O suicídio é uma atitude condenável há muito tempo. No mais das vezes, por razões religiosas. No Fédon (Φαίδων), Platão é incisivo quando trata do assunto e põe na boca de Sócrates, personagem do diálogo, a afirmação de “dizerem o suicídio não ser permitido pela lei de Thêmis”, lei que servia a regular as ações dos deuses e dos mortais (οὐ γάρ φασι Θεμιτὸν εἶναι, 61c). Se o suicídio é proibido, porque, então, Sócrates se suicida? Há, pelo menos, três explicações para o fato: o Fédon não foi lido; o diálogo foi lido, mas não foi entendido; apesar de lido e entendido, prevaleceu a simplificação – Sócrates tomou a cicuta, então, ele suicidou-se.
O que se pode dizer com certeza é que, decididamente, Sócrates não cometeu suicídio. Ele foi condenado à pena de morte pelos Onze de Atenas e a execução da pena consistia na ingestão da cicuta. Em outras palavras, ele foi obrigado a tomar o veneno. A sua morte não resultou de uma ação voluntária, racional ou tresloucada, de tirar a vida, mas de uma obrigação penal.
Poderia ter o filósofo se insurgido contra a decisão que o condenou? Sim, poderia, mas de nada adiantaria, pois ele morreria de qualquer maneira. Não é outra a ação de seus discípulos, como vemos no diálogo Críton, em que o personagem-título tenta convencer Sócrates a fugir da prisão, com a ajuda dos guardas subornados, mas o filósofo se nega e dá uma aula a Críton sobre o que é a responsabilidade. Este diálogo deve ser lido antes do Fédon, porque eles se complementam. Do mesmo modo, o Fédon deve ser lido após o Fedro, para que se entenda a imortalidade da alma e a hierarquia das reencarnações, colocando o filósofo no primeiro plano. Após a leitura desses três diálogos, devemos fechar o ciclo com a leitura da República, que congrega a imortalidade da alma com a responsabilidade que ela tem na nova vida em buscar a justiça, a sua principal virtude.
No Fédon, também conhecido como περὶ ψυχῆς (Em torno da alma ou Sobre a alma), Platão discute a imortalidade da alma, a sua preexistência, fundamento da teoria das reminiscências – “aprender é recordar” (τὴν μάθησιν ἀνάμνησιν εἶναι, 91e) –, que já se encontra no Mênon, e a sua reencarnação. O que nos interessa, para este ensaio, são os trechos sobre a imortalidade da alma, que se acompanham de uma argumentação, explicando a proibição divina ao suicídio. Como os deuses são nossos guardiães, somos propriedades deles. Assim como um servo não pode pôr termo à vida sem anuência de seu senhor, os homens não podem dispor de sua vida, sem que os deuses os coloquem diante dessa necessidade (62c).
Ao se referir à necessidade em que o homem se encontra, com a anuência divina, Platão coloca no discurso de Sócrates a palavra ἀνάγκη, de extrema importância para o mundo grego, por ser uma contingência estreitando o caminho percorrido, não permitindo ao homem retornar. É por isto que Sócrates não vê absurdo ou contrassenso em alguém matar-se, estando diante da necessidade que lhe impuseram os deuses. É o seu caso: condenado por um tribunal a beber cicuta, Sócrates, tendo visto que a sua defesa diante dos juízes não tivera êxito, aceita a pena de morte, por saber, sobretudo, não estar contrariando nenhuma lei divina. A sua morte não resulta de um ato deliberado, como já sabemos, mas da aceitação de uma imposição, da qual não se pode fugir. Ἀνάγκη.
A aceitação da morte, contudo, não está ligada apenas à imposição dos Onze de Atenas. Há razões para morrer, diz Sócrates, e a principal delas, semeada por todo o diálogo, é que o filósofo não teme a morte. Contrariamente ao senso comum, o filósofo leva a sua vida preparando-se para a morte. O corpo não é apenas a prisão da alma, mas também a arrasta para o peso da degradação, que o apego à matéria desencadeia. Quanto menos comércio com o corpo e os seus prazeres, quanto maior o desapego da matéria e o cultivo da purificação da alma, maior o preparo do filósofo e a certeza de que será recebido pelos deuses com algo muito melhor para os bons do que para os maus (63c).
