Nos 80 anos de John Lennon, ano passado, quem ganhou o presente fui eu, este fã devoto aos Beatles: uma audição da versão de luxo do álbum Gimme Some Truth, lançado naquele dia para celebrar a data. São 36 faixas pinçadas da discografia solo de Lennon, escolhidas por seu filho caçula, Sean, com novas mixagens a partir das fitas originais (o que garante uma qualidade incrível). O álbum está disponível nas plataformas digitais, mas o sonho de consumo de todo fã que se preze é a edição física luxuosa,
contendo CDs, LPs e um blu-ray, através do qual é possível ouvir as velhas canções mixadas para cinco canais.
A audição me fez submergir na perenidade da obra de Lennon. Morto há mais de 40 anos por um fã desmiolado, pode-se dizer que Lennon teve uma carreira meteórica em seus dois bem-sucedidos projetos: os Beatles e sua fase solo. A vida como um dos Fab Four durou pouco mais de dez anos, contados do momento em que ele, Paul e George começam a dividir o mesmo palco (Ringo veio depois). A fase solo, que ele deu início ainda nos Beatles, quando começou a lançar discos experimentais ao lado da patroa Yoko Ono, também durou dez anos, até ele ser assassinado na porta de casa, em 8 de dezembro de 1980. Somando a produção discográfica de John Lennon, portanto, temos aí cerca de 20 anos, registrada ao longo de 13 discos com os Beatles (além de um punhado de singles de sucesso, reunidos no álbum duplo Past Masters) e oito lançados sozinho (nessa contabilidade eu levo em consideração apenas os títulos ditos “oficiais” e gravados em estúdio).
Em relativo pouco tempo, Lennon construiu a obra de uma vida, que continuará a ecoar por muito tempo. Só por ter criado o riff incrível de Come together (canção que ele fez originalmente para uma suposta campanha de Timothy Leary, o papa do LSD), ele já merecia um lugar especial na história da música pop contemporânea. Ouvindo o apanhado de canções de Gimme Some Truth, acabo por reforçar a ideia que eu sempre tive dele: Lennon sempre fez muito com tão pouco.
Quem é músico sabe que o Beatle rebelde nunca foi lá um executor virtuoso, mas sua habilidade para criar melodias e riffs sempre fizeram dele um gigante. Também nunca compôs letras rebuscadas, como o ganhador do Nobel de Literatura Bob Dylan, mas sua capacidade de comunicação é extraordinária. Um exemplo? ‘Imagine’, sua canção mais famosa.
Até hoje, ninguém escreveu uma canção tão bela, precisa e emocionante como ‘Imagine’, um hino de esperança e paz por um mundo melhor. A letra é muito simples. A melodia, idem. O arranjo não tem qualquer sofisticação, mas o recado é direto e toca até a mais fria estátua de mármore: “Imagine todas as pessoas / Vivendo a vida em paz / Você, você pode dizer que sou um sonhador / Mas eu não sou o único / Espero que um dia você se junte a nós / E o mundo será um só”.
É tão básico e ingênuo que qualquer aspirante a letrista poderia se autocensurar e jogar a letra na lata do lixo. Lennon, não. Ele entendeu que o recado era esse, e era desse jeito que as pessoas seriam tocadas, e por isso ‘Imagine’ segue como uma canção poderosa até hoje, e continuará sendo até que o “o mundo viva como um só”.
De longe, sempre percebi John Lennon como o mais sensível e verdadeiro dos quatro Beatles em suas canções. ‘Help!’, a música que dá nome ao álbum de 1965 e que é creditada à famosa parceria Lennon/McCartney foi composta pelo futuro marido de Yoko e traduz o sufocamento que ele sentia por ser um Beatle no auge da beatlemania: “Me ajude, se você puder / Estou me sentindo para baixo”, desabafa Lennon na canção.
A obra de John Lennon sempre foi muito plural: há canções sobre relacionamento, proletariado, a fragilidade de ser humano, drogas, sonhos e até sobre o Natal, em um libelo sobre a paz (‘Happy Xmas (War is over)’), tema que voltaria em ‘Give peace a chance’, trilha de um famoso protesto que ele fez em cima de uma cama. É um legado, acima de tudo, engajado.
Foi quem melhor traduziu o amor por mulher em uma canção (‘Woman’), ao mesmo tempo que causou controvérsia ao gravar ‘Woman is the nigger of the world’ (algo como “mulher é o negro do mundo”), música que tanto Lennon quanto Yoko sempre disseram ser pró-feminista, estampada através de um título irônico (pelo sim, pelo não, ela foi igonorada na seleção de Gimme Some Truth).
Em toda a sua extensão, John Lennon, fosse pessoa, compositor, músico ou Beatle, foi um artista que soube a dimensão de seu papel no mundo, e falando sobre si próprio, sua família e suas angústias, traduziu, de forma eloquente e até visionária, os tempos atuais. Então cante comigo:
“Nobody told me
There’d be days like these
Strange days indeed…”
“Ninguém me disse
Que haveria dias como estes
Dias estranhos, de fato…”.