Tal qual ouro finíssimo, firme como rocha,
Seja o teu coração limpo, aceso feito tocha. (A. S.)
"O melhor é comprar meias sem costuras ou, se já as comprou com costuras, usá-las ao avesso. Isto pode evitar a formação de bolhas".
Aconselhou-me a simpática voluntária da “Associação dos Amigos do Caminho de Santiago em Zaragoza”.
Aconselhou-me a simpática voluntária da “Associação dos Amigos do Caminho de Santiago em Zaragoza”.
— E mais – continuou – mesmo que esteja a 500 metros de uma cidade, se sentir uma pedra no sapato, é preferível que pare, retire o calçado, e só prossiga depois de remover a pedra de dentro dele. Se não fizer isso, é uma bolha garantida!
— Muito obrigado pelas dicas — respondi.
— E você — disse ela dirigindo-se a Victor, o amigo espanhol que me acompanhava — também fará o caminho?
Eu ri, interiormente, porque aquela senhora nem imaginava a quem formulava tal pergunta. Victor era um cético empedernido que me seguia a estes lugares apenas por amizade e excesso de gentileza. Às vezes até me acompanhava, paciente e resignadamente, até endereços como Taizé, na França. É verdade que vez ou outra desfiava o seu rosário materialista, lançando torpedos um tanto mordazes contra minhas crenças. Porém, a nossa convivência era, basicamente, enriquecedora. Desacreditava radicalmente de qualquer modalidade de experiência religiosa ou espiritual. Acreditava somente no desenvolvimento da cultura e do conhecimento humanos, como geradores de um tipo de ética humanista e de uma felicidade material coletiva. Era um ser humano generoso e justo, mas profundamente cético em relação a qualquer conteúdo metafísico. O caminho, para ele, era somente um artigo histórico ou turístico que não chegava a ser uma curiosidade.
— Não, não. Eu o estou utilizando como cobaia, se ele sobreviver talvez eu vá algum dia.
A senhora sorriu, educadamente.
— Com a Credencial do Peregrino eu posso dormir nos Albergues? — perguntei.
— Sim, você poderá utilizá-los, naturalmente. No passado, a maioria não cobrava nada, esperavam pela generosidade dos peregrinos. Como, porém, muitos não ofereciam nada, hoje existe a sugestão de um valor, que varia entre 5 e 15 Euros. Nos abrigos organizados por voluntários, só se pode permanecer uma noite, a não ser em caso de doença. Há também os abrigos privados, que oferecem melhores condições, mas são bem mais caros.
Disse, recolhendo a minha ficha, já preenchida, e me entregando um caderninho azul e branco com a imagem de Santiago de Compostela e as inscrições “Camino de Santiago. Credencial del Peregrino. Gobierno de Aragon. Departamento de Cultura e Turismo.”
— Aqui está. Você poderá receber o primeiro carimbo aqui mesmo em Zaragoza, na Basílica de Nossa Senhora do Pilar, dirigindo-se à Sacristia da Virgem, que fica logo à direita de uma das entradas principais. De onde partirá?
— De Saint-Jean-Pied-de Port.
— O caminho francês! É uma bonita rota. Seguirá entre os Pireneus. Sabe que também há um caminho aragonês?
— Sim. Começa em Candanchu na Fronteira com a França, não?
— Isso mesmo. De Somport até Jaca.
Summus Portus! A “porta suprema”, na entrada dos pireneus espanhóis. Foi chamada assim pelos romanos, há dois mil anos. Às vezes eu me esquecia como essas cidades ibéricas são antigas. A própria Zaragoza, onde eu vivia, tinha mais de dois mil e quinhentos anos de história, passando por mãos ibéricas, celtas, romanas e árabes até a sua reconquista pelos cristãos. Recebeu heranças de todas essas culturas, sem esquecer, claro, da importante contribuição dos judeus, que também deixaram a sua marca. Seu nome provém de Caesaraugusta, a cidade romana assim batizada em honra a Caio Otávio Augusto César, o sobrinho que Júlio César proclamou como seu herdeiro e que se tornou, após a sua morte e ao triunvirato que se seguiu a ela, o primeiro imperador romano.
Antigamente, os peregrinos que provinham do sul da Europa se dirigiam a Arlés, na França, e dali iam até Summus Portus através da estrada romana de pedras que unia Bordeus a Caesaraugusta.
Em Candanchu, onde atualmente funciona uma Estação de Esqui, nos arredores de Somport, havia um hospital de peregrinos, provavelmente onde hoje funciona algum hotel. A primeira vez que vi e brinquei com neve foi lá. Enormes e majestosas montanhas pintadas de branco a mais de 1.600 metros de altitude, emoldurando um céu azul, calmo e limpo.
Lembro-me, especialmente, das cascatas congeladas em meio aos bosques de haya, que vi perto de Jaca durante o inverno. De tão magníficas, mais pareciam esculturas de gelo preparadas para compor um cartão postal dos Pirenéus. Nestes, além desses detalhes tão sutis, também estão colossos como o Aneto, cujo pico roça o céu a mais 3.400 metros.
De Jaca se segue até Undués de Lerda, na divisa de Aragon com Navarra, onde ainda há um trecho preservado da antiga calçada romana.
— Como sabe, é um caminho muito bonito também. — disse-me ainda a voluntária.
— Sim, eu sei. Se eu realizar a caminhada uma segunda vez, certamente começarei por Somport. Dessa vez partirei de Saint-Jean porque a primeira vez que planejei fazer o Caminho, há uns dez anos, foi saindo de lá. Seguirei o script do sonho passo a passo.
— Muito bem! O caminho é um bom lugar para aqueles que acreditam em sonhos.
Antes de ir embora eu queria fazer uma doação e, por isso, olhava em volta para ver se alguma lembrança estaria à venda.
— Estes lenços na parede estão expostos para vender?
Oh, não! Muitos são presentes de outras associações de amigos do caminho de Santiago. Veja: há de Huesca, de Pamplona, de Astorga, de Burgos... Mas temos este nosso aqui para vender.
Era um “cachirulo”, um lenço triangular estampado em xadrez, nas cores vermelha e preta, com a gravura da Vieira em amarelo, perto de uma das pontas, e tendo, em seu interior, o contorno da Basílica do Pilar. Ao redor da ilustração se lia a legenda: “Amigos del Camino de Santiago. Zaragoza.”
