e cultiva admiração recíproca pelo dono da casa, o Sr. Rochester, por quem se apaixona. Mas há muito mistério, fatos sobrenaturais, tentativas de incêndio, condutas esquisitas, gritos e gargalhadas nas noites densas e sombrias da gótica atmosfera de Thornfield Hall.
A convivência com o Sr. Rochester torna-se mais próxima e ambos se envolvem em um romance que caminha para o casamento, subitamente desfeito quando Jane descobre que o noivo esconde a esposa, psiquicamente enferma, confinada em um dos quartos da mansão.
Desolada, decidida a não se macular nem corromper princípios éticos já consolidados, foge sem ser vista, antes do amanhecer. Longe, depara-se frente a frente consigo mesma, e conclui:
“Posso viver só, se o respeito próprio e as circunstâncias assim o exigirem. Não preciso vender minha alma para comprar bem-aventurança. Tenho um tesouro interior nascido comigo, que pode me manter viva, mesmo se todas as delícias estranhas forem negadas”.
Este encontro consigo descortina-lhe uma realidade ao sabor de déjà vu. Desde que nasceu, as provações a que esteve predestinada a enfrentar se sucederam sem trégua. Logo aprendeu que só podia contar com ela mesma, sua melhor companhia, sentindo-se fortalecida a cada obstáculo.
Em busca de auxílio, é surpreendentemente acolhida por uma família com quem passa a viver. Outra vez, a figura masculina se lhe apresenta marcante, à medida que cativa o dono da casa, clérigo e recatado pregador. A nova aproximação com a religião confere-lhe uma melhor impressão sobre a distância entre a teoria e a prática cristãs que trouxera dos tempos de orfanato, onde pairava a hipocrisia. Afinal, o pastor Rivers dedica-se com sinceridade indubitável às obras comunitárias.
Apesar desta admiração, Jane não cede ao pedido de casamento e à proposta de seguir com o missionário na sua jornada por outras terras. Mesmo porque vem a tomar conhecimento de fausta herança deixada para ela por seu tio, o que a faz decidir retornar a Thornfield para reencontrar aquele a quem nunca deixou de amar.
A fatalidade que se sucede oscilando com frequente intensidade no caminho de Jane já é percebida por ela como leitmotiv. Revivendo cenas do triste passado, recebe novo golpe, drástico e violento ao saber do grande incêndio provocado pela esposa do Sr. Rochester, em que ela se suicida, deixando-o cego e mutilado.
Com toda a desgraça, o reencontro se reveste do sentido mais amplamente atingido por sua consciência até então. Sabe que tudo que marcou sua vida de maneira tão severa fortaleceu-a, encorajou-a, fez-lhe crescer em sabedoria, solidificou sua coragem para evoluir e contribuir com um exemplo para o mundo feminino. Ainda que houvesse intenção da autora de se projetar na personagem, uma vez que se recolheu convenientemente sob o véu do anonimato, foi formidável a repercussão de Jane Eyre. Um romance emblemático, marco da luta feminista, contra discriminação e preconceito, justamente numa época — a vitoriana — em que a opressão ao gênero grassava em todas as classes sociais, ainda com mais culpabilidade nos meios intelectuais ditos sábios e cultos.
A obra até hoje instiga mulheres, incentiva-as em sua luta por igualdade e provoca mudanças profundas nas reflexões e atitudes de quem a lê. Sua relevância promoveu transcrições, recriações, dramas sequenciais e adaptações em diversas formas de expressão, no cinema, rádio, séries e minisséries para TV, óperas, balés e até uma sinfonia!
Entre as mais de 160 obras do compositor John Joubert, repertório que inclui grandes corais, oratórios, réquiem, motetos, 3 sinfonias, concertos para piano, violino, violoncelo, fagote, sonatas, trios, quartetos e octetos, há 7 óperas. Uma delas — Jane Eyre! — quem sabe a mais aclamada, foi composta com libreto de Kenneth Birkin (escritor e doutor em Música) baseado no romance de Charlotte Brontë.
