Não há dia melhor para uma faxina do que a Quarta-feira de Cinzas. Em uma delas, acordei com essa disposição. Curar Ressaca? Não briquei carnaval. Revirar as cinzas? Talvez... O certo é que já amanheci virada entre as gavetas, guarda-roupa, pastas, arquivos... os secretos também. O que a gente acha nesses arrumações! Uma carta perdida, um postal de um lugar longínquo, um guardado qualquer, uma roupa que não serve mais, um sapato fora de moda (tem isso?), coisas inúteis que juntamos com a certeza de um dia jogarmos fora. Que bom ver sacos e mais sacos de "lixo". O tal "lixo afetivo". Criei esse nome agorinha mesmo.
Pois que entre os guardados reencontrei o meu vestido do Afeganistão. Sei que o país já teve dias mais comentados, é certo, mas o meu vestido não. Um dia, na década de 70, perambulando por Portobelo Road (Notting Hill), em London London, fiquei perplexa diante de uma barraca cheia de vestidos lindíssimos, do Afeganistão. Aquela coisa de menina, diante de uma vitrine, em estado de torpor, sem saber o que fazer com a beleza daquelas roupas. Roupas do Oriente sempre foram o meu fascínio. Fiquei em estado de contemplação, que só olhar me bastava. Anos mais tarde, ganhei um presente de D. Otaviana Tavares, minha sogra na época, vinda de uma viagem à Europa. Para minha surpresa, era o vestido afegão. Aquele vestido dos meus sonhos guardou-se para, anos mais tarde, vir parar em meu guarda-roupa. Talvez meu olhar de deslumbramento tenha ficado gravado naquele tecido e naquelas cores, e fez o vestido procurar sua dona, mesmo do outro lado do mundo. Foi um dos presentes mais especiais que já ganhei. Ele era meu!
Certo dia fui a um casamento com a vestimenta. Não era bem um vestido de casamento. Mas nunca segui muito essas regras. Um vestido de chita, rodado, bordado e tal, por que não serviria? Eu o faria servir! Chegando à igreja, outra surpresa: encontro uma amiga com um vestido igualzinho. Em vez de constrangimento, rimos à toa! Como é possível – dois vestidos do Afeganistão na capela do Pio X? Sentimo-nos pertencentes a uma irmandade, uma sensibilidade afim. Dois vestidos que, como os tapetes voadores do Oriente, perdiam-se nos ventos paraibanos. E ficamos de par-de-jarro a noite toda. As pessoas talvez tenham pensado em damas de honra... Só pode!
Por esses tempos, em que o Afeganistão esteve na pauta, lembrei do vestido. Depois de tantos anos, meu corpo já não lhe reconheceu... Toquei-lhe o algodão cru, senti a textura das linhas, das costuras, das pinças, e pensei nas mulheres que o confeccionaram, talvez vestindo suas burcas e se perguntando quem seria a mulher que o vestiria... Um dia... Por um instante, senti orgulho em dizer: Eu.
PS: Escrevi este texto há quase 20 anos. O vestido continua aqui comigo. Acho que vou pendurá-lo como uma bandeira de resistência. É a minha homenagem singela às mulheres do Afeganistão, mas não só a elas. Ao seu povo que tenta desesperadamente fugir nas asas de qualquer objeto voador, para sobreviver a uma guerra que com certeza não foram os civis que começaram.