— É uma peça de vestimenta folclórica daqui de Aragon. Usa-se em volta do pescoço.
Eu a provei à maneira de um lenço de escoteiro. Ela me confirmou que estava correto, acrescentando:
— Alguns peregrinos até a utilizam na caminhada.
Como a outra opção era um mini peregrino de pelúcia, preferi o “cachirulo”.
Paguei os três euros e agradeci pela gentileza e atenção com que fomos recebidos.
Eu e Victor descemos os dois lances de escada até o térreo, enquanto ele me dizia que era engraçado que o primeiro andar se chamasse “principal”, o segundo “primeiro” e o terceiro “segundo”. Eu concordei e comentei que todos os edifícios nos quais eu tinha entrado na Espanha eram assim e que, de fato, tinha achado isso muito curioso.
Já na rua, perguntei:
— O que pensa dessa peça de roupa típica?
— O cachirulo? Para usar na festa do Pilar está bem. Você vai ficar parecendo um “maño”.
Maño é o nome dado ao aragonês vestido de modo típico. Sorri pela ironia e fiz uma pergunta retórica:
— E para seguir com ela pelo Caminho de Santiago suponho que você considere ridículo...
— Demasiado!
— Foi por isso que o comprei apenas para pôr na parede.
— É uma opção mais elegante – aconselhou.
— Realmente não pensa em fazer o caminho um dia, Victor?
— Não sou tão piedoso. Talvez o faça como turismo rural. — disse, acentuando o desinteresse — E você, por que vai realizá-lo?
Eu respirei mais profundamente do que de costume e me calei por um instante, olhando para frente até o fundo da rua.
— Sabe, não consigo pensar numa resposta racional para essa pergunta. Acho que vou fazer porque preciso fazer. Não espero encontrar nada. Não estou procurando nada. Apenas sinto que o Caminho me chama e vou ao seu encontro. Também acredito que o Caminho seja uma metáfora do caminho interior, mas, em sentido profundo, tudo também é uma metáfora. Em seu Mysterium Magnum, Jacob Böhme disse que o mundo visível é um símbolo do mundo invisível.
— Mundo invisível? Você acredita nisso?
— Muito.
— Então, basicamente, você vai porque tem de ir. Não chega a ser uma tautologia, mas é uma escolha.
— “O existencialismo é um humanismo”? Esta pode ter sido uma boa síntese da teoria sartreana da liberdade.
Ele me olhou com sua característica expressão blasé.
Victor também era meu colega de turma no doutorado em filosofia. Por isso, textos, temas e autores filosóficos costumavam freqüentar os nossos debates.
— Por favor, você é um filósofo! Não pode acreditar nestas coisas! Possui uma enorme erudição e é um pensador de verdade. Não tem apenas um título acadêmico. Então não posso aceitar que acredite nessas fantasias de espírito, de alma. Essas coisas não existem! Não há Deus, não há vida após a morte. Não há nada disso!
— Ei, eu quem sou o teísta por aqui. Sou eu quem deveria tentar salvar a sua alma!
Ele prosseguiu:
— Observo que sente uma grande necessidade de transcender a realidade imediata. Por isso crê nessas fantasmagorias! Isto indica uma incapacidade de encarar a realidade tal qual ela é, sem disfarces.
Já estava familiarizado com as suas idéias, mas a psicanálise, dessa vez, era um novo recurso incorporado ao discurso.
— Obrigado por se preocupar com a minha saúde psicológica, mas como vai a sua?
— Não tenho nenhum problema mental grave. Minha única queixa são as costas.
— Qual o problema com suas costas, Victor?
— Chama-se “dívidas”!
Prossegui, então:
— Penso que Deus É O Que É, independentemente das nossas crenças. O fato de ser “crente” ou “descrente” não afeta Sua Existência, que Independe da nossa estreita capacidade de admiti-Lo ou não. Não sinto necessidade nenhuma de aceitar uma entidade teológica antropomorfizada e idealizada, uma projeção dos meus medos e necessidades. Apenas sinto que o universo obedece a uma ordem sutil e perfeita, que emana de uma Inteligência Estruturante e Absoluta. Deus, para mim, é o Maior Poder que consigo perceber, e, se um dia eu imaginar algo maior, então Deus passará a ser isso para mim.
— “Vale...” — Disse-me, ao começar a sua resposta. “Vale” é o “ok” espanhol. — Você está repetindo Severino Boécio: “Deus é o ser do qual não se pode pensar nada maior!”
— Estou dizendo o que eu penso, mas se Boécio já o afirmou, ora, “tudo o que é bom me pertence”, como disse o seu compatriota espanhol Lúcio Naneo Sêneca.
— Misticismo delirante seu e de Boécio, então! Não existe nada disso. Nem acima, nem abaixo. Nem dentro, nem fora. O pensamento é o resultado da evolução da matéria. Não existe espírito em nenhuma parte. A matéria evoluiu e se se tornou consciente no ser humano, que criou Deus. E não o contrário. Não há nenhuma demonstração científica de que há algo além disso. Densa ou sutil, tudo é matéria. E não há qualquer tipo de natureza humana essencial. Ninguém nos está guiando, dirigindo, nem ajudando além de nós mesmos. Estamos miseravelmente sós. Esta é a dura verdade, amigo!
— Uma visão muito triste essa sua!
— Uma visão trágica, materialista e real, como a de um autêntico filósofo.
— Assim falou Leucipo! Não é, porém, uma perspectiva extensiva a Heráclito de Éfeso, a quem alguns consideram como um iniciado.
— Pode-se mesmo dizer qualquer coisa sobre alguém que era chamado de “o obscuro”. Além do que, há um erro epistemológico em suas crenças. Você nem as justifica logicamente através de fatos e nem através de argumentos baseados em fatos. Só se apóia em idéias e parte de postulados tomados como certos, ou seja, você se fundamenta em sofismas!
— Este “erro epistemológico” a que se refere se chama “fé”, amigo. E premissas não demonstradas não são sofismas, são axiomas!
— De qualquer modo, há um engano metodológico. Conhece a “navalha de Ockham”?
— “Entia nom sunt multiplicanda praeter necessitatem”?, recitei.
— Exatamente. “Os entes não devem ser multiplicados sem necessidade”. Se você não pode me demonstrar que as suas crenças correspondem a algo real, a explicação mais evidente é a de que não há qualquer “mundo invisível” de tipo espiritual. O seu sistema de crenças nada mais é do que uma mera projeção ontológica. O ser humano não é espírito, é matéria. Um tipo especial de matéria talvez, mas matéria! Nada além disso, Emerson.
