O poema “Barcarola”, inserido por Augusto dos Anjos no Eu, remonta a uma tradição cultivada pela poética medieval. Segundo Segismundo Spina, a poesia luso-galega nos legou ao todo quinze barcarolas, sendo que treze delas apresentam estrutura paralelística. Também conhecido por marinha, esse tipo de composição versa sobre assuntos ligados ao rio ou ao mar.
Modernamente, nem sempre isso ocorre. No projeto de pesquisa “Precursores medievais da poesia moderna”, de que participei com o professor Maurice van Woensel, deparamo-nos com uma barcarola composta por Vinícius de Moraes na qual o mar ou qualquer referência à água estão ausentes. Mas isso é uma exceção. No geral, na poesia do Romantismo para cá, à barcarola associam-se evocações, sugestões ou pinturas de alguma forma ligadas ao elemento marinho.
Entre os que cultivaram modernamente a barcarola destacam-se, além de Augusto dos Anjos, Almeida Garrett, Castro Alves, Alphonsus Guimaraens e Olegário Mariano. Nas composições desses autores, a referência ao mar aparece – mas com sentidos, usos e efeitos distintos. Nos cantares medievais, por ser um elemento pragmaticamente associado ao sofrimento da mulher – à qual subtraiu o amigo ausente –, o mar tem um emprego mais concreto. Constitui-se antes em metonímia do que em metáfora. Na medida em que se desfaz como referência geográfica e histórica, ele cresce em ressonâncias significativas, amoldando-se ao imaginário, aos ideais e à retórica dos diferentes estilos de época.
Assim é que, na barcarola de Castro Alves “O gondoleiro do amor”, o mar de início empresta alguns dos seus atributos ao corpo da mulher: “Teus olhos (...)/ São ardentes, são profundos,/ Como o negrume do mar”. Posteriormente, aparece como uma imagem desse mesmo corpo, com o qual se equaciona linguisticamente por meio do verbo de ligação: “Teu seio é vaga dourada/ Ao tíbio clarão da lua,...”. Explica-se então a referência do título: na qualidade de gondoleiro, o eu lírico singra metaforicamente o corpo da mulher, com os seus prazeres e mistérios. Ou melhor, com as suas alternâncias de luminosidade e escureza, tempestade e calmaria, conforme se lê no poema.
Em Alphonsus de Guimaraens, a alusão ao mar tem ressonâncias quase místicas. O que se tematiza não é mais a relação “homem e mulher”, e sim um sublimado conúbio entre a lua e um parceiro que não se define. Desmaterializado, o mar não mais vale por suas águas, por sua grandeza imanente; ele é tão-só o espelho, a trilha que reflete o movimento do luar no céu. Aparece sobretudo como símbolo. Em certa estrofe, o eu lírico indaga: “Para onde vai a deusa errante,/ Macerada, cheia de mágoas?/ Sacode a cabeleira ondeante/ E esparze lírios sobre as águas.”. E na estrofe seguinte afirma, através inclusive da correspondência cromática, a transcendência do elemento marinho: “O céu é inteiramente azul,/ O mar está da mesma cor.”.
Que dizer da representação do mar na barcarola de um autor como Augusto dos Anjos? Assim como os dois poetas citados, ele cultiva essa espécie literária adaptando-a ao seu artesanato e ao seu temperamento. Por via disso, em sua composição, a delicadeza nostálgica dá lugar à angústia rude, dramática e concreta diante da morte. Vejamos o poema:
Barcarola
Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas.
Espelham-se os esplendores
Do céu, em reflexos, nas
Águas, fingindo cristais
Das mais deslumbrantes cores.
E em fulvos filões doirados
Cai a luz dos astros por
Sobre o marítimo horror
Como globos estrelados.
Lá onde as rochas se assentam.
Fulguram como outros sóis
Os flamívomos faróis
Que os navegantes orientam.
Vai uma onda, vem outra onda
E nesse eterno vaivém
Coitadas! não acham quem,
Quem as esconda, as esconda...
Alegoria tristonha
Do que pelo mundo vai!
