Deparo-me, comumente, com certas leituras dos mitos imbuídas de anacronismos e que desconsideram completamente a aura sagrada do universo mítico, como também a hierarquia existente entre as próprias divindades, assim como entre deuses e humanos.
Equívoco é atribuir apenas às figuras femininas o lugar de vítimas da ação dos deuses. É ignorar a história de Ganimedes, raptado por Zeus. Também de Jacinto, objeto do amor de Apolo, ou de Circe, de quem Odisseus não pode escapar. E de Anquises, pai de Eneias, que foi seduzido por Vênus e, posteriormente, castigado por Júpiter.
Se desconhecermos o sentido estrutural de hierarquia existente nas relações entre deuses e humanos, deturparemos o castigo de Atena à Górgona, Medusa. Diremos, equivocadamente, que ela foi violentada por Posídon e punida por isso pela deusa.
Poderíamos elencar vários exemplos a este respeito, do desconhecimento do universo mítico que promove análises deturpadas dos mitos.
Dizer que Narciso é fruto de uma violência, do estupro de Liríope pelo rio Cefiso, é desconhecer a construção poética de Ovídio, nas 'Metamorfoses', versão canônica, mais completa do mito:
"Quam quondam flumine curvo implicuit clausaeque suis Cephisus in undis vim tulit”
Quem um dia Céfiso envolveu e, a (ela) encerrada em suas ondas direcionou o vigor".
L. III ▪ v. 340-43
Trata-se de um ato de sedução do rio para a ninfa, enquanto ela se banhava nas águas. Está presente em vários mitos, uma vez que a sedução faz parte das ações humanas, e os mitos, em sua essência, são a expressão de aspectos humanos, da sua psique, das suas emoções e vivências. Se hoje, em nossa contemporaneidade, a sedução é vista como uma violência, faz parte do contexto mítico. E lê-lo por outra perspectiva é anacronismo.
Os mitos, sem dúvida, exprimem o que há de humano em nós, conflitos, faltas, paixões, sofrimentos, impossibilidades, desejos etc. No entanto, é preciso ter cautela, a fim de não querer tomar o mito apenas como pretexto para falar, na verdade, de ideias que concernem muito mais a pontos de vista e posições pessoais.
'Antígona', de Sófocles, tem sido alvo dessas pretensões, quando se tenta, por exemplo, analisá-la pelo viés do feminismo. São leituras equivocadas dos mitos.