O filósofo é aquele que despreza o que não é necessário para a alma, preparando-a para dispensar a companhia do corpo e aprender a verdade, pois é da sua natureza buscar a verdade. Os que se apegam ao corpo e temem a morte não são amantes do saber (φιλόσοφος), são amantes do corpo (φιλoσώματος) ou amantes do dinheiro (φιλοχρήματος) ou amantes da honraria ambiciosa (φιλότιμος, 68c).
Em todo o trecho compreendido entre 61c e 72e, Sócrates nos afirma que se é proibido cometer o suicídio, para o filósofo o morrer é o desejável, como deveria ser para os demais seres humanos. A continuidade do pensamento socrático conclui que, se filosofar é uma preparação para a morte, a alma procurar evitar o comércio com o corpo (80e-81a), o que a levará a uma sintonia com o que lhe é semelhante – o divino, o imortal e a inteligência da razão (τὸ θεῖόν, τε καὶ ἀθάνατον καὶ φρόνιμον) –, na companhia dos deuses, na felicidade (εὐδαιμονία), liberta do erro, da ignorância, do medo, dos amores selvagens e dos outros males humanos (πλάνης καὶ ἀνοίας καὶ φόβων καὶ ἀργίων ἐρώτων καὶ τῶν ἄλλων κακῶν τῶν ἀνθρωπείων ἀπηλλαγμένῃ). Para alcançar este estágio, a alma precisa ocupar-se do conhecimento das coisas que a embelezam: a temperança (σωφροςύνη), a justiça (δικαιοςύνη), a coragem (ἀνδρεία), a independência (ἐλευθερία) e a verdade (ἀλήθεια, 115a).
A abordagem que fazemos aqui ao Fédon não se exaure em uma discussão tola a respeito do suicídio ou não suicídio de Sócrates. Ela tem a sua razão de ser, tendo em vista a existência de um curioso epigrama de Calímaco (315/310 — 240/235 a.C.), sobre o suicídio, que cita Platão e o diálogo em questão.
Vejamos o epigrama com a sua tradução operacional, feita por nós:
Ἐπίγραμμα 30
Εἴπας « Ἥλιε, χαῖρε»Κλεόμβροτος Ὡμβρακιώτης ἥλατ᾿ ἀφ᾿ ὑψηλοῦ τείχεος εἰς Ἀίδην, ἄξιον οὐδὲν ἰδὼν θανάτου κακόν, ἀλλὰ Πλάτωνος ἕν τὸ περὶ ψυχῆς γράμμ᾿ ἀναλεξάμενος.
Εἴπας « Ἥλιε, χαῖρε»Κλεόμβροτος Ὡμβρακιώτης ἥλατ᾿ ἀφ᾿ ὑψηλοῦ τείχεος εἰς Ἀίδην, ἄξιον οὐδὲν ἰδὼν θανάτου κακόν, ἀλλὰ Πλάτωνος ἕν τὸ περὶ ψυχῆς γράμμ᾿ ἀναλεξάμενος.
Epigrama 30
“Adeus, Sol”, diz Cleombrotos de Ambrácia e se joga do alto de uma muralha, em direção ao Hades, nenhum mau valor tendo visto da morte, mas de Platão tendo lido o livro em torno da alma.
“Adeus, Sol”, diz Cleombrotos de Ambrácia e se joga do alto de uma muralha, em direção ao Hades, nenhum mau valor tendo visto da morte, mas de Platão tendo lido o livro em torno da alma.
Cleombrotos é mais um dos nomes motivados, usados na literatura. Tanto pode ser um general e rei espartano, como informa o Bailly, quanto pode ser um dos discípulos de Sócrates, citado no Fédon (59c), mas que não se encontra presente no momento que antecede a morte do filósofo, quando se dá a discussão sobre a imortalidade da alma e a preparação que todo filósofo deve fazer da sua vida, visando a morte. Como o epigrama faz uma menção direta ao diálogo platônico, citado no texto pelo seu subtítulo περὶ ψυχῆς, é natural que se faça a ligação do personagem suicida ao discípulo socrático. O nome, derivado de κλέος, glória, e de βροτός, mortal — a partir de uma forma hipotética *μβροτός —, significa “mortal glorioso”.