Se um sonha, outro se ergue e cai;
Se um cai, outro se ergue e sonha.
Mas desgraçado do pobre
Que em meio da Vida cai!
Esse não volta, esse vai
Para o túmulo que o cobre.
Vagueia um poeta num barco.
O Céu, de cima, a luzir
Como um diamante de Ofir
Imita a curva de um arco.
A Lua -- globo de louça --
Surgiu, em lúcido véu.
Cantam! Os astros do Céu
Ouçam e a Lua Cheia ouça!
Ouçam do alto a Lua cheia
Que a sereia vai falar...
Haja silêncio no mar
Para se ouvir a sereia.
Que é que ela diz?! Será uma
História de amor feliz?
Não! O que a sereia diz
Não é história nenhuma.
É como um réquiem profundo
De tristíssimos bemóis...
Sua voz é igual à voz
Das dores todas do mundo.
"Fecha-te nesse medonho
"Reduto de Maldição,
"Viajeiro da Extrema-Unção,
"Sonhador do último sonho!
"Numa redoma ilusória
"Cercou-te a glória falaz,
“Mas nunca mais, nunca mais
“Há de cercar-te essa glória!
“Nunca mais! Sê, porém, forte.
“O poeta é como Jesus!
“Abraça-te à tua Cruz
“E morre, poeta da Morte!”
-- E disse e porque isto disse
O luar no Céu se apagou...
Súbito o barco tombou
Sem que o poeta o pressentisse!
Vista de luto o Universo
E Deus se enlute no Céu!
Mais um poeta que morreu,
Mais um coveiro do Verso!
Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas!
O que primeiro nos chama a atenção é que se trata de um poema composto em redondilha maior. O poeta privilegiou em sua obra, composta basicamente de sonetos e peças longas, o verso decassilábico. Ao praticar uma forma (ou fôrma) antiga, ligada ao Medievo, certamente ele procurou se inserir na tradição da lírica galego-portuguesa, optando por um metro popular.
A barcarola que ora estudamos compõe-se de dezoito quadras, sendo que a última repete a primeira. Num total de 72 versos, após a descrição de um cenário sombrio (estrofes 1 a 4), seguida de filosóficas considerações sobre o sentido da aventura humana (estrs. 5 a 7), Augusto dos Anjos tematiza o encontro entre o poeta e a sereia (estrs. 8 a 15). Nesse encontro o eu lírico não fala, só ouve. E o que ele ouve, além da veemente censura ao seu idealismo e às suas ilusões de glória, é um sombrio vaticínio acerca do futuro que o espera, bem como a intimação a que se conforme e saiba, à maneira de Cristo, morrer pelos homens. As estrofes finais (16 e 17), antes de fechar-se o poema, referem a morte do poeta – o que nos dá a impressão, logo confirmada, de que a sereia representa o destino.
É fácil perceber que a barcarola decalca outro poema do paraibano – “As Cismas do Destino”. Também nessa composição ocorrem a pintura sombria de um cenário e reflexões sobre o sentido da vida humana, bem como a manifestação de uma voz suprema e funda, carregada de presságios, que abomina a figura do eu lírico e prevê a sua morte.
No poema, uma referência de ordem intertextual se impõe: a que o aproxima da famosa composição de Garrett “Barca Bela”, também uma barcarola. Em ambos ocorre o motivo do canto da sereia, que por sinal remonta ao Canto XII da Odisseia. No texto de Homero cantam “as sereias”, no plural, mas o propósito dessas entidades mitológicas é o mesmo que no de Garrett: seduzir, enfeitiçar os navegantes, levando-os à morte.
