Grande Sertão: veredas, romance de João Guimarães Rosa, é uma história de amor. Sim, uma história de amor que não poderia, pela lei da jagunçagem, ser revelada ou ser vivida. Mesmo que depois se descobrisse o mistério que envolve esse amor, o estrago, em nome da honra e da macheza, já teria sido feito e de modo irreversível. Não se espantem que esta monumental prosa seja uma história de amor. Mas é. Não há nada de incomum nisso, mesmo para um escritor como Guimarães Rosa. Se duvidarem, é só pegar, como exemplo, Sagarana e tentar descobrir em que conto não há uma história de amor, resultando em tragédia pessoal.
Essa história de amor, no Grande sertão, envolvendo dois jagunços, Riobaldo Tatarana e Diadorim, não é das comuns, repetitivas e cheias de clichês. Para o leitor desavisado, há tantas outras narrativas acontecendo ao mesmo, que ele não consegue, em uma primeira leitura, dar-se conta do que é o cerne da conversa, entre um narrador oral e conscientemente digressivo (“Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas.”, p. 22), dirigindo-se a um interlocutor que não vemos se pronunciar, mas que sentimos estar presente e interferir com comentários e perguntas, pelo contexto da prosa de Riobaldo (“O senhor não acha? Me declare, franco, peço. Ah, lhe agradeço. Se vê que o senhor sabe muito, em ideia firme, além de carta de doutor. Lhe agradeço, por tanto. Sua companhia me dá altos prazeres.”, p. 25).
Não culpo os leitores de primeira viagem por não perceberem isto. Na primeira leitura de Grande sertão: veredas, eu era um garoto cursando Letras, lendo o livro por desafio e obrigação. Pouco me aproveitou. Algumas frases guardadas na memória, como boas tiradas, para se dizerem em ocasiões especiais (“Quem muito evita, se convive.”, p. 13; “quem mói no asp’ro, não fantasêia.”, p. 15; “Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.”, p. 18); uma visão pálida e geral da história, além da ênfase na linguagem, para mim, nova, difícil, desafiadora, mas harmônica e ritmada. A segunda leitura foi realizada há dois anos, em 2019, servindo para me situar melhor, criou a expectativa e a necessidade de uma terceira leitura, agora iniciada e já avançada. Rosa, como todo grande escritor precisa de várias leituras, em etapas diversas da vida, quando podemos apreciá-lo com as novas experiências adquiridas.
Por outro lado, o amor não tem um fio contínuo, na digressão consciente do narrador, o amor vai aparecendo aos poucos, em conta-gotas, envolvido pela história de jagunços, em vinganças, lutas e brabeza, a partir de que se descortina o sertão, os gerais sem tamanho, onde “cada um o que aprova” e “pão ou pães, é questão de opiniães...” (p. 13 – todas as referências foram retiradas da 22ª edição da Nova Fronteira, de 2019), com sua geografia de rios, cachoeiras, córregos, veredas, matos e plantas, além de seus viventes – bichos e seres humanos –, a partir de definições desnorteantes (“O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedaçozinho de metal...”, p. 21). Se Diadorim é a neblina de Riobaldo (p. 25) e o coração das pessoas apresenta, muitas vezes, a escuridão (“Coração da gente – o escuro, escuros.”, p. 33), o leitor que fique atento, anote e se prepare para sair das trevas e do cipoal em que a prosa de Riobaldo o joga, e tente, por fim, vislumbrar um norte seguro. “Viver nem não é muito perigoso?” (p. 32).
Digo isto, porque Riobaldo sabe como tecer a trama, de modo a enredar o seu interlocutor e o leitor, deixando-os bem atados e na expectativa de saber mais desse amor economicamente pingado, em meio às narrativas de viagem, aventuras, escaramuças e as suas crenças pessoais. É assim que ao entremear um perfil religioso para si, Riobaldo diz que bebe nas águas de todas as religiões, por sentir que uma só não o satisfaz, mas se inclinando em direção ao Espiritismo. Sim, o Espiritismo, com todas as letras. Não se trata de suposição de algo que se passa nas entrelinhas. Não, não interessa se Guimarães Rosa era ou não espírita ou se praticava a Cabala. Interessa é que ele conhecia tanto um quanto a outra. A Cabala, ele a põe em “O recado do morro”, conto de No urubuquaquá, no pinhém; a doutrina Espírita comparece na boca do compadre Quelemém – corruptela de Clemente, os nomes em Rosa são motivados e falam daqueles que o portam –, por sua vez, replicados por Riobaldo.
