Estamos em agosto ou em dezembro? Inverno ou verão? Será que o calendário corresponde às mudanças que estamos percebendo? Esses questionamentos surgiram com a observação de fatos recentes.
No último final de semana, uma cor amarela aparecia em meio ao verde, na estreita faixa florestal, motivando paradas estratégicas para fotografias. E, com uma aproximação maior, a confirmação: A estrada para Natal surpreendia, com novidades! Eram flores de Pau-Ferro, na copa das árvores e os arbustos da Rosa Brasileira, e ainda umas delicadas, em cachos da Acácia Sena. Riquezas da Mata Atlântica que ocorrem no verão, (principalmente as duas primeiras), com os Ipês promovem um espetáculo de cores, aromas e beleza. Mas, ainda teremos vários meses para esperar…
A ideia de rever o ambiente de trabalho, surgiu no dia seguinte. As portas foram fechadas em março de 2020… um ato difícil, com resistência e um olhar de “até breve”. Como uma mãe largando seu bebê, pois o novo consultório tinha apenas dois meses de inaugurado, a sensação de perda obrigatória preencheu os dias que se seguiram, elaborando um luto pelo objeto perdido. “Amamos tanto, e a perda é cotidiana e infinita” (Hilda Hist). Uma adaptação ao atendimento virtual caminhou paralela à despedida do verão. O tempo é o organizador dos nossos sonhos, e a ele todos nos devemos curvar.
Com a redução dos casos de COVID, a necessidade do retorno presencial tornou-se uma possibilidade real. Quantas saudades desse trajeto diário... “Não há dúvida que a memória é como o ventre da alma” (Santo Agostinho).
No entanto ao passar o cartão do estacionamento, nada de abertura da cancela... estava bem colocado, o que acontecera? Divagando sobre hipóteses, um funcionário informou que houve uma mudança de empresa responsável e que teria que confeccionar um outro tipo de documento de acesso!
Ao entrar no elevador, uma desagradável constatação; mais cinco pessoas esperavam para compor as seis permitidas!
“O tempo e o espaço, este nas suas três dimensões, são contínuos” (Shopenhauer).
A fechadura ainda ofereceu certa oposição ao giro, por desuso prolongado, mas cedeu enfim, e, um cheiro de couro e tinta inebriou o olfato, aquele mesmo das coisas novas, ficou preso, esperando acolher os pacientes. Revistas datadas de março de 2020, uma com involucro intacto... agenda aberta no birô, e coincidentemente na data que atenderia dois pacientes , que faleceram meses depois! “O tempo é teste de tormentos” (Emily Dickinson). Livros marcados, alguns entreabertos para pesquisa e estudo, com leve poeira acumulada. Um texto iniciado, no segundo parágrafo apenas... uma receita que não foi entregue, no último dia de atendimento... “Nada é perda de tempo, se você usar a experiência sabiamente” (Auguste Rodin). Ao lado da cafeteira expressa, cápsulas de café vencidas, sachês de chá, também inutilizados. No armário, medicamentos que extrapolaram as datas para uso; uma bomboniere perdeu seus chocolates suíços. O açúcar, tão unido a si mesmo, talvez por medo de reduzir a doçura com o abandono.
Ironicamente um parceiro de trabalho foi “esquecido” na mesinha de apoio ao divã. Com o tempo parado, o relógio de pulso, cansado de aguardar, zombava da desorientação têmporo-espacial da intrusa. “Quanto mais areia escorre no relógio de nossa vida, mais claramente deveríamos ver através do vidro” (J. P. Sartre).
Na parede, o painel artístico, retratando o sítio da irmã, que só foi visto por fotos e vídeos, durante a pandemia. Pleno de novas espécies, uma estufa a proteger as mais sensíveis, a coleção de Araceae, despertando curiosidade, mas crescendo em singularidade. A música clássica, silenciada, à espera que o “tal tempo” a solicite novamente.
“Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu não olhava o relógio, seguiria sempre em frente, e iria jogando pelo caminho a casca inútil das horas” (Mário Quintana).
Outro “esquecimento” significativo: uma orquídea Phaelenopsis na bancada do lavabo… as outras três foram levadas, mas inconscientemente essa ficou, uma presença viva e bela, para um curto intervalo... agora só um galho seco, tão ressecado quanto o sabonete de verbena, seu vizinho perfumado... de nada adiantou ficar escondida, diante de tamanha ausência... Na saída, com o papel a preencher do novo cartão, o sol entrava generosamente pela única janela da circulação do Empresarial... estranhamente em pleno inverno!
O desejo de voltar tinha o reforço do medo, afinal os dois pertencem à mesma balança, em pratos diferentes. “Não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas” (Renato Russo).
Uma decisão a ser pensada criteriosamente... sem pressa, sem afetos, mas com segurança.
“Desejo é o impulso de recuperar a perda da primeira experiência de satisfação” (S. Freud).
E, no caminho de casa, uma imagem do novo, na calçada de um Edifício Comercial recém-concluído, as palmeiras oprimidas ganharam companhia de classe: Resedás floridos! Planta de origem chinesa/indiana, que apresenta uma variação de cores, branca, rosa em seus mais variados tons, e roxa. Sempre associada ao verão, com o auge da floração em dezembro.
“O verão há de vir, mas só vem para aqueles que sabem esperar, tão sossegados como se estivessem na frente a eternidade” (R. M. Rilke).
Depois de vivenciar o inimaginável, realmente algo diferente está no ar, na vegetação, e por que não, na nossa alma? O verão “pode” mudar de época, as flores “podem” preferir o inverno, o inverno “pode” namorar o sol, o Pau-Ferro “pode” decidir florescer com esse clima, e os Resedás “podem” enfeitar nossas ruas e jardins em julho, lembrando que o Natal está chegando, bem como a vida que aos pouco volta para todos nós, independentemente do tempo, e do que foi perdido.
“Vê, estão voltando as flores,
Vê, nessa manhã tão linda,
Vê, como é bonita a vida,
Vê, há esperança ainda”. (Música de Helena de Lima)