Em ambas as composições, do mesmo modo, observa-se o emprego do verbo “velar”. Na segunda estrofe de “Barca Bela”, lê-se: “Não vês que a última estrela/ No céu nublado se vela?/ Colhe a vela,/ Ó pescador!”; num sutil jogo retórico, à terceira pessoa do singular desse verbo segue-se o seu homônimo perfeito, designativo do artefato que, estendido e impulsionado pelo vento, conduz a embarcação. Em Augusto dos Anjos, logo na primeira estrofe, está escrito que “Uma sereia a cantar/ Vela o Destino dos nautas.”. Nele o emprego da forma verbal torna-se mais expressivo devido à ambiguidade: a sereia tanto esconde, obscurece (sentido que o termo tem em Garrett), quanto vigia e acompanha os navegadores. Ou seja: tem, em comum com o destino, o mistério e a inexorabilidade.
Segundo observa Freud, o destino é a última entidade na série iniciada com os pais e traduz o poder cerceador do superego. Confundido com o destino, o canto da sereia “não é uma história de amor feliz” (v. 42); ao invés de maravilhar ou seduzir, ele “...É como um réquiem profundo/ De tristítissimos bemois.../ Sua voz é igual à voz/ Das dores todas do mundo.” (vv. 45-48). Afirmando que o canto da sereia “não é uma história de amor feliz”, o poeta não deixa de reconhecer nele a promessa de satisfação amorosa. No entanto, nega esse reconhecimento – ou melhor: denega-o, no sentido psicanalítico, só permitindo que ele se expresse sob a forma negativa. Freud mostra que o símbolo da negação é uma forma de o pensamento se libertar das limitações do recalque e reconhecer o desejo.
O eu lírico ignora ou finge ignorar o apelo da sereia porque é próprio do melancólico defender-se do erotismo e preferir Tanatos. Configurando o campo semântico da morte, constam no poema em estudo as referências à cor negra, presentes sobretudo nas últimas estrofes: “O luar no Céu se apagou...”, “Vista de luto o Universo”; as perífrases com que a sereia designa o “poeta”: “Viajeiro da Extrema-Unção”, “Sonhador do último sonho”, “poeta da Morte” e “coveiro do Verso”; e todo um acervo lexical ligado à ideia de desastre, cemitério e miséria: “horror, tristonha, desgraçado, túmulo, silêncio, tombou, luto etc.”.
As palavras da sereia constituem o limite a partir do qual o cenário alegoricamente se inverte, ou seja, deixa de figurar o brilho e o esplendor cromático e passa a traduzir a escuridão e a ruína. É próprio da alegoria, figura essencialmente ligada à melancolia e à culpa, representar a natureza como escombros e escuridão. Antes de a sereia falar, a Lua espelhava os seus raios nas águas “fingindo cristais”; depois do sombrio vaticínio, “o luar no Céu se apagou” e, simbolizando um infortúnio supremo, o Universo “(vestiu-se) de luto”.
Ainda no plano lexical, evidencia-se nessa barcarola a preferência por vocábulos preciosos ou eruditos, reflexo da influência que, sobretudo na primeira fase do poeta, exerceu o Simbolismo. São exemplos desses termos: “nautas, cristais, fulvos, flamívomos, Ofir, réquiem, viajeiro etc”. Quanto à estrutura, registra-se outro recurso característico de Augusto dos Anjos: o de alternar elementos descritivos com genéricas considerações de ordem filosófica – atitude essa, por sinal, também típica do melancólico, que se compraz em observar e refletir sobre os homens e as coisas. Nas estrofes V e VI, por exemplo, é o elemento natural, animizado, que serve de imagem à reflexão sobre o destino humano: “Vai uma onda, vem outra onda/ E nesse eterno vaivém/ Coitadas! não acham quem, /Quem as esconda, as esconda...// Alegoria tristonha/ Do que pelo mundo vai!/ Se um sonha e se ergue, outro cai;/ Se um cai, outro se ergue e sonha.”.
. Do que foi acima exposto, percebe-se que não somente de ruptura e dissonância vive a poesia moderna. A literatura se alimenta do diálogo entre modernidade e tradição, e se renova persistindo. Não é raro que autores contemporâneos resgatem formas e modelos antigos, enriquecendo-os com novos temas, novos procedimentos artesanais e, sobretudo, com novos matizes de sensibilidade – conforme demonstra o aproveitamento de uma espécie medieval pelo “poeta da morte e da melancolia”.