Texto escrito por Sérgio de Castro Pinto e Joaquim Inácio Brito
O adágio “Quem canta os seus males espanta” já diz bem da função terapêutica da música, embora o Barão de Itararé, sempre nadando contra a corrente, tenha parodiado esse provérbio numa quadrinha bastante divulgada:
“Quem canta os seus males espanta,
Diz o dito popular.
Eu canto, dói-me a garganta
E os males voltam ao lugar”.
Brincadeiras à parte, o certo é que a música serve de antídoto e de anestésico para neutralizar os males decorrentes, sobretudo, do amor. Do amor traído, bandido, impossível, incorrespondido, platônico, ferido, tímido...
A música, dizem, faz vicejar as plantas, pois as plantas também têm ouvidos... E se música e dança se confundem, são faces de uma mesma moeda, não foi por acaso que, no poema “Pneumotórax”, de Manuel Bandeira, um médico prescreveu, inusitadamente, para o doente terminal de tuberculose, “dançar um tango argentino”.
Foram muitos os médicos que se entregaram às atividades artísticas. Guimarães Rosa, ficcionista e poeta, descobriu a terceira margem do rio. Já Pedro Nava, poeta bissexto, médico conceituado, só tardiamente começou a escrever as suas memórias. E o fez com o bisturi da linguagem, na medida em que restaurava o tecido esgarçado do tempo pretérito. Isso sem falar de Dyonélio Machado, Moacyr Scliar, Afrânio Peixoto, Hélio Pellegrino... Outros, porém, a exemplo de Aldir Blanc, Paulo Vanzolini, Joubert de Carvalho, Zé Dantas e Alberto Ribeiro, acordaram cedo, muito cedo, para os acordes da música. São os médicos-compositores.
Paulo Vanzolini, que na pia batismal recebeu o nome de Paulo Emílio Vanzolini, nasceu em São Paulo, no dia 25 de abril de 1924. Formado pela USP, com doutorado em Zoologia pela Universidade de Harvard, filho de engenheiro, concluiu o colegial em 1941, tornou-se médico em 1947, casou em 1948 e, no início dos anos 50, lançou “Lira”, livro de poemas. Em 1963, passou a dirigir o Museu de Zoologia da capital paulista.
Seu primeiro LP, “11 Sambas e uma Capoeira”, foi patrocinado por amigos. Anos depois, em 1974, sai da prensa o seu segundo LP: “A Música de Paulo Vanzolini”, cujos intérpretes são Carmen Costa e Paulo Marques. Mais recentemente, em 2003, lança “Acerto de Contas”, uma caixa contendo 4 CD’S, com 52 sambas interpretados, entre outros, por Martinho da Vila e Chico Buarque.
Autor de Bandeira de Guerra , Tempo e Espaço, Raiz etc., foi com Ronda e Volta por Cima, que esse descendente de italianos firmou o seu nome na música popular brasileira. A primeira trata de um boêmio que,
“Chorei, não procurei esconder.
Todos viram, fingiam pena de mim não precisava
ali onde eu chorei, qualquer um chorava
dar a volta por cima que eu dei
quero ver quem dava
um homem de moral
não fica no chão
nem quer que a mulher
lhe venha dar a mão
reconhece a queda
e não desanima
levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”.
O médico-psiquiatra Aldir Blanc Mendes, ou Aldir Blanc, carioca do bairro de Estácio, nasceu no dia 8 de agosto de 1946 e faleceu no dia 4 de maio de 2020. Começou a compor aos 16 anos, aos 17 aprendeu bateria e criou o conjunto Rio Bossatrio. No final dos anos 60, classificou algumas composições no III Festival Internacional da Canção e no II Festival Universitário de MPB. Taiguara, Maria Creusa e Clara Nunes, foram seus intérpretes. As canções que, pouco a pouco, o fizeram despontar como um letrista de real talento, quase sempre em sintonia com a realidade brasileira, foram Nada Sei de Eterno, “Mirante” e De Esquina em Esquina. Já em 1970, classificou as músicas Diva e Amigo é Pra Essas Coisas, respectivamente, no V Festival Internacional da Canção e no III Festival Universitário da MPB.
Em 1970 conheceu João Bosco, seu principal parceiro, com quem, na condição de letrista, criou Bala com Bala, Agnus Sei, Dois pra Lá Dois Pra Cá, Kid Cavaquinho e muitas outras, a maioria interpretada por Elis Regina, que emprestou toda a sua sensibilidade cantando O Bêbado e a Equilibrista. Nessa música, evoca Clarisse – viúva de Herzog, torturado e morto pela ditadura – e Betinho, o irmão do cartunista Henfil, que amargava o exílio.
Autor de mais de trezentas letras, foi colaborador de “O Pasquim”, do jornal carioca “O Dia” e de “O Estado de São Paulo”, sempre comparecendo com crônicas perpassadas por uma ironia contundente e corrosiva, mas ao mesmo tempo impregnadas de lirismo. Publicou alguns livros, dentre eles “Rua dos Artistas e Arredores”, “Brasil Passado a Sujo”, “Vila Isabel” e “Inventário da Infância”.
Pernambucano de Parnaíba, Zé Dantas (José de Sousa Dantas Filho) nasceu no dia 27 de fevereiro de 1921 e veio a falecer no Rio de Janeiro, em 11 de março de 1962. Ainda estudante do Colégio Americano Batista, no Recife, colabora com a revista “Formação”, escrevendo artigos sobre folclore. Em 1949, conclui o curso de medicina e, no ano seguinte, vai para o Rio de Janeiro, onde se especializa em obstetrícia.