Embora respeitasse a minha erudição e capacidade argumentativa e me estimasse como um bom amigo, era inevitável que Victor me considerasse um idealista ingênuo por conta daquilo em que acreditava.
A ferocidade e a sinceridade da sua argumentação não chegavam, no entanto, sequer, a arranhar a nossa amizade. Para além das nossas posições filosóficas diametralmente opostas, éramos irmãos. Tínhamos muito mais em comum do que nossas matrículas no doutorado em Filosofia da Universidade de Zaragoza.
Os diálogos, com meu amigo ateu, proporcionavam-me maiores experiências espirituais do que conversar com determinados “religiosos” desonestos e embotados ou com certos “espiritualistas” alucinados. Inteligentíssimo, ele contribuía, com as suas observações aguçadas, para refinar a minha perspectiva pessoal da existência. Além do que, concordávamos que o maior gargalo de todo conhecimento é mesmo a ética, o comportamento humano cotidiano. Nossas “éticas” partiam de genealogias distintas, mas se irmanam na necessidade da mesma prática de respeito real e efetivo ao semelhante.
— Victor, Tolstói disse de um outro modo aquilo que Ockham formulou: “A verdade mais simples é a maior”. Para mim, Deus é uma evidência que não posso ignorar, pois eu O sinto em meu coração! Peço desculpas se pareço lhe ofender com aquilo que, para você, pareçam sofismas, mas realmente acredito nisso tudo que lhe digo.
Antes que nos déssemos conta, o nosso debate peripatético nos tinha conduzido a destino: a Praça do Pilar, uma área de passeio imensa, que compõe um dos maiores espaços urbanos da Europa. Ela fica bem ao lado das ruínas do fórum de Caesaraugusta e do mercado romano, situados a uns dez metros abaixo do solo da “Plaza de la Seo”, o espaço situado logo a frente a catedral da cidade, cuja lateral preserva uma preciosa parede de arte mudejár, a herança arquitetônica mais marcante da presença árabe na Espanha.
Em Zaragoza, também está o magnífico Palácio da Aljafería, construído durante a ocupação muçulmana. Trata-se da maior construção realizada pela cultura árabe ao norte do mundo.
As ruínas do fórum, do porto fluvial, das termas públicas, do teatro e das muralhas romanas são os vestígios de grandes construções que demonstram o enorme prestígio que a cidade gozava em sua fase romana. De um dos lados da praça, estão enormes colunas, que sustentam holofotes gigantes apontados para a “Basílica de Nossa Senhora do Pilar”, considerado como o primeiro templo mariano da história do cristianismo.
A construção original, em estilo românico, foi quase totalmente destruída em 1443. Em 1515, um outro templo foi erigido no mesmo lugar, em estilo gótico. A atual Basílica teve seu início em 1681 e foi concluída em 1718, resultando numa mistura de barroco e neoclássico. Revestido de tijolos vermelhos, o templo é uma visão impressionante por suas imensas torres, algumas com cúpulas de telhas coloridas, pelas suas dimensões grandiosas e pelo ar bizantino que o perpassa. O seu interior é igualmente impressionante.
O mais interessante, contudo, é a origem mítica do “Pilar”. Atribui-se a sua “fundação” à Maria em pessoa, diferentemente do que aconteceu com todos os outros templos marianos, erigidos por conta de aparições da Virgem ou em referência a elas.
Reza a tradição do Pilar que a própria Virgem, em “carne mortal”, veio a Zaragoza consolar o então deprimido apóstolo Tiago, ou “Santiago”, que andava muito desanimado com a pouca aceitação da mensagem cristã na cidade. A lenda relata que o apóstolo resolveu se mudar da Galícia para Caesaraugusta, acreditando que assim teria maior êxito em sua missão. Depois de uma longa viagem, Tiago, chegou à Zaragoza romana no inverno e a achou muito bonita, embora fizesse muito frio e ventasse muito. Compreendo a impressão que o apóstolo teve, porque quando fui morar eu Zaragoza também era inverno e o termômetro marcava 4 graus abaixo de zero. Além disso, o “cierzo”, o vento frio aragonês e a corrente de ar vinda da Sibéria, ajudam a castigar ainda mais os ossos no final do ano.
Em sua nova morada, o apóstolo conheceu algumas pessoas que se converteram. Contudo, Tiago seguia deprimido, pois tinha feito uma promessa, nada modesta, ainda em Jerusalém, de converter todos os habitantes da Espanha. Sabia que estava muito longe de conseguir isso. Um dia, às margens do rio Ebro, que atravessa a cidade, imaginava o que poderia fazer para converter todos os habitantes de Caesaraugusta, quando, de repente, apareceu, diante dele, a própria Virgem Maria, que ainda estava viva por essa época, uma vez que isso teria acontecido no dia dois de janeiro do ano 40 d.C.
A Virgem teria sido transportada, milagrosamente, de Éfeso para a Zaragoza romana de então, e apareceu sobre um Pilar de granito, trazido junto com ela, diante do surpreso apóstolo. Maria teria lhe dito que, a partir daquele dia, ele não mais iria ter problemas para converter os zaragozanos e assim sucedeu. Tiago começou a pregar diante do Pilar no dia seguinte e conseguiu milhares de ouvintes.
Ainda hoje, esse Pilar, sobre o qual supostamente foi erigido o templo, está descoberto para a adoração dos fiéis que o visitam no mesmo local onde teria sido posto por Maria, quando de sua visita à cidade.
A festa de Nossa Senhora do Pilar ocorre, todos os anos, a dois de janeiro.
Eu e Victor entramos na Basílica e nos dirigimos à Sacristia da Virgem. Dentro, uma grande quantidade de turistas tiravam fotos ou passeavam, observando os nichos do templo. Devotos acendiam velas coloridas e três padres co-celebravam uma missa não muito longe de onde passávamos. O murmúrio da homilia se dissipava na imensidão da nave e se diluía no espaço interior da Basílica.
Entramos na Sacristia, onde também havia turistas, devotos e velas. Numa pequena sala contígua, um padre de batina branca estava sentado atrás de uma mesa. Eu mostrei a minha Credencial del Peregrino e ele sacou a sua caneta e um carimbo. Após uma rápida resposta ao meu cumprimento, falou:
— Para quando é o início?