Ao seu interlocutor, Riobaldo confessa que aceita as preces do seu compadre, “doutrina dele, de Cardéque (p. 19)”. E nada falta ali:
■ os umbrais e a eterna luta de quem quer se transformar contra os espíritos obsessores, (“Compadre meu Quelemém descreve que o que revela o efeito são os baixos espíritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e com ânsias de se travarem com os viventes – dão encosto.”, p. 14);
■ o trabalho para a reforma íntima, por querer mudar a si mesmo para ser melhor, não melhor do que os outros, mas melhor para o outro, como se vê em Aleixo, “homem das maiores ruindades calmas que já se viu” e por ver os quatro filhinhos cegados pelo sarampão “demudou completo – agora vive da banda de Deus, suando para ser bom e caridoso em todas as suas horas da noite e do dia” (p. 16) – algo que já se encontra em Augusto Matraga, pois não? –;
■ a reencarnação (“Se a gente – conforme compadre meu Quelemém é quem diz – se a gente tornar a encarnar renovado, eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filho do inimigo”, p. 17);
■ a mudança de vibração para atrair a proteção de espíritos que estejam numa mesma sintonia (“Compadre meu Quelemém sempre diz que eu posso aquietar meu temer de consciência, que sendo bem-assistido, terríveis bons-espíritos me protegem.”, p. 18);
■ a lei do retorno (“Eu confiro com compadre meu Quelemém, o senhor sabe: a razão da crença mesma que tem – que, por todo o mal, que se faz, um dia se repaga, o exato.”, p. 23);
■ a consciência de que o trabalho é constante e que se colhe o que se plantou (“Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...”, p. 48).
Claro está que Riobaldo acolhe a doutrina de uma maneira menos elaborada do que os estudiosos dela, mas a sua essência está bem evidente.
E em meio a esse mar de informações, o amor vem de modo avaro, como um petisco que se oferece ao interlocutor e ao leitor. Pestisco, para nós, apetitoso, mas amargoso para Riobaldo, porque produto de uma expressão quase inefável, envolvido que se encontra em culpa, vergonha, asco, tentação e desejo. Escamotear, no entredito, esse amor que não se pode exprimir pelas leis da vida de jagunço e pelas circunstâncias de tempo e espaço, é uma estratégia de Riobaldo, afinal ele não é um rio baldo? É desse modo que, tentando enfrentar para si próprio essa realidade amorosa, depois de tantos anos calado e recalcado, Riobaldo o coloca para fora, numa sessão sertaneja de terapia. Sim, terapia, pois o seu interlocutor é um estranho a quem ele conta as suas intimidades, e irá embora dali a dias, ele não mais o verá:
“O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala?
E as ideias instruídas do senhor me fornecem paz” (p. 35).
Falar de si, para um estranho, de coisas íntimas, procurando escutar-se, para expurgar o indizível e inconfessável, que incomoda, só é possível na terapia e isto se torna a essência da conversa de Riobaldo. Longe de mim a intenção de fazer psicanálise, pois nem entendo dela – o único contato com ela é como analisando, já há oito anos –, nem é da minha alçada, pois como professor de literatura analiso um texto a partir das possibilidades que ele apresenta, mas sem esquecer que se trata de um texto ficcional. E uma das possibilidades de acessar o Grande sertão é essa sessão rústica, com a palavra no seu sentido latino, de psicanálise.
O título do texto até agora não se explicou, mas deixei para o final de propósito. “Deus é paciência. O contrário, é o diabo” (p. 20). O leitor que quiser fazer a difícil travessia do Grande sertão e não ser tragado pelas terras traiçoeiras do Liso da Sussuarana, nem se deparar, em algum plaino, desarmado, com Hermógenes, deverá ter a paciência da leitura e das releituras dessa magnífica obra incontornável da literatura brasileira. Precisa ter paciência como Deus, acreditando que a sua criação saberá se transformar e melhorar, se não se deixar levar pela pressa do Tinhoso. Qualquer dúvida, “compadre meu Quelemém está aí para fiscalizar” (p. 21).