Quebrei uma ponta do dente da frente. Primeiro, foi o susto e depois, ao olhar no espelho, enxerguei um buraco negro do tamanho do mundo. Não havia nada a fazer às 23 horas de uma sexta-feira. Mesmo tendo a melhor dentista e amiga, nunca a incomodaria em tal horário.
Pesarosa, fui dormir. Mas, todos conhecem os pensamentos ruins que surgem nas madrugadas. Comigo não foi diferente. Imaginava que o dente quebrado não teria como ser consertado, teria que fazer um implante. A causa provavelmente era a velhice, que fatalmente enfraquecia os ossos. Ou era deficiência de uma das vitaminas A, B, C, D, ou E... sei lá. Era falta de cálcio. Porque não tomei leite, que detesto, ou comi peixes, brócolis, agrião, acelga?
Impaciente, levantei na madrugada para olhar o tamanho do rombo que havia no dente. Acendi as luzes da casa e as gatinhas/morceguinhas me observavam com um interrogador olhar amarelo. Verifiquei que a perda no dente não era tão grande assim, apesar de feio. Para quem gosta de rir, gargalhar, um buraco de alguns milímetros, se torna gigantesco na aparência.
Aproveitei a insônia para assistir a um filme e felizmente consigo dormir. Acordo com o telefonema do meu filho perguntando como passei a noite. Relato, com dramaticidade, sobre o dente quebrado. Sério, ele me diz que se eu morasse numa tribo indígena, não haveria problema pois, provavelmente teria o cargo de assobiadora da tribo. Deus é bom e me perdoará a quantidade de palavrões que disse a ele.
Meio receosa, levanto para começar o sábado. Ao olhar no espelho, vejo que o quebrado é menor que imaginava. Coloco o pedacinho que quebrou e ele se encaixa perfeitamente no lugar. Uma boa cola ajeitará o prejuízo. Acomodo minha usual máscara no rosto, coloco um biquíni e vou aproveitar a praia. Afinal, em um corpo com todos os órgãos no lugar, nenhuma doença, total disposição, a falta de um pedacinho de dente não era tão trágico.
De repente, pensei o que era meu problema estético diante do enorme problema que as mulheres do Afeganistão estão vivendo.
Será que uma mulher, naquele caos que lá se implantou, tivesse um quebradinho no dente, ao menos se olharia em um espelho? A preocupação dela é pela sobrevivência dos filhos, dos familiares e de si própria. Recolho-me à minha insignificância e penso no sofrimento daquela mãe afegã entregando seu filhinho de dois meses para que um soldado pudesse salvá-lo.
Imagino o tamanho do medo daquelas mulheres que perderam seus direitos a uma vida digna vendo suas casas invadidas, seus maridos levados, suas filhas molestadas. Elas sim, vivem um problema real que levará muito tempo para terminar.
Peço ao Papai do Céu que tome conta de cada uma daquelas pessoas amedrontadas e vivendo o terror em um país tão distante do meu, mas do qual sinto as dores, mesmo não podendo ajudar em nada.
Meu dente quebrado, provavelmente será arrumado, e daqui a pouco nem me lembrarei disso. No entanto, continuarei amargurada e muito triste com as notícias dos meus irmãos afegãos. Minha compreensão sobre a maldade que algumas pessoas impõem às outras, é nenhuma.
O que aprendi disto tudo? É que a nossa mente é produtora de catástrofes, principalmente nas madrugadas e existem problemas pequenos que se agigantam em nossa imaginação. Os verdadeiros e terríveis problemas são aqueles que subjugam, aprisionam e ameaçam com dor e medo.