Disse-lhe quando pretendia começar e ele preencheu o primeiro quadrinho da minha credencial com o selo do Pilar, a data informada e a sua assinatura. Devolveu-me o documento, burocraticamente. Agradeci-lhe e saímos.
Havia em Victor uma certa melancolia. Algo o incomodava. Ele se sentia alijado de tudo aquilo à sua volta.
Enquanto saíamos, chamou-nos a atenção a enorme rachadura que nascia de um dos nichos e desaparecia antes de chegar ao teto.
— Se você tivesse nascido neste país, saberia que tudo isso tem um significado político muito forte. — falou-me pausadamente, quase num desabafo.
Senti que me dizia aquilo ab imo pectoris, do fundo do seu coração. A sincera inquietude de Victor lhe trouxera uma legitimidade moral e uma aura quase religiosa, ao mesmo tempo em que fazia parecer mais profano o templo que nos rodeava.
A guerra civil espanhola, travada entre 1936 e 1939, não ficou nada a dever, em termos de atrocidades, terror, sofrimento e cicatrizes, aos dois conflitos mundiais dos quais o país não tomou parte diretamente. O embate separou politicamente os espanhóis e, de certo modo, a sombra dessa divisão sobreviveu tanto ao fim do conflito armado quanto ao término da ditadura personalista e confessional de 40 anos, que se seguiu a ele.
A fé imposta, cega. A verdadeira religiosidade só pode ser vivida em liberdade, por opção. Quando essa possibilidade não é dada ao indivíduo, o caminho é o da negação e da resistência. É natural que a pessoa inteligente rechace todo e qualquer conteúdo identificado com um credo que lhe é estranho, porque lhe ser imposto.
Lembrei-me do que disse Sartre certa ocasião: “Se algo tivesse acontecido de modo diferente em minha vida, talvez eu e Deus tivéssemos hoje uma linda história de amor”. Creio ter sido Saramago quem afirmou o melhor modo de se perder a fé é ser educado por religiosos. É bem provável que se eu tivesse uma história parecida com as de Sartre, Saramago e Victor, também me definisse como ateu.
— Sabe, amigo, compreendo o que diz. Quero que saiba que quando falo de Deus não é exatamente a isso aqui que estou me referindo. — disse-lhe, então.
Já era final de tarde e procurávamos um lugar onde pudéssemos nos sentar e tomar algo que aliviasse a sede trazida pelo intenso verão ibérico. Acabamos por encontrar uma opção nada européia: uma lanchonete pertencente a maior rede norte-americana de fast-food. Buscamos um lugar para nos sentar, mas parecia que toda a cidade tinha tido a mesma idéia. Não havia uma mesa ou cadeira sem dono. Passamos por uma adolescente com uma mini-saia que possuía apenas uma hipótese de cumprimento. Na verdade, era uma infra-saia. A uns cinco metros, um velho, com a sisudez de um general da reserva, discretamente observava a garota com grande concentração, devidamente escondido detrás dos seus óculos escuros.
Resolvemos ir a outra lanchonete, pois não encontramos lugar. A mulher do velho chegou: uma senhora gorda trazendo um sorvete em uma das mãos. Ele rapidamente desviou o olhar do alvo e tirou os óculos.
— Victor, e se um anjo lhe aparecesse, ao vivo, falasse com você e lhe tocasse e, depois, desaparece diante dos seus olhos. Ainda assim você duvidaria?
— Pensaria que fui hipnotizado.
— Mas, como sabe, para que a hipnose surta efeito, você tem de concordar em ser hipnotizado.
— Eu estaria sofrendo de alucinações, então.
— E se não fosse só você a falar, ver e tocar a ser angelical — insisti — Se estivesse acompanhado de uma multidão.
— Então, seria uma alucinação coletiva.
Era como enxugar gelo. Nosso diálogo me lembrou uma história em quadrinhos de “Sam & Max”, de 1998, chamada “Skeptical Investigators”. “Sam & Max” são personagens criados pelo desenhista nova-iorquino Steve Purcel, de quem o meu incrédulo amigo era fã. Os quadrinhos de Purcel possuem um humor ácido, cético e politicamente incorreto, embora preservem um certo moralismo humanista. Creio que qualquer semelhança com Victor não era mera coincidência. Na história em questão, Sam, um cachorro gordo vestido de terno e gravata de listras, apresenta um programa de TV que entrevista uma convidada anunciada como sendo “uma garota de mente vazia que afirma estar grávida de um extraterrestre”. Depois de ridicularizar e desqualificar a entrevistada, Sam a observa partir-se ao meio, enquanto dá a luz a um ser de outro planeta. Mesmo diante da evidência do parto alienígena, ele não se convence e comenta: “Oh, Você é boa nisso. Parece mesmo real!”. Ao final, mesmo com o E.T. em pleno estúdio, Sam apenas anuncia a atração da semana seguinte.
Pois era igual. Victor não se renderia, mesmo que todo o estoque de ectoplasma do país fosse gasto para materializar uma baleia azul à sua frente.
Avançamos, descendo a Calle Alfonso I, e eu divisei uma placa anunciando alguns pratos interessantes na fachada de um restaurante.
— O que é aquilo anunciado no luminoso?
— É uma foto – respondeu, com a ironia de praxe, e continuou — Um norte-americano, há poucos anos, ofereceu um milhão de dólares a quem lhe oferecesse um caso “sobrenatural” que não conseguisse explicar. Ninguém apareceu. Ninguém!
— Eu me lembro. Ninguém realmente sério apareceria para algo assim. Eu não me fixo nisso, porque as minhas convicções não estão baseadas em fenômenos impressionantes, em “aparatos exteriores”. Outro dia vi na TV a história de alguns curandeiros que são imunes a picadas de cobra. Quando as serpentes os mordem, são elas, e não eles, que morrem. O que acha disso?
— Isso está explicado pela falta de higiene!
Rir foi inevitável, mas continuei.
— Há uma história sobre Paracelso, que fala de um jovem que o buscou, quando já tinha muita idade. Ele queria ser seu discípulo. Antes, porém, desejava ver algum prodígio do legendário alquimista. Paracelso pegou uma rosa e a queimou com álcool, numa bandeja. Depois se utilizou de um processo alquímico para fazê-la se recompor. O discípulo esperou um longo tempo, mas nada ocorreu. Enquanto o jovem aguardava para ver algum resultado, o velho mago apenas ficou em silêncio, cuidando dos seus afazeres. Já cansado e decepcionado, o candidato a discípulo entendeu que aquele homem alquebrado não passava de uma fraude. Resolveu não se despedir, para não humilhá-lo, e saiu em silêncio. Tão logo o jovem fechou a porta, a rosa se reconstituiu inteiramente...