Conhecendo o contexto do Fédon, não há como não detectarmos uma ironia do epigrama com relação ao diálogo platônico. Cleombrotos teria se suicidado pelas razões contrárias àquelas apontadas por Sócrates, no início do diálogo, quando perguntado por seus discípulos, por que razão ele estaria decidido a morrer. Cleombrotos se suicida não porque esteja numa situação imposta pelos deuses como uma necessidade, mas por ter lido o diálogo platônico, e mais não diz o epigrama, como se deixasse o ar de riso pronto, na suspensão de razões maiores para o suicídio do personagem.
A ironia se impõe no momento em que o personagem não vê “motivo mau” nenhum em buscar a morte, esquecendo-se de que existe a necessidade de se preparar, ao longo de toda uma vida, para esse acontecimento. Quem acompanha o diálogo platônico sabe muito bem que dentre os discípulos que estão ali, com Sócrates, nos momentos finais de sua vida, escutando as suas razões e o acompanhando até beber a cicuta e morrer, não existe nenhum que esteja preparado para enfrentar a morte, não importa a feição com que ela se apresente – Equécrates, Fédon, Apolodoro, Cebes, Símias e Críton. Se todos estes que ouvem os argumentos e, sobretudo, acompanham a serenidade de Sócrates não estão preparados, muito menos Cleombrotos que se encontra na ilha de Égina e que, segundo o epigrama e supondo ser este Cleombrotos ali presente, só vai ter conhecimento da responsabilidade da morte através de um escrito posterior.
Pensemos em como Cleombrotos comete o suicídio, de acordo com o epigrama. Matar-se jogando-se do alto de uma muralha não é morte heroica para um general ou para um rei espartano, se considerarmos que o personagem poderia ter sido este ou aquele. Isto por si só já é um índice de ironia, com relação ao significado do nome do personagem. Do mesmo modo, percebe-se que esse suicídio é uma ação impulsiva, não uma resolução de quem está preparado para cometê-la. Libertar-se da vida, como argumenta Sócrates, é bem diferente de fugir da vida, como faz parecer Cleombrotos. Antes de qualquer coisa, Sócrates/Platão tem a intenção de nos dar e a seus discípulos, repito, uma lição de responsabilidade.
Como já afirmamos, Sócrates não toma a decisão de suicidar-se, mas é obrigado a isso, diante da decisão dos que o condenaram à morte. A atitude do filósofo não só demonstra o que é assumir a responsabilidade diante da lei – a lei deve ser aplicada, não ignorada; se ela é ruim, ela deve ser mudada, dentro dos limites da lei –, o que já se encontra estabelecido no diálogo Críton, em que o discípulo de Sócrates, que dá nome ao diálogo, e que está presente também no Fédon, procura convencer o seu mestre a fugir da decisão. Sócrates recusa a ideia da fuga, pois fugir só o faria parecer culpado, além de que, em qualquer lugar em que ele se encontrasse, ele jamais seria Sócrates, o amante do saber, mas Sócrates, o fugitivo.
O epigrama de Calímaco, mais do que apontar a ironia, com relação ao não entendimento dos argumentos de Sócrates, no diálogo platônico, revela-se jocoso, pois dialoga também com o argumento de Ifigênia (v. Ifigênia em Áulis), que se recusa a morrer, por ser “doce ver a luz do sol” (ἡδὺ γὰρ τὸ φῶς βλέπειν, versos 1218-9). Entre a despedida, χαῖρε, que só confirma a jocosidade, e o ato suicida de Cleombrotos, Calímaco nos apresenta um contraste entre luz e trevas, servindo de suporte à ironia com relação ao que se encontra no Fédon: ao filósofo a morte trará a luz da purificação, não as trevas do vício que acompanham os homens na sua mesquinha vida corpórea.