Decerto por estarem mais perto do céu, os mosteiros se instalaram nas montanhas. O isolamento nas altitudes, distante do burburinho cotidiano, além de ampliar as perspectivas contemplativas, eleva a alma a sintonias com camadas mais sutis da atmosfera.
A relação das elevações rochosas com os vulcões as torna mais especiais por terem sido formadas pela desintegração de partes profundas da Terra, que se dirigiram fenomenalmente em busca da luz, tal como semente que brota do grão submerso em solo fértil.
A atração por estes espectros luminosos não se limita aos prazeres visuais das alturas sobre as paisagens. Há algo de transcendente nas cordilheiras que depura sentimentos, incita o espargimento da consciência e da sabedoria. Há milênios, sábios, monges e iniciados se dirigem para as montanhas à procura de estados de pureza e plenitude espiritual.
Os efeitos da vida civilizada e o consequente progresso da ciência, da tecnologia, das artes, da filosofia, da literatura, da religião, influenciaram o pensamento, a conduta, a organização social, moldando conceitos e concepções que distanciaram o ser humano de verdades puras e simples. Equívocos se acumularam em arquétipos ideológicos, religiosos, por meio de instituições a serviço e sob influência do poder de uns sobre outros, da exploração e subjugação das potencialidades humanas. Estabeleceram-se conflitos paradoxais oriundos das conquistas do conhecimento, das descobertas científicas e os conceitos de felicidade se firmaram em dogmas que normatizam e padronizam costumes.
Em seus meados, o século 19 notabilizou-se pelos frêmitos de efervescência artístico-cultural e correlatas turbulências de variadas ordens. Um novo ser, influenciado e complexo, emergia deste contexto conturbado, cheio de dúvidas, incertezas e questionamentos, imerso em uma sociedade injusta, desunida e contraditória.
Uma pausa se fazia necessária para refletir, investigar, ponderar acerca do sentido da existência, para que a natureza humana se dissecasse em novas elucubrações filosóficas.
Nenhum lugar reluzia com mais sensatez para o iminente mergulho interior do que a montanha. E para lá o Zaratustra de Nietzsche se retira para dar início ao recolhimento meditativo de uma década. O filósofo alemão então concebe sua célebre obra “Assim falava Zaratustra”, e elege como protagonista o maior profeta da religião persa, que viveu séculos antes de Cristo.
A situação da espécie que evoluiu do primata ao homem moderno, representante da exponente supremacia do mundo ocidental, donde se originaram tantas mazelas, ecoava-lhe intimamente, sem encontrar alento algum em suas buscas existenciais.
O Zaratustra de Nietzsche não identificava na estrutura sociológica, costurada secularmente, bases compatíveis com a felicidade pessoal ou coletiva. A desvalorização do ser, do corpo, do ente individual reduzia assustadoramente o potencial humano, moldado por regras institucionais, açaimado no arcabouço de conceituações éticas e estéticas limitadoras e paradigmáticas.
As religiões dominantes impunham culpa, pecados originais, repressão dos desejos naturais pela dogmatização da fé em detrimento da razão, e o homem sucumbia submisso e amedrontado à mercê da crença como um fardo pesado a ser carregado com vistas à premiação de uma vida feliz após a morte.
Por isso Zaratustra precisou subir, ilhar-se, esquecer de tudo o que viu e apreendeu, romper e destruir influências estigmatizadas, esvaziar-se por inteiro, e assim começar a reconstruir-se em aprendizados puros e libertos da moral nociva da pseudo civilização em que nasceu, viveu e das consequências ora testemunhadas.
Dez anos foram necessários para cultivar o vazio absoluto em que pudesse recompor a mais cristalina sindérese, plenificar-se, coligir princípios verdadeiramente impolutos, capazes de preencher ambiguidades, controvérsias, e distribuir a sabedoria então adquirida com os semelhantes.
Para o profeta, em uma representativa parte do planeta, o pensamento e a conduta dos povos civilizados estavam condicionados a praxes hegemônicas fundamentadas em equívocos que necessitavam ser revistos. Então era chegada a hora de descer a montanha, de enfrentar a vida em um mundo que precisava ser alertado.
Mas a urbe que lá embaixo ruge havia-se apática, entretida com a rotina banal, corrente e recorrente, passivamente catequizada. Não aparentava interesse algum no que Zaratustra tinha a dizer, ensinar. Lembravam camelos a carregar o peso das tradições religiosas fortemente arraigadas no que pensavam e viviam.