Um Mercedes Benz conversível prata, que passava bem devagar ao nosso lado, chamou a nossa atenção.
— Veja isso, Emerson! Realmente existe uma “outra vida”, mas ela é muito cara...
Sorri mais uma vez, meneando a cabeça.
Escolhemos uma das mesas que estavam na calçada de um bar que nos pareceu agradável. O sol já se punha quando pedimos ao garçom uma garrafa de vinho, uma de água com gás e uma porção de “patatas bravas”.
— Importa-se que acenda um charuto? – perguntou-me, de modo gentil.
— Por favor, fique à vontade.
— Você não fuma, verdade?
— Não tenho estes pequenos defeitos, só os grandes. – disse-lhe, enquanto esvaziava o segundo copo de água gelada.
As “patatas bravas” chegaram, acompanhadas de algumas fatias de pão.
— Tudo isso que está dizendo, amigo, é pura imaginação! Não há nada de maravilhoso, fantástico ou espiritual. Ninguém jamais voltou da morte!
— Voltou sim. Hoje há uma ampla literatura científica que relata as chamadas “experiências de quase morte”.
— Isso tudo se deve à ausência de oxigênio no cérebro!
— Se quiser, posso lhe resumir a minha “teoria espiritualista”, como você a denomina.
— Como sou seu público cativo e ainda está claro para eu tentar uma fuga, acho que não terei escolha. Mas, é justo que o faça, pois também já o castiguei bastante com as minhas enfadonhas exposições.
— Não creia. É sempre um prazer lhe escutar. Como diziam os romanos: estu brevis et placebis. “Seja breve e agradarás”. Não sei se agradarei, mas certamente serei breve. Bem, por onde começar... Não existe morte! Quando nos vamos deste mundo, despimo-nos de uma vestimenta de carne e nos dirigimos a um outro nível de experiência. Atravessamos uma porta. Para além dessa passagem, encontraremos o resultado daquilo que realizamos em nosso estágio físico. Desfrutaremos do bem que espalhamos e das transformações que realizamos em nós mesmos ou lamentaremos o tempo perdido com o egoísmo e a ignorância em relação aos valores superiores que devem nortear a nossa vida.
— De onde você tira tudo isso? — murmurou, pondo a mão na testa — Mas, por favor, eu o estou interrompendo, continue...
— Não existe um “non plus ultra” na existência humana. A vida segue numa forma diferente, mas continua sempre.
— Esta expressão latina que usou, existia antigamente no brasão espanhol, porque se acreditava que não havia nada para além da península ibérica. Quando a América foi descoberta, a expressão foi alterada para “plus ultra”, literalmente “mais além”.
— Pois é o que também acontecerá com a ciência oficial ou dominante, quando ela levar em consideração o fator “Psi”. Será a maior revolução científica da humanidade: a descoberta do mundo espiritual!
— Mundo Espiritual! — disse, ao bater levemente a mão esquerda na mesa e olhar para o lado — Veja, amigo, o grande problema é que sem parâmetros científicos adequados, nenhuma descrição é aceitável. Nem mesmo a da rosa de Paracelso...
— E quando ainda não há parâmetros, Victor? O fato de encontrarmos respostas que não correspondem ao sistema de crenças vigente, não significa que elas não sejam válidas. Quando Plínio, o moço, descreveu a erupção do Vesúvio, no ano de 79 d.C., ninguém lhe deu nenhum crédito, pois nunca tinham tido notícia de algo semelhante. Hoje, por uma questão de justiça, as erupções vulcânicas com tais características são chamadas de “erupções plinianas”.
— Se você assumir estas suas crenças em algum artigo científico... Primeiro, ele não seria publicado de jeito nenhum. E, se o fosse, pior ainda, porque você estaria arruinado e desacreditado como filósofo. Se tornaria um proscrito!
— Imagino que sim — respondi-lhe sorrindo — Mas quando fizer isso, usarei o seu nome como meu pseudônimo...
— E eu passaria o resto da vida catando latas de alumínio para reciclagem.
— Deve ter sido por isso que Espinosa preferiu sobreviver como polidor de lentes. Desse modo não tinha que dar satisfações a ninguém de suas crenças pessoais...
— É verdade. A perícia é mais útil para se a ganhar a vida do que a inteligência. Buscarei cursos técnicos nos classificados para você fazer!
— É muita gentileza, mas deixe-me concluir.
Uma menina passou tocando castanholas, acompanhada pelo pai, que dizia: “Muito bem! Toque até ficar com os dedos dormentes, mas, por favor, quando chegarmos ao carro, largue isso!”
- Por favor, prossiga..., disse Victor.
— Obrigado. Somos espíritos imortais, apenas acampados numa barraca de carne. O universo está cheio de vida em toda parte, visível e invisível. O infinito não admite fronteiras. Ele nos perpassa. Surge de dentro de nós e também nos transcende. Os ecos do Infinito podem ser ouvidos nos murmúrios das galáxias e sua luz vista no lume das supernovas. Paradoxalmente, escutando a voz da própria consciência ou mergulhando no olhar de pureza de uma criança, podemos encontrá-lo também. O além de dentro e o além de fora se conciliam no homem, o seu ponto de intercessão. Assim como acontece com a nossa alma, o além de fora, também tem camadas e níveis. O olhar superficial da razão e os limites dos sentidos, não podem devassar os arcanos insondáveis nem da alma, nem do cosmos. É preciso ter uma perspectiva especial, uma abertura. O pensamento oficial nos impõe um consenso de realidade física que exclui o desconhecido, o imponderável e o intangível. Assim como a psicanálise e a psicologia convencionais tateiam no escuro, ao ignorarem o “superconsciente”, o “self transpessoal” e o “fator Psi”, a física e a química dominantes ainda desconhecem os outros níveis mais sutis da realidade, justamente o seu lado mais rico, mais complexo e completo. Por isso, muitas vezes os poetas, os santos e os místicos são os intérpretes, os canais, os “médiuns”, das dimensões mais essenciais de nós mesmos e do universo, muito mais do que os cientistas da alma e da matéria. O acesso ao Infinito não é exclusividade de nenhum ser humano, pois as portas da percepção das dimensões mais altas da vida estão abertas a todos, na alma de cada um. A função dos iniciados e dos mensageiros é, portanto, apenas educativa. É o espírito é que vivifica tudo o que existe e não a matéria.
