Porque a vida não basta é que existe a arte, afirmou, com toda razão, o poeta Ferreira Gullar. Pegando carona na frase, acrescentaria que pelo mesmo motivo, ou seja, pelo fato de a vida apenas não nos bastar, é que são sonhadas as utopias. Poderia ir mais longe e dizer que é por isso, porque a vida em si mesma, isto é, a realidade, é insuficiente, que são sonhados todos os sonhos, desde os mais comezinhos, como a milhar do jogo do bicho, até os mais grandiosos, como as referidas utopias. O fato é que, criando arte ou utopias, os homens estão sempre indo além do aqui e agora, transcendendo, enfim, mesmo que não necessariamente pelo viés religioso, pois que há muita transcendência laica por aí.
Mas fiquemos agora com as utopias, ou seja, com aquilo que os dicionários definem nos seguintes termos: “lugar ou estado ideal, de completa felicidade e harmonia entre os indivíduos”, e ainda: “qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade”. Fiquemos com essas fantasias poderosas, de que são exemplos clássicos A República, de Platão, A cidade do sol, de Tommaso Campanella, e a célebre Utopia, de Thomas Morus. Todas imaginando — e de certa forma prometendo — sociedades perfeitas, onde os homens poderiam ser felizes para sempre. Tais quimeras sempre tiveram proponentes, seguidores — e crentes — ao longo dos tempos, o que é compreensível, da mesma forma que se compreende os que caem no conto do vigário — e em golpes semelhantes - diariamente, no mundo todo. Em sua incurável fragilidade existencial, o homem quer sempre acreditar em algo, principalmente nas ficções mais grandiosas.
O interessante é que A República, A cidade do sol e Utopia descrevem — e propõem — sociedades totalitárias, completamente regradas, sem nenhum espaço para eventuais discordâncias, onde a “felicidade” de cada um já vem determinada desde o nascimento, sem direito a recurso. E mesmo assim encantam a muitos, tal como a serpente encanta o passarinho que devorará.
O filósofo Luiz Felipe Pondé tem uma frase muito boa — e verdadeira — em seu recente livro Política no cotidiano — A ironia como método de sobrevivência (Editora Contexto, 2021). Escreve ele: “Distopias na história são, geralmente, utopias que se realizaram e destruíram o cotidiano”. Reflitamos. O filósofo está afirmando que geralmente, na história, ou seja, concretamente, os projetos de utopia realizados normalmente terminam em distopias, isto é, em antiutopias. É como se o paraíso ficcional resultasse em inferno na vida real.
Tomemos um exemplo de distopia imaginária: a sociedade descrita por George Orwell em 1984. Lá estão, entre outras mazelas, o autoritarismo, a total ausência de liberdade individual e a vida das pessoas sob absoluta vigilância estatal, o que significa dizer sem qualquer privacidade e submetida ao medo permanente, pois tudo, tudo mesmo, está sempre às vistas do “Grande Irmão“, o Big Brother, que de irmão não tem nada.
Passemos então para três grandes projetos utópicos do século XX, por exemplo: o Terceiro Reich de Hitler, a U.R.S.S. de Lenin, Stalin e companhia, e a China de Mao (principalmente a da Revolução Cultural). Em todos os casos, a mesma sociedade autoritária, sem liberdade individual, perseguidora e assassina dos dissidentes, discriminatória contra minorias, controladora dos mínimos aspectos da vida privada dos súditos, etc etc. Ou seja, infernos reais que nasceram de paraísos fictícios. Distopias que se originaram de utopias, confirmando a verdade da frase de Pondé. A propósito, o Reich nazifascista e a U.R.S.S. socialista deveriam durar mil anos, pelo menos na cabeça de seus formuladores. O primeiro durou 12 anos e o segundo em torno de sete décadas, o que é nada em termos de história.
Até mesmo a poética utopia da Pasárgada de Manuel Bandeira é problemática. Vejamos porquê. “Vou-me embora pra Pasárgada/Lá sou amigo do rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei/ Vou-me embora pra Pasárgada”. Nestes versos iniciais, o que chama logo a atenção é o fato de que em Pasárgada há um rei, isto é, alguém que manda e, ao que parece, manda de forma absoluta, pois só o fato de o poeta ser seu amigo é suficiente para assegurar ao bardo o privilégio de ter a mulher que quiser, na cama que escolher. Cabe perguntar: quem não é amigo do rei também tem direito a essas mordomias? É provável que não. E aí, por conta desse nítido clientelismo, já fica prejudicada a perfeição do paraíso bandeiriano, não é mesmo? E para corroborar essa falha paradisíaca, em Pasárgada também “Tem prostitutas bonitas/Para a gente namorar”. Pergunto: é concebível, mesmo por licença poética, existir prostitutas no paraíso? É complicado, pois no Éden, imagina-se, o amor não deveria ser objeto de comércio.
Por tudo isso, há que se desconfiar dos vendedores de utopia, pois normalmente são estelionatários, gente que vende uma mercadoria (o paraíso) e não entrega. Principalmente se políticos salvadores da pátria.
É certo que a vida apenas não basta, como bem falou o poeta, mas neste caso é melhor ficar com ela mesma, sem ilusões.