Joubert, músico britânico nascido na África do Sul (1927-2019) era confesso admirador de “Jane Eyre” e trabalhou durante 10 anos para compor a ópera homônima (opus 134, em dois atos) estreando-a em outubro de 2016, no Ruddock Performing Arts Centre, em Birmingham, com magnífica aclamação da crítica.
No ano seguinte, 2017, John Joubert acrescenta ao opus 178 sua 3ª sinfonia, reiterando o fascínio pelo romance e a gratidão ao libretista Kenneth Birkin, a quem dedica a obra dividida em 5 movimentos.
Nesta “Sinfonia sobre temas da ópera Jane Eyre” consolida-se o desejo do músico de escrever algo realmente dramático sobre o romance. Obviamente, ele já o havia alcançado através do canto lírico, na criação operística, mas queria retratar a saga da eloquente personagem com caráter grandiosamente sinfônico, uma vez que no trabalho anterior havia usado uma orquestra de dimensão moderada.
Agora, sim. A sinfonia oferecia total liberdade para se expressar de maneira ainda mais rica, intensa, épica, com todos os ingredientes do célebre enredo vitoriano. Para Joubert, nada como a música pura para transmitir com extrema beleza a obra romanesca de sua predileção. Nada mais afinado com o que escreveu a crítica e professora de Literatura da Universidade de Rouen (França), Stéphanie Bernard, em seu ensaio Uma história sem fim:
“A narrativa em Jane Eyre é a música com a qual ela dança, passando de momentos de alegria a momentos de angústia, de períodos de esperança a períodos de dúvida. As oscilações da escrita impõem um ritmo ao ato de ler enquanto permitem que outras mentes recebam o texto e o reescrevam em novas obras de arte”
Variadas criações reencarnaram o romance de Charlotte Brontë, entretanto dar-lhe nova vida em uma bela sinfonia como a terceira de John Joubert, no início de um século em que, equivocadamente, supõe-se que a criação erudita não possua a pujança de priscas eras, foi algo soberbamente inusitado. Há, sim, muita música clássica sendo composta atualmente, mas não tão veiculada ou mesmo ofuscada pelas produções de massa, bem mais ao gosto do frenesi consumista, na mira de um mercado imediatista e descartável. Um fenômeno descultural que atinge não apenas a música, mas muitas outras formas de expressão da arte.
Os temas selecionados por John Joubert lapidam a sinfonia com essência dos episódios mais marcantes dos fatos e da vida de Jane Eyre. Foi repartida em cinco movimentos:
Thornfield House | Lento |
Lowood School | Andante / Allegro |
Thornfield Church | Andante / Allegro |
Whitecross Rectory | Lento / Allegro |
Thornfield Park | Allegro |
Os andamentos remontam aos significativos lugares do romance e em que a ópera se encena, estruturados nos interlúdios que musicalmente os separam, escolhidos sem exatidão cronológica.
O início tremulado , com ares de prelúdio de tragédia lírica, sugere as tardes frias de outono na escola onde Jane foi internada após as tristes experiências sofridas em casa. Há uma certa atmosfera de suspense, perpassada pelas primeiras investidas orquestrais , seguidas de nostálgicos acenos nos sopros, em melodias que crescem trazendo dramáticas lembranças do angustiante período de violência e agressões sofridas na infância. Entre tudo, percebe-se a importância da escola para as descobertas que lhe vieram com as experiências enriquecedoras desta fase. O clima se ameniza nos derradeiros instantes que antecedem o segundo movimento: Thornfield House.
Sob toques de alvorada , a segunda parte descortina horizontes, a simbolizar a nova e impactante fase da vida de Jane. De início, o romantismo paisagístico desenha as belezas do lugar , a imponência da arquitetura e o deslumbramento diante do renovado e inusitado momento.
