O filme Uma Casa à Beira-mar (La Villa, França, 2017), tem início com um homem que, sozinho na varanda, contempla o cenário idílico da paisagem marítima do sul da França. Seu êxtase e silêncio diante daquela paisagem também nos invade. Imerso na beleza do lugar, o senhor idoso se inundará também de sangue ao extremo. Sofre um acidente vascular cerebral e emudece. Literalmente.
Com a saúde debilitada, o patriarca recebe seus três filhos: Armand (Gérard Meylan), Angèle (Ariane Ascaride) e Joseph (Jean-Pierre Darroussin), este acompanhado da bela Bérangère (Anaïs Demoustier), que ele apresenta como “minha namorada jovem demais”. Esse tipo de enredo já é nosso conhecido. Morte, casamento, eventos-limites que juntam as famílias para involuntários acertos de contas. Com a vida. Ou com a morte.
A partir daí, o filme nos apresenta uma história sobre a busca do tempo perdido por uns, o sarcasmo/ironia de outros e a nostalgia pelo passado, que faz parte de todos nós humanos e que se instaura num lugar, numa lembrança, e/ou numa história de vida pra contar.
Passei o filme todo a lembrar do amigo/jornalista/memorialista Petrônio Souto que, como um bom nostálgico que é, pela antiga Parahyba pequena e bela, há algum tempo vem nos brindando no facebook com uma exposição de fotos da nossa João Pessoa de antes, linda e pitoresca. Uma vila também. E a de depois, cheia de marcas do progresso e desenvolvimento, e o que isso possa significar, com prós e contras. Vieram também as nossas saudades todas, seja por um coqueiro, um areal, uma rua — se fosse minha —, seus lampiões/postes alaranjados, um centro de cidade bucólico, um bonde... um desejo pelo que passou. Cenas de um lugar que, ao longo dos anos, foi se deteriorando ou simplesmente desaparecendo. Com o cenário, a história de cada um também desapareceu. Se fosse um deserto, as dunas se afogariam nas areias para se formar novas configurações da geografia. Novos oásis? Talvez!
Outras imagens: facebook.com/petronio.souto.9
Como não fazer referência também ao filme brasileiro Aquarius (2016, Kléber Mendonça Filho), que me levou a pensar nos cupins, na metáfora da invasão imobiliária e na expulsão dos seus moradores? Inclusive a minha própria expulsão do Bessa. Por esse e tantos outros motivos.
Em Uma Casa à Beira Mar, o diretor Robert Guédiguian usa a beleza do lugar e os três irmãos — secundados por Bérangère, pelo casal de vizinhos idosos e seu jovem filho médico Yvan (Yann Tregouët), que vem visitá-los — para levantar questões sobre o passar do tempo e sobre o que o tempo faz com os lugares — os pequeninos especialmente — e seus habitantes. O cenário é composto por uma baía, seus pescadores, peixes em abundância, polvos/povos, refeições à beira da mesa farta e calma. Tudo a contrastar com o turismo desenfreado, a imigração ilegal, a invasão dos estrangeiros clandestinos. Quem serão os novos habitantes desse pequeno paraíso? Gente que chega com o piado das gaivotas e que se esconde nas encostas em busca de um lugar todo seu. Acolhimento e expulsão, eis a questão da nova geopolítica mundial, mais especificamente europeia.
E entre um gole de vinho e uma ostra teremos: Armand, o filho que ficou e tenta a todo custo manter funcionando o restaurante e a vida do pai; faz de conta que pode parar o tempo; Joseph, que usa da sua ironia mordaz e suicida para detonar toda e qualquer tentativa de apaziguamento com o tempo. Mas que, aos poucos, vai abrindo novas trilhas/porteiras nas encostas, e nas suas próprias dificuldades; Angèle, que, carrancuda de tristeza e rancor pela perda da filha, espanta todos que se aproximam, mas assim como os outros personagens, também é fisgada pela tinta de um polvo, numa pedra secreta da infância, e com esse fisgado, também se deixa levar pelo marinheiro fã a lhe mostrar o poder do aqui e agora.
Um casal de vizinhos, também idosos, não se adapta ao novo mundo. E nessa vida a questão crucial é adaptação. Coisa difícil para os mais velhos e nostálgicos. Ouço todo dia a frase: “Ah! No meu tempo...” Para esses, o tempo passado se esvaindo pelos dedos é algo tão inaceitável que é melhor morrer do que aceitar ajuda. Nem que essa ajuda signifique a vida. Por quê? pra quê? ou com quem viver? Se eu não tenho mais o protagonismo que tive a vida toda? Alguns não se contentam com a ideia de que o tempo passa. Passou. E junto com ele tudo o que me era querido e parecia imutável.
No meio do caminho tinha um trem. Uns arcos. E esse vai-e-vem de um trem dá o contraste do antigo e pacífico, como o novo e conturbado. Mudanças são conturbadoras. No filme, assim como em O Cidadão Ilustre, temos também a ferida dos que ficam em relação aos que partem. Uma certa mágoa incrustada naquelas pedras e ventos. Uma traição espelhada nos semblantes dos personagens de Armando x Joseph; ou a forma de como reage o casal de idosos com a ajuda do médico e bem sucedido filho Ivan. Yvan (Yann Tregouët). O extremo!
Pensar nessa casa à beira mar do filme me trouxe também reflexões da minha própria casa, que não tem o cenário belíssimo do filme, mas que também me expulsa de casa com suas construções sufocantes ao meu redor; o desequilíbrio do bairro – trazendo-me timbus, gatos solitários, e barulhos de sons ao redor. Procuro pelo canto dos passarinhos, o cheiro de maresia e café que me acolhiam aqui há 34 anos, e já não os ouço ou sinto. Os cajueiros? Foram derrubados. As boiadas que aqui passavam deixando estrume pra todo lado? Também fazem parte do imaginário. O por do sol do Jacaré? Que eu tinha aqui do meu jardim? Alaranjou só para quem lá for. E o Bar do Adeval? Onde fazíamos parada obrigatória na volta da praia, por entre cervejas e cachaças? Foi assaltado, numa clara e evidente mensagem: “Ana, querida, antes que tenhas um AVC como o personagem idoso do filme, vá cantar em outras paragens”.
Des-Obediente, Vou!