Ofélia louca, em meu romanceamento do “Hamlet”, conforme narração de Horácio (paraibano, filho de traficante de pau-brasil), colega do príncipe na universidade de Wittenberg, dentro de meu livro ‘História universal da angústia":
Mas o que é uma cidade, mesmo?: um milhão de janelas? De repente lá estavam, todas acesas e cheias de gente, numa resposta de Copenhague ao soberano. Gente que logo desceu à avenida com tochas, fachos, braseiros, a multidão crescendo ao receber afluentes entusiásticos das ruas laterais, adesões acorrendo de todos os lados da capital - de Østerbro, Nørrebro, Nyboder, Christianshavn, Holmen, Vesterbro - de repente todo mundo marchando e gritando ritmadamente, em coro:
“Já urrei, já urrei, já urrei:
Laertes já é o novo Rei!!!”
Vi o irmão de Ofélia responder alguma coisa que não entendi e a multidão semovente festejar: “Hurra!” Acabara-se de saber que Claudius, para não despertar os furores dos sitiantes, ordenara que ninguém disparasse à chegada da horda, acrescentada agora dos que viviam no avesso da comunidade, debaixo das pontes ou na miséria da periferia.
Lembrei-me dessa cena no final de 1917, ao ler os telegramas de John Reed relatando como o povo russo entrara no Palácio de Inverno, em Petrogrado, sem encontrar resistência. E me lembrei dessas duas “tomadas” - a nossa e a soviética - ao acompanhar, muito depois, em um documentário de televisão, o desvendamento da fecundação humana, sentindo uma semelhança enorme entre estar no meio daquela correria invasiva de dinamarqueses... e constar entre os milhões de espermatozóides de uma ejaculação, vendo um Laertes ou Lênin lá na frente, rumo à sala do trono, o líder entrando útero adentro, avançando para o óvulo salvador e introduzindo-se nele, passando a ser o único - entre todos - com direito de continuar a Ser - e aí estava, talvez, o sentido absoluto do monólogo de Hamlet!
Laertes fez sinal de que todos ficássemos para trás e caminhou firme no tapete vermelho, espada na mão, escoltado pelos espartaquistas, gritando ao rei:
- Eu quero, primeiro: o cadáver de meu pai!
Talvez a argúcia de Claudius tenha captado o detalhe: Laertes caminhara firme... no tapete vermelho, burocraticamente, apesar de todo o espaço em volta, aberto como a própria hora.
- Calma, meu filho!
- Calma?!!! - o berro do rapaz ecoou no salão - Se uma gota sequer de meu sangue permanecer calma, todas as outras gritarão que sou um filho da p... e meu pai era corno!!!
Continuou a avançar, Gertrude ergueu-se e desceu ao seu encontro, para detê-lo. Claudius mandou-a parar:
- Deixe-o.
Ela se deteve a custo, ouviu o marido dizer:
- É tal a barreira com que o poder divino protege um rei, que a traição nada pode diante dela!
Laertes ergueu a espada, Gertrude partiu para cima dele (“A desgraçada gosta, mesmo, do demônio!”, foi o que concluí ), Claudius repetiu, no mesmo tom:
- Deixe-o, Gertrude.
E Laertes:
Claudius:
- Infelizmente morto, meu filho...
Gertrude tomou a frente do moço e vociferou-lhe, apontando para o marido:
- Mas não por ele!
Claudius, para a mulher, no mesmo tom de voz:
- Deixe-o, em paz - e ergueu-se com coroa e cetro. Em pé sobre a enorme águia de asas escancaradas do tapete, o majestoso manto de veludo vermelho bordado a ouro revelando a espada incomparável, assegurou:
- Ninguém poderá impedi-lo de obter justiça, meu bravo!
Em que se baseava Claudius para tanta fleuma, a ponto de dispensar qualquer repressão ou sequer segurança com referência ao movimento dirigido pelo duelista... que - é verdade - não pisava fora do tapete? Suas mãos não tremem. De sua testa o suor não poreja. Não há movimentos visíveis em seu pomo de adão. E... - eis a causa da calma! - lá adiante, à direita, apenas visível entre as colunas e cortinas, dentro do alcance do chamado dele: a filha de seu Conselheiro... louca. Ela não abriu caminho na multidão, na sala do trono, falando de flores, como lindamente relatou Shakespeare. Claudius chamou-a, sem tirar os olhos do rapaz à sua frente:
- Fale com ele, Ofélia...
- O que há de terrível em não ser, meu bem? Veja o poder que tem os zeros, capazes de transformar unidades em milhares, milhões, bilhões, trilhões!
Voltou-se para o Rei:
- Você... tem medo da Morte? - virou-se para a Rainha - Você também? Ora, mas que bobagem! - e perguntou aos dois - Por que?
Disse a Laertes, gargalhando:
- Ainda não vi uma caveira que não estivesse morrendo de rir!...