Os mistérios logo surgem à espreita. Aos poucos avolumam-se, revelando sinais intrigantes, aspectos curiosos no início, mas depois preocupantes e ameaçadores. Sons e gargalhadas que se escutam nas madrugadas, alguns eventos de natureza sobrenatural, intuições mediúnicas repentinas, surpresas que sucessivamente se aduzem recomendam acautelamento. Sem desanimar, Jane mostra-se sempre pronta ao enfrentamento do que a vida lhe apresenta. Neste andamento, John Joubert demonstra talentosa habilidade orquestral, a lembrar o pós-romantismo de Shostakovich, nas inserções rítmicas, diversidade tímbrica, sob o requinte da percussão delicadamente pontual, inclusive com xilofone. Os instantes solenes, ora marchantes, narram a suntuosidade cênica da edificação vitoriana e de seus surpreendentes labirintos, vez por outra entremeados de olhares à amplidão campestre do parque que acena do exterior pelas grandes janelas.
O movimentado terceiro episódio — Thornfield Church — representa uma das mais importantes partes do romance, quando o mistério da esposa enclausurada do Sr. Rochester é desvendado, a partir do protesto feito por dois estranhos presentes à cerimônia do casamento na igreja de Thornfield. Joubert introduz ritmo marcado impetuosamente , que simula a marcha de volta à mansão, quando o quarto é invadido por todos no fatal encontro com Bertha Mason, a mulher atormentada. O cortejo se alterna com o tema “Bertha” , em meio ao suspense que permeia todo o andamento, com referências ao fogo, tema recorrentemente mencionado, nos incêndios em Thornfield. Tudo cresce em direção à dramática finalização que reflete mais uma fatal rebordosa do destino que sacode Jane.
O quarto movimento — Whitecross Rectory — inicia-se sombrio , pois conduz ao local que testemunhou o ensejo de maior intensidade emocional: o reencontro da protagonista consigo mesma, sob fatalidade inexorável. Após saber que seu noivo era casado, recusa-se a prosseguir, embora apaixonada, por não conseguir ferir seus solidificados princípios ético-morais. Foge antes do alvorecer e, completamente só, fita o horizonte, arregaça mangas e coragem para seguir em frente. Felizmente, logo encontra um lar que a abriga, propiciando-lhe nova etapa em sua pedregosa caminhada. A sinfonia retrata aqui com maestria o entusiasmo musical contagiante de Jane, erguendo soberbamente a cabeça às desafiadoras perspectivas. É dura a situação. Por vezes, vacila, reluta, receia, mas retoma forças para encarar a realidade por mais áspera que pareça. A melodia sugere ânimo, desenvoltura e coragem . Reitera o argumento crítico de Stéphanie Bernard: “é a música com a qual ela dança, passando de momentos de alegria a momentos de angústia, de períodos de esperança a períodos de dúvida [...] As oscilações da escrita impõem um ritmo ao ato de ler”. O destemor é tônica presente em todo este belo movimento, autenticamente inspirado na personalidade intrépida e aguerrida, tão bem esculpida por Charlotte Brontë.
Por fim, a resignação se consome suavemente preludiando a introdução do último andamento: Thornfield Park.
A música rodopia no ar! É hora de voltar. Jane promulga o que se pode denominar o coroamento de sua conturbada jornada existencial. Urge que retorne. A empolgante melodia insinua sofreguidão e velocidade para consumar a decisão. Está confiante, certa do seu amor, único e último desejo de realização. Sucede-se o bucolismo campestre a desenhar paisagens que ficam pelo caminho , desfilando aos olhos e às lembranças de tudo que viveu até então. Pressente intuitivamente que não será fácil a realidade que a espera. Mas mantém a calma, pois é de serenidade o que ela mais precisa para se deparar com seu grande amor, agora sem os olhos que tanto a contemplaram, debilitado, sem uma das mãos, mas com o coração, guardado há anos para lhe devolver, pleno de afeto, independente de tudo o que passou.
Com ênfase impetuosa , John Joubert conclui exatamente da maneira como sonhou a sua homenagem àquele considerado até hoje um “romance sem fim”. Vivo, renovado, construtivo, permanentemente capaz de transformar ideias, semear o bem, recriar a arte sem limites, sob qualquer plumagem que sublime o amor, dignifique os valores éticos, humanísticos e estéticos. A exemplo da Música, que atravessa séculos contagiando e burilando o espírito para transcendência e evolução do próprio Ser.