— Isso parece com “vitalismo”.
— Sim, o vitalismo é coerente com o que estou afirmando. Ele foi defendido pelo genial cientista indiano Jangadis Chandras Bosi, que só não ganhou o prêmio Nobel porque ele não existia na época. Porém, como dizia, à medida que vamos crescendo espiritualmente, desenvolvemos uma percepção mais aguçada da grandeza da Criação, da vida e do universo. Vamos aprendendo que há uma Lei perfeita que rege tudo o que existe, que é infinitamente complexa e que transcende o nosso entendimento racional e limitado, mas que se resume com perfeição no sentimento chamado “amor”.
Como Victor não era teísta, não podia me dizer “pelo amor de Deus!” Mas, a essa altura, não se conteve mais e exclamou:
— “Vale”, “vale”! Tudo que está me dizendo é um apanhado de diferentes doutrinas espiritualistas que vão do orfismo grego à mística cristã medieval, passando pelo pitagorismo, neoplatonismo, e também pelo gnosticismo.
— Quanta classificação e rotulação! E você ainda pretende criticar Descartes em sua tese. Você põe tudo em escaninhos. O seu pensamento tem uma estrutura tipicamente cartesiana, mas também foi o próprio Descartes que disse que o pensamento, res cogita, possui uma estrutura independente do corpo, res extensa. Portanto, podemos concluir que, com a morte do corpo, não cessa a atividade do pensamento, que é espiritual.
— Você está se referindo à Sexta Meditação, não é?
— Isso mesmo: “Da existência das coisas materiais e da distinção real entre a alma e o corpo do homem”.
— As vantagens de uma educação erudita... — falou, ironicamente, antes de tomar mais um gole de vinho.
Durante a Idade Média, o que estávamos fazendo poderia se chamar de Questione Disputata, uma disputa entre posições filosóficas distintas. Em nosso caso, não havia animosidade nem platéia, somente o desejo que cada um sentia de expor, da melhor maneira possível, o seu pensamento para o outro, além de algum grau de proselitismo mais ou menos inconsciente. Mas é assim que funciona a amizade: só floresce na partilha daquilo que cada um é.
As “patatas bravas” tinham se acabado e o vinho estava na metade. Pedimos outra garrafa de água e mais duas “tapas”. A tapería é uma peculiaridade da gastronomia espanhola. Algo tipicamente ibérico. Pequenas porções de comida com uma enorme variedade de formas, de tamanhos, de cores e de sabores. Os ingredientes mudam conforme cada tapa: pimentões, ovos cozidos, azeitonas, pão, lingüiça, azeite de oliva, atum, maionese, pepino, salmão, batatas, sardinhas. Descrever uma tapa é quase tão difícil quanto descrever um acarajé.
— Sabe, Emerson, para as pessoas que vivem uma vida miserável, tudo isso que você está dizendo parecem fantasias criadas para embevecer uma classe média desocupada que se dedica a consumir produtos culturais que falam desta estética espiritualista “cool”.
— “Fan-ta-si-as”, “es-té-ti-ca co-ol”, soletrei e, depois, perdendo um pouco a compostura, disparei - Você acredita que tudo pode ser facilmente explicado por um racionalismo neo-positivista paralítico, cego e arrogante, por supostos seguidores do iluminismo, que querem correr para o extremo oposto das posições religiosas numa atitude débil de radicalização que nada mais é do que uma outra modalidade de fanatismo? Não acha que existem mais coisas entre o céu e a terra do que suspeita a sua vã filosofia “laica”?
— Não, “Shakespeare”. Entre o céu e a terra só há a atmosfera e alguns pássaros e aviões. As pessoas cultivam fantasias metafísicas e teorias da conspiração com o objetivo de compensarem a sua rotina deprimente e estafante e de preencherem as suas vidas medíocres e insuportáveis. O que é perfeitamente compreensível. Só que tal necessidade eu prefiro suprir com obras assumidamente ficcionais. Não há nada de secreto ou de profundo além da realidade objetiva. Não existe nenhum aspecto não-revelado da realidade. A vida é exatamente isso que estamos vendo e nada mais. Você quer ouvir algo “misterioso”? Lá vai: concentrado de açúcar queimado, ácido fosfórico, açúcar líquido, extrato de cafeína, benzoato de sódio, dióxido de carbono, cloreto de sódio, extrato da folha de...
— Isso dá para explodir um quarteirão?
— É a fórmula “secreta” do refrigerante mais famoso do mundo. Tão misteriosa que qualquer espectrômetro ótico pode desvendar. A única coisa que impede todo mundo de fazer igual é a patente. Não há nada de oculto nem de misterioso em nenhuma parte! Do mesmo modo, essas teorias espiritualistas bruxuleantes são fixações adolescentes que não significam nada para quem está na miséria ou no automatismo proletário de uma linha de montagem. Na verdade, tudo isso soa a...
— ...alienação? Agora você ataca de materialismo histórico. Não creio que a minha visão seja incoerente com uma postura de esquerda.
— Você!? Você é um burguês, Emerson! Ambos somos burgueses decadentes. A diferença entre nós é que eu o assumo! — disse batendo fortemente no peito.
— Ei! Cuidado com a sua pericardite! Lembre-se que se morrer, deixará de existir. Não quero que se acabe por minha causa!
Ele respirou fundo e franziu a testa.
— Como eu dizia, antes de convidarmos Descartes e Marx para o nosso banquete, a realidade, a vida, a natureza, em suas múltiplas facetas é um eterno convite ao bem. O sentido de estarmos aqui é o de aprender. É o de nos depurarmos de nossas imperfeições morais e nos dirigirmos a novas aptidões espirituais. Temos de converter o nosso pensamento num aliado do nosso crescimento ético, senão ele é somente perda de tempo. De nada adianta uma sapientia que não conduz ao bem. O sentido do conhecimento é nos tornarmos melhores, moralmente. O único saber verdadeiro é aquele que nos leva ao amor. A paz interior e o trabalho em prol da felicidade dos outros são a melhor garantia para a nossa própria bem-aventurança. É para isso que estamos aqui e é para aprender esta lição que continuaremos viajando pelos milênios sem fim, como irmãos das estrelas e filhos da eternidade...