Novamente a “Hamlet”:
Prosseguiu:
- Por que teria Cristo vindo ao mundo nos salvar se não sabemos o que fazemos, como ele mesmo diz, inocentando-nos? Parece que é realmente como escreveu Paulo aos Coríntios - ela comentou para Jens Bang, sorrindo-lhe entre as costuras: “Deus tornou louca a sabedoria deste mundo, mundo que Ele resolveu salvar pela loucura da pregação, escolhendo as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias”. Não foi à toa que o próprio Cristo ficou meio desorientado, dizendo que não tinha vindo para curar os sãos mas os enfermos, ao contrário do que ensinava por toda parte quando afirmava que falava em parábolas para que aqueles que não estivessem destinados a ser salvos entendessem... e fossem salvos. Mas se há os que não estão destinados a ser salvos... que culpa têm? Que culpa tem qualquer um de nós, se está predestinado a fazer o que faz, assassinar um rei, por exemplo, não é, Claudius? Ou que mérito pode ter alguém em vingá-lo, não é, Hamlet?
- Que posso fazer? O homem e a mulher são coisas semelhantes mas não idênticas, como a estrada e o rio, que avançam durante algum tempo na mesma direção... ( e ela quase morreu de rir ao comentar) aquiacolá um em cima do outro...
À Rainha:
- A estrada quase sempre cruza com dois, três rios, não é? Sua zanga é compreensível - ponderou, vendo-a melindrada - Afinal, seu caso não é único: são necessários dois machos para pressionar o ventre da rã e ajudá-la a expulsar os ovos que eles irão fecundar, sabia? - e, voltando-se para o Rei - As fêmeas têm suas necessidades específicas, meu caro... Por outro lado, o que é uma traiçãozinha de vez em quando? De quem a culpa, se o pobre Judas foi comer o bocado de pão com Jesus e, diz o Evangelho, “com o bocado entrou Satanás” - vê como funciona? E o desgraçado enforcou-se de tanto remorso - como está no Evangelho - ou atirou-se do alto de um despenhadeiro, como está no Atos dos Apóstolos - são informes informes, ninguém tem certeza de nada. Há uma... meta na História, e ela age à nossa volta e em nós, invisível como um rio que, à noite, passando por entre o sono e o sonho, rochas e bosques, faz com que girem as mós e se movam os vultos incrivelmente pesados - de barcos carregados - para seu destino. Você - disse ao Rei, que recuou, lívido - você matou seu irmão pra ficar com a mulher dele e com o Poder, não foi, Neném? Mas foi porque Deus assim o quis, Hamlet me disse, ou Ele não teria dito a Pilatos: “Nenhum poder terias contra mim se de cima não te fosse dado.” Você tem razão - disse novamente a Hamlet - A cor existe apesar dos cegos?, o som existe, apesar dos surdos? As luminosas águas verdes movem-se sobre profundas sombras. É tudo muito estranho... até no que parece mais natural, como a Lua - essa... coisa gigantesca passando o tempo todo aí em cima, como quem não quer nada, como se fosse apenas luz.
Houve um longo silêncio na Sala do Trono. Ofélia se abraçou ao irmão e os dois choraram juntos, como nós todos, espartaquistas e o povo, a maioria - percebi-o ali - do Holger Danske - mudos diante da cena. Depois Ofélia se soltou, disse a “Hamlet”:
- Não é fácil entender, meu amor!....
Laertes implorou, de olhos fechados:
- Ôh, Deus, tem piedade de nós!...
- A senhora falou em piedade divina? - Ofélia perguntou ao Rei - e o que me diz dos terremotos, maremotos, furacões, erupções, enchentes, secas, pestes matando milhares de vítimas, depois de torturá-las mais do que qualquer carrasco? Horácio - disse-me, fazendo-me estremecer, pois não imaginei que pudesse ter dado por mim, naquele transe... horaciano - Você viu, da janela do “Neptun” aquele ror de gente asquerosa linchando os três rapazes como se fossem espiões? Não seria chocante ouvir alguém naquele momento citar Paulo Apóstolo dizendo que é Deus quem faz em nós o querer e o fazer segundo a Sua vontade? Entendo, meu amor - insistiu com Hamlet - entendo perfeitamente, mas é assim que a coisa funciona. Por insuficiente, a vida humana foi por nós acrescida de deuses, semideuses, vitórias aladas, faunos, fadas, ogros, ninfas, ... espectros, santos, anjos, a Trindade, Dom Quixote, ... ou apenas de amantes, se se tem os pés no chão, como sua mãe.
E, depois de algum tempo, caminhou até onde eu estava. Enxuguei as lágrimas de meu rosto ao vê-la autoenclausurada no capote costurado até a testa, ela me dizendo entre as brechas - sempre às pressas -, face à minha emoção:
- Meu raciocínio não para, não para, não para: há tanta coisa para se compreender, santo Deus! ...mas não é fácil trancar a gaveta com a chave dentro!
Foi-se.
Fora-se a revolução de Laertes e de sua multidão. Fora-se a paz entre Gertrude e Claudius.
Minha paixão pela doidinha... cresceu.

Referência:
História universal da angústia
■ Waldemar J. Solha
Editora Bertrand, 2005 Disponível em https://www.amazon.com.br
Editora Bertrand, 2005 Disponível em https://www.amazon.com.br