Mas é ainda como acadêmico de medicina que conhece Luís Gonzaga, de quem se tornou parceiro de algumas músicas, embora tivesse solicitado, ao “Rei do Baião”, que omitisse o seu nome do disco, pois temia a reação adversa dos seus familiares, sobretudo a do pai, de formação rígida e de temperamento pouco expansivo. Embora lhe tenha assegurado cumprir o pedido, o mestre Lua quebrou a promessa e fez questão de estampar o nome de Dantas como parceiro, talvez vislumbrando as muitas músicas que iriam compor a quatro mãos, a exemplo das antológicas Acauã, "Forró de Mané Vito", Cintura Fina, "Riacho do Navio", “A Volta da Asa Branca”, “Xote das Meninas”, “Sabiá”, entre muitas outras. E a reação do pai de Zé Dantas? Talvez, quem sabe, dentro do seu mutismo, o velho tenha inflado o peito de orgulho, pois o filho, além de médico, era um compositor de mão cheia, autor de melodias e de letras que, deitando raízes no nordeste, abeberando-se da cultura nordestina, nem por isso deixavam de ser universais.
Cidade Nova foi o bairro do Rio de Janeiro onde nasceu outro futuro médico-compositor: Alberto Ribeiro da Vinha. Ou, simplesmente, Alberto Ribeiro (1902—1971). Mas foi no Estácio, bairro onde posteriormente passou a residir, que veio a se iniciar nas lides musicais. E o fez com o samba “Água de Coco”, concebido em meados da década de 20, muito antes de Alberto migrar do curso de engenharia para o de medicina, concluído em 1931, com especialização em homeopatia.
Em 1934, compôs a marchinha Tipo Sete, cujo tema era o mercado do café, interpretada por ninguém menos do que Chico Alves. Logo depois, conheceu Braguinha, de temperamento tão extrovertido quanto as suas músicas, a maioria delas de carnaval.
Com Braguinha, estabeleceu uma parceria célebre por mais de vinte anos e da qual resultaram, sem se saber ao certo quem era o músico e o letrista, mais de oitenta canções, entre elas Copacabana, Chiquita Bacana, Yes, Nós Temos Banana, Capelinha de Melão, “Balancê” e Fim de Semana em Paquetá.
Um fato curioso merece registro: quando, em 1938, conquistaram o 1º lugar de um concurso de música carnavalesca, com “Touradas de Madrid”, a comissão julgadora reconsiderou o resultado e achou por bem desclassificar a música sob a alegação de que se tratava de um “paso doble”, ou seja, de um gênero musical estrangeiro. Quem ganhou o certame, por se adequar ao espírito do concurso, segundo ainda os jurados, foi "Pastorinhas", da dupla Noel Rosa/Braguinha.
Ironicamente, porém, a tal música estrangeira incendiou a torcida brasileira quando, na Copa do Mundo de 1950, o Brasil aplicou uma acachapante goleada na seleção espanhola: 6X1. “Touradas de Madrid”, então, num só coro, a plenos pulmões, ecoou no Maracanã, convertendo o espetáculo futebolístico numa das maiores demonstrações de canto coletivo de que se tem notícia.
Em 1956, lançou o LP “Aviso aos Navegantes”, reunindo músicas de protesto, só com composições suas feitas durante a Ditadura Vargas, o que, na época, lhe custou algumas prisões.
Foi parceiro de Alcyr Pires Vermelho, Custódio Mesquita, Dorival Caymmi, Hervel Clodovil, Lamartino Babo, Mário Lago, Pixinguinha e Marino Pinto.
Nascido no dia 6 de março de 1900, na cidade mineira de Uberaba, Joubert de Carvalho (Joubert Gontijo de Carvalho) morreu aos 70 anos, no dia 20 de setembro de 2007. Já aos 9 começou a tocar piano de ouvido e aos 13, residindo em São Paulo, compôs a valsa “Cruz Vermelha”, inspirada no hospital infantil paulista do mesmo nome.
Em 1919, transfere-se para o Rio de Janeiro, onde cursa a Faculdade de Medicina, formando-se em 1925, defendendo uma tese de doutorado cujo título já diz bem de suas aptidões: “Sopros Musicais do Coração”. Em 1932, exerce a função de médico do Instituto dos Marítimos, na então capital federal.
Tangos e fox-trotes foram as composições a que deu lume no início de sua carreira. Nos anos 20, as suas canções passaram a ser interpretadas por nomes de peso, a exemplo de Francisco Alves e Gastão Formenti. No entanto, o seu primeiro grande sucesso foi a marchinha “Taí (Pra você gostar de mim)” que, gravada pela jovem Carmen Miranda, em 1930, alcançou uma vendagem de 36.000 mil discos.
Além de músico virtuoso, Joubert foi letrista de grande inspiração: ”Minha casa é uma riqueza/ pelas jóias que ela tem/ minha casa que tem tudo/ tanta coisa de valor/ minha casa não tem nada/ vivo só não tenho amor”.
A canção “Maringá”, que inspirou o nome da Próspera cidade paranaense, só existe pelo fato do recém-formado médico Joubert de Carvalho ter sido frequentador assíduo do gabinete do então ministro da Viação, José Américo de Almeida,em busca de um emprego. Numa dessas visitas, o compositor foi aconselhado pelo oficial de gabinete, Rui Carneiro, a agradar o ministro escrevendo uma música sobre a seca do Nordeste. Surgia assim a toada “Maringá”, obra prima que relata a tristeza deixada por uma bela cabocla , obrigada a largar a sua terra, numa leva de retirantes. Claro que Joubert conseguiu o emprego tão desejado!