Victor, então, mudou de tática. Pegou a garrafa de vinho, quase vazia, e passou a examinar o seu rótulo, dizendo:
- La Rioja. Crianza. 2005... O que estão pondo dentro dessas garrafas hoje em dia?
Terminamos com as tapas e com o vinho e pagamos a conta.
— Que lhe parece uma horchata ou uma “leche merengada”, de sobremesa? Eu o convido! — ofereceu Victor.
— Vamos de horchata!
Horchata é uma bebida típica de Valência, mas apreciada em toda Espanha. Serve-se sempre bem fria, granizada. É preparada com amêndoas, água, açúcar e chufa, o seu principal ingrediente, um tubérculo originário do oriente médio, cujas raízes são muito ricas e nutritivas.
Caminhamos um pouco até encontrar uma horchateria.
— Querem com canela? — perguntou-nos cordialmente o proprietário da loja, que tinha o aspecto de um comércio dos anos 70. Era um ambiente retrô, muito aconchegante.
— Pois, sim. Obrigado. Poderia nos dar dois canudos, se for tão gentil? — disse-lhe Victor.
Logo após a horchata, também me sugeriu uma água com gás de sua preferência. Realmente muito saborosa.
— Veja, há uma série de prêmios exibidos aqui no rótulo da água. São medalhas de honra ao mérito: Nápoles 1884, Paris 1889, Veneza 1902... — observei.
— E quando foi o mais recente? — perguntou Victor.
— Creio que é esta medalhinha aqui do canto: Viena, 1904. Não é um pouco suspeito que, de lá para cá, não tenham ganhado mais nada?
Todos rimos do comentário, inclusive o dono da horchateria.
— Ora, eu mesmo ganhei vários diplomas em competições nas quais tomei parte com a minha receita de horchata. Alguns deles são até muito bonitos! — falou o proprietário da horchateria, a propósito.
— E por que não os expõe aqui em sua loja? — sugeri-lhe.
— Homem, nós mesmos não estamos rindo de coisas como estas?
Impressionaram-me o bom senso e a humildade daquele senhor.
Depois de acompanharmos a virada da seleção espanhola sobre a da Tunísia, em sua segunda partida pela Copa da Alemanha, agradecemos ao simpático vendedor e continuamos a nossa jornada.
— Deus é como um desses diplomas de garrafa, Emerson: pura fumaça!
— Deus é Real, Victor. Ele É O Que Há de Mais Real. Não é que o seu ateísmo ilustrado não me impressione, mas eu suspeito que a sua “evangelização” não dará nenhum resultado comigo.
A essa altura, lembrei-me de um episódio ocorrido em uma aula de filosofia da mente, quando ainda fazia o mestrado. Meu professor canadense, perguntava-se sobre a existência da dor. Refletia se ela era uma sensação, uma crença ou um estímulo das fibras nervosas de tipo “C”. Um colega cético falou, então: “Professor, eu acho que Deus é como a dor!”. Neste momento, um outro companheiro de turma, um pastor presbiteriano, disse ao professor:
- Professor, peço a sua licença para estimular as fibras nervosas de tipo ”C” do colega que falou antes de mim.
Victor, além de filósofo, também era filólogo e analista de sistemas. Em sua tese de doutorado, pretendida conciliar os seus dois maiores interesses realizando um trabalho sobre Filosofia da Ciência.
— O mundo à sua volta não lhe parece uma representação artística da mente, Victor? Não lhe dá a impressão de que é a mente que cria a realidade material à sua volta em vez de ser o produto do mero desenvolvimento dessa mesma “realidade”?
— Hum, a realidade como uma representação virtual, uma simulação... Creio que esse filme já foi realizado...
— Sobre isso lhe indico um livro em vez de um filme: “O universo autoconsciente”, de Amit Goswami. É um brilhante físico indiano, radicado nos Estados Unidos.
— Pedro Abelardo disse que a “mente” é apenas uma idéia!
— Concordo. Uma idéia da Mente Divina. A nossa mente limitada cria a realidade à nossa volta, por vezes conflitante, e a Mente Divina mantém o equilíbrio e a harmonia em todo o Universo. Quando sintonizamos a nossa mente com a Mente de Deus, passamos também a ser um fator de equilíbrio em nossa própria vida e no mundo em que habitamos.
Um carro atravessou o “paso de zebra”, a faixa de pedestres, com o sinal ainda verde e quase nos atropela. “Oléééééé!”, disse Victor ao motorista.
— Por mais que os céticos o neguem, estou certo de que o conceito de uma Força Reguladora de todo o Universo lhes seduz. Embora esta lhe seja uma imagem estranha e indesejada, é algo que insiste em ser belo. – provoquei.
— Deixe-me ver... “uma idéia estranha e indesejada que insiste em ser bela”. Isso parece mais uma descrição da pirâmide do pátio do Louvre...
— Você não acha necessário acreditar em Deus nem nossa imortalidade. Já eu, não acho que isso seja suficiente. É fundamental que nos melhoremos moralmente, que nos iluminemos, que nos tornemos “amor”.
A noite caiu e continuamos o nosso caminho em direção à “Puente de Santiago”, assim chamada em homenagem à remota visita do apóstolo à cidade. A ponte, sobre o rio Ebro, oferece a visão privilegiada das torres do Pilar ao lado da “Puente de Piedra”, igualmente iluminada. Dois majestosos postais de Zaragoza.
— Não sei se anda lendo muito Nietzsche, Victor, mas parece que você se considera como um “filósofo grego trágico...” De fato, a Grécia não fica tão longe da Espanha...
— Isso é verdade. Ademais, o nosso culto aos touros provavelmente foi trazido à península pela civilização minóica.
— De fato, há afrescos de uma tourada no palácio de Cnossos, em Creta. Quem sabe também não levaram algo daqui para lá. Você até poderia defender uma tese sobre a origem mediterrânea da filosofia.
— Algum ufanista já deve ter feito isso.
— Se eu tivesse a sua formação e habilidades matemáticas, eu me dedicaria a estudar a Ars magna do seu também conterrâneo Raimundo Lulio, o “doctor iluminado”.
