Existem vozes que são inconfundíveis quando cantam. Seus tons e timbres são exclusivos. Vozes que têm personalidade, encantamento, originalidade e que ecoam no meu coração de forma arrebatadora. Essas vozes são as de Caetano Veloso e Chico Buarque. Maria Betânia e Gal Costa também conseguem essa façanha. No caso de Chico, o enigma ainda é maior, pois dizem que ele não tem uma voz assim poderosa, mas, quando uma canção dele é cantada por ele, há aquele tom intimista, meio tímido, meio malandro, meio tudo, que nós todas amamos,
Começo falando da voz de Caetano Veloso para chegar no evento que foi sua tão esperada live de aniversário, quando completou 78 anos no ano passado (2020). Acompanhado de seus filhos, Moreno, Zeca e Tom, em sua sala, ele fez um show com 27 músicas para tirar qualquer um das noites sombrias e apreensivas dessa pandemia. Como fã de Caetano desde os 13 anos, me preparei com alegria, alegria , além de vinho, queijinhos e um coração vagabundo. Sozinha no meu quarto, não dei conta de tanto contentamento.
Lembro que as redes sociais explodiram de fotos e de “parabéns pra você” de uma legião de famosos e anônimos, com um amor transcendental que sentimos por esse artista. Também me sentindo tão íntima, enviei a minha mensagem carinhosa. A escritora Martha Medeiros, de quem também sou fã, falou por mim:
Por toda poesia, por todas as camaleoas, irenes, tigresas, vacas profanas, pela Bahia, por London London, por terra, pelos flying saucers in the sky, pelos teus filhos, pelos doces bárbaros, pelo sol de quase novembro, pela tua oz, pelos quereres, por outras palavras, por todas as palavras, pela paz, pela luta, obrigada mil vezes. Feliz Aniversário!
Caetano abriu o show com Milagres do Povo , o que já foi suficiente para eu me remexer por entre a cama e a TV. Impagável. Digo, a música claro! Também nos brindou com músicas das trilhas das nossas vidas, como: Sampa, Cajuína, Tigresa e Leãozinho. O show também me revirou as entranhas e me levou ao tempo longínquo dos anos 80 em Baía Formosa, com loucuras e des-encontros perdidos rumo ao farol ou Marrakesh, ao som de Queixa, Qualquer Coisa e Trilhos Urbanos. Com Nine Out of Ten, viajei por Portobelo, lugar das minhas andanças, em tantas vezes que por lá fui, na feira aos sábados, atrás do mundo, dos brincos e do multiculturalismo londrino (I walk down Portobello road to the sound of reggae, I'm alive...). Fui abduzida até Notting Hill, à ditadura militar e à prisão revoltante de Caetano e Gil. Com Reconvexo, como não lembrar de Kubi Pinheiro e das suas festas de aniversário?! Caetano ainda cantou a “partitura musical” Pulsar, de um poema dos irmãos Campos, poesia concreta, música abstrata e arrebatadora. Estreou Talvez do seu filho Tom.
Foi trilha de uma legião de afetos de todas as idades. Sou muito grata por ter vivido no seu tempo e mais... no de Chico, Gil, Betânia, Gal, os meus Doces Bárbaros! Como confidenciou Regina Casé (rapte-me camaleoa), eu também sonhei muito com esse Caetano. Até sonhos eróticos! Sempre o achei lindo: de batom, de saia, de terno, com dancinhas, nos falsetes e graves, vaiado nos Festivais (é proibido proibir). O seu canto, a sua cabeça, o seu estar na vida, tudo pra mim era/é objeto não identificado. E de desejo! A minha androginia Woolfiana! Minhas amigas achavam essa minha atração inconcebível, por o considerarem um homem feio. Para mim, a transgressão, a inteligência e o pensamento são, sim, zonas erógenas! E de mistério! Até que nem tão esotérico assim... Sempre tive uma ligeira impressão de que Tigresa tinha sido composta para mim. Com as devidas proporções com a sua inspiração. Sonhar, a gente pode! Mas um sonho infinito!
Sempre me perguntei: E os filhos de Caetano? Esses rapazes tão bem comportados! Moreno cantou Sertão, mas “ternura” é a palavra que o define; Zeca, o falsete do pai, declamou Todo Homem; Tom, cujo nome não nega, um caçula que se apresenta descalço ou de meias chegou com Musical e Talvez! Poderia muito bem ter saído um que se contrapusesse a tudo isso, até mesmo à rebeldia incontestável do pai. Um beberrão. Um fora da curva. Ou inclinado para o outro lado que não é de espelho... Mas, como comentou minha amiga Marta Pessoa:
“Ele é um alento para mim. A prova de que se pode ser rebelde e responsável. Transgressor e gente fina. Ateu e cristão”.
Cantando esse Homem Velho, com sua voz melodiosa inconfundível, calçando “mules” bordados (presente de Preta Gil), numa harmonia quase divina com seus filhos homens, Caetano também não fugiu da política: falou dos índios e cantou Um Índio; do des-governo, dos famigerados Ministérios da Saúde e do Meio Ambiente, e dos nossos dias sombrios e abandonados na pandemia. E anda enalteceu o Ballet Folclórico da Bahia, quando cantou Odara, música também dos dias e festas de nós todas.
Odara! Salve Caetano! E Muito Obrigada! Por existir. A que será que se destina? Você, nu com sua música! Um diamante verdadeiro!