— Também considero Lulio como um gênio. Admiro-o muito por ter enfrentado a escolástica. Como sabe, sou basicamente um filósofo, pois não aproveito os meus conhecimentos de analista para nada. A não ser para consertar o computador de uma garota, que me chama sempre com essa desculpa... — A “técnica” a serviço da “erótica”!
— Isso sim renderia uma boa tese! — disse pondo a mão no queixo, como “o pensador” de Rodin.
O vento mais forte, na travessia da ponte, acentuou a queda brusca de temperatura. O céu estava sem estrelas, mas o rio refletia as luzes da cidade, produzindo as suas próprias constelações fluviais com miríades de pequenos pontos luminosos, flutuando sobre as águas do Ebro.
Como “treino” para o Caminho de Santiago eu, às vezes, acompanhava Victor até a sua casa para depois retornar, sozinho e a pé, ao meu apartamento, que ficava na outra margem. Somando ida e volta, era uma caminhada de quase três horas, que eu aproveitava para “amaciar” a minha bota de caminhar. Sempre valia a pena, tanto pelo exercício quanto pelos diálogos.
Uma espessa procissão de formigas atravessou o nosso caminho, de repente.
— Sabia que, certa vez, Joana D`Arc desviou o seu exército para não atropelar uma fileira de formigas? — disse eu, então.
— É por isso que a tratavam como louca. Para onde será que essas aqui vão?
Curiosos, sobre a direção das formigas, fomos seguindo aquela coluna de insetos pela rua. Dois homens de 33 anos acompanhando formigas era um comportamento que contrariava o completamente o padrão de comportamento dominante. Os outros transeuntes, como que puxados por uma coleira invisível, nem sequer desconfiavam do nosso interesse. Pareciam demonstrar uma menor consciência, em relação ao seu próprio destino, do que as formigas com respeito ao delas. Se alguém se desse conta do que estávamos fazendo, certamente imaginaria que pertencíamos a alguma firma de dedetização.
Seguimos a fileira por dois ou três quarteirões até que ela foi se tornando mais rala. Contemplávamos, admirados e mudos, aquela pequena disciplina da natureza.
Num mundo tão frio, veloz e objetivo, tal cena só poderia ter lugar no campo, mas estávamos os dois ali, em plena cidade, observando uma trilha de insetos. Assim nos demoramos por algum tempo ainda, num reverente silêncio.
Pus uma das mãos na orelha, aproximando um pouco a cabeça em direção às formigas e disse:
— Escute só o que elas estão dizendo: “Emerson tem razão. Ouça o que ele diz!”
Victor fez o mesmo e falou:
— Ouça melhor: há dois grupos. Um deles está dizendo: “Não, o outro é quem está certo!”
Agora tínhamos até torcidas filosóficas organizadas.
— Pois eu já vou, Victor. Durma com os anjos!
— Eu prefiro dormir com as anjas.
— Mas os anjos não têm sexo, amigo.
— Então eu não quero a companhia deles.
— Os anjos devem estar indo embora do seu quarto, aborrecidos com você!
— Pois que se vão com sua castidade!
Rimos juntos mais uma vez dos abismos que nos separavam e da amizade que nos unia.
Despedi-me das formigas e do meu amigo e empreendi o meu caminho de volta para casa.
Enquanto andava, pensava em minha vida, em tudo o que conversamos e na longa jornada que teria pela frente, não no trajeto para o meu apartamento, mas na que enfrentaria durante o Caminho de Santiago.
A temperatura tinha baixado ainda mais, contrastando com o calor que fazia ainda há pouco. O céu nublado e a escuridão da noite realçavam o brilho das torres históricas, em meu retorno solitário. Podia ouvir o rangido da minha bota de caminhar ao tocar o chão, diante de uma cidade que silenciara, de repente. Todos desapareceram. Zaragoza agora dormia.
Passei em frente a um outdoor da Expo 2008, que já estava sendo preparada. A Expo é uma grande feira européia de inovações científicas, com diversos pavilhões de diferentes países, proposta em torno de um tema. No caso da Expo 2008, este seria a água. A feira de 1855 legou a Paris a Torre Eiffel. Seguiram-se a ela as Expos de Londres 1862, Barcelona 1888, Turin 1961, Lisboa 1998, Sevilla 1992, Hannover 2000 e Aichi 2005, entre outras. Aconteceram numa média de três vezes por década. A exposição sempre deixa grandes marcos em cada uma de suas edições, como a Plaza de Espanya, em Barcelona, por ocasião da Expo 1929.
A edição 2008 deixaria em Zaragoza a Ponte do Milênio e, também, a Torre de Água, um imponente edifício de vidro em formato de gota d´água. Nada menos de 100 países participariam da feira. Era uma importante exposição para uma cidade importante. A cidade de Miguel Servet, de Baltazar Gracián, de Santiago Ramon y Cajal, de Segundo de Chomon e de Luís Buñuel. A cidade de Goya!
Eu realmente não estava interessado em defender as minhas teorias metafísicas, embora acreditasse sinceramente nelas. Não queria convencer ninguém de nada, muito menos Victor. Tampouco me atraíam as discussões filosóficas. Sentia-me, na verdade, oco. Em tal estado, quanto mais falamos, mais nos sentimos vazios. Eu só queria calar e ouvir. Emudecer. Sentar e observar. Estava com fome de silêncio.
Meditava sobre quais seriam os planos de Deus para mim, diante de tudo o que tinha passado. Apesar da minha fé, meu coração estava cansado e eu me sentia só. Levava comigo uma esperança entristecida, pelos duros golpes que sofrera. O caminho de Santiago seria uma pausa em movimento, na qual refletiria sobre tudo o que me aconteceu.
Uma voz interior me falava de uma razão maior, de um sentido que o tempo consolidaria, enquanto minha vida voltasse a fazer sentido.
Uma frase de Thoreau estava em minha mente: “Não são as coisas que mudam, nós é que mudamos.” Interiormente tudo se transformava a cada instante para mim, por isso, ao menos por ora, eu não poderia ficar no mesmo lugar, vendo a mesma paisagem. O caminho me daria a visão do horizonte que se transforma a cada passo, numa metáfora do que estava ocorrendo dentro de mim.
Apesar de tudo, um profundo sentimento de gratidão a Deus me invadia a alma.
Foi quando me lembrei do meu amigo Victor, o ateu que intuía, em sua mente e em seu coração, que o Infinito estava mais presente numa simples procissão de formigas do que num enorme e sólido templo de pedra...