Zaratustra desejava lhes avisar que só é possível evoluir pela transmutação integral, em três Metamorfoses do Espírito. Do camelo ao leão, e do leão voltar a ser criança. O camelo obediente e reprimido precisa se conscientizar de sua natureza, do poder de sua vontade, para se autoafirmar à imagem e à essência da Força que o criou. Apenas tornando-se um leão, ele será capaz de destruir ideias que o moldaram, enquanto se manteve subserviente aos cânones que lhe foram instituídos.
Mas o domínio de si próprio não lhe é suficiente à total realização, mesmo após recuperar a consciência, o livre arbítrio e conquistar a independência sobre tudo e todos. O poder e a vontade não conferem a pureza que o levará à plena transcendência. Apenas a experiência niilista, capaz de alcançar o vazio absoluto, possibilitará o renascer pleno.
Para o Zaratustra de Nietzsche, as etapas transformadoras cumprem três aspectos sucessivos. Primeiro, a imperiosa destruição dos conceitos religiosos até então criados - e é aí que se introduz a “morte de Deus” - sobretudo nas formas do cristrianismo institucionalizado após Jesus, desvirtuadas da mensagem verdadeiramente ensinada e protagonizada pelo redentor. Para ele, a deturpação conceitual da divindade e de tudo o que o Cristo codificou sedimentado na solidariedade, na liberdade e no amor ao próximo, havia de ser aniquilada. Era imprescindível exterminar o deus caricaturizado, antropomorfo, concebido sob entendimentos duvidosos, senão mal intencionados, forjado por correntes teológicas e religiões dominantes. Esse, o primeiro passo do trio: Morte - Renascimento - Superação.
Sucedendo-se ao completo extermínio teogônico, o homem viria a renascer, ainda que “demasiado humano”. Ressuscitaria puro e disposto a se entender integralmente com “vontade de potência”. Não a potência sobre os demais, à cata de seguidores, subordinados, mas sobre si próprio, consolidada à medida que se descortinasse inteiramente liberto.
“Não verá Deus aquele que não nascer de novo” - já dizia Jesus Cristo, em alusão à necessidade de matar o eu vigente em busca da iluminação. Tal como a semente precisa morrer para que dela a árvore nasça e faça ressuscitar a sublimação do existir. Apenas a visão instantânea na vacuidade do momento presente, capaz de reunir simultaneamente passado e futuro, deslumbra-nos-á e nos fará experimentar a vida como fenômeno existencial infinitamente cósmico.
A criança experimenta, em sua genuína candura, este estado de alma. Por isso, Zaratustra ensina que o leão deve voltar a ser criança - a última Metamorfose do Espírito. Tal como também pregou Jesus:
“Deixai vir a mim as crianças, não as impeçais, pois o Reino dos céus pertence aos que se tornam semelhantes a elas”.
Nietzsche permanece incompreendido naquilo que escreveu e sobretudo no que quis dizer, sempre interpretado sob flancos de angústia, pessimismo e disseminador de um niilismo raramente assimilado com a legítima luminosidade de sua filosofia.
Sob a intransigência do ceticismo materialista radical, do culto à irresponsabilidade e ao descompromisso com a ética, faz-se impossível perceber que não foi a morte do Deus imanente a todos os seres, “inteligência suprema, causa primária de todas as coisas”, que ele declarou.
Tal como se mostra difícil supor que Nietzsche fosse implacavelmente destituído de qualquer encanto perante a sublimidade da criação, a perfeição das leis que regem a vida e o magnífico universo do qual fazemos parte. Evidencia-se mesmo paradoxal que um “descrente” se inspire com tanta ênfase em um profeta monoteísta, fundador do Zoroastrismo, que reverencia um deus criador, “deus da luz e do reino espiritual”.
Mas Nietzsche amplia tal reverência para além do espírito, sem dissociá-lo do corpo e do intelecto, restabelecendo neste trio a dignidade do ser humano e sua ilimitada potencialidade. Somente com equilibrada valorização destes três aspectos, o homem iria além do homem, tornar-se-ia livre de todas as amarras asfixiantes da moral pré-infundida, pronto para dançar.
É a arte, sobretudo música e dança que fazem brotar em nós o sentimento de religiosidade, inteiramente distinto de religião. Sempre uma importante alegoria metafórica, a dança surge nos caminhos de Zaratustra como ferramenta para a transvaloração moral de sua proposta.
Nietzsche identifica como “espírito livre” aquele que dança” e até chega a dizer que só acreditaria em um deus capaz de dançar”, o que também contradiz um suposto ateísmo radical. Desde o início de sua obra, ele evidencia a Arte como solução para escapar da submissão, reintegrar-se à vida, e vê a dança como fonte de entusiasmo, elo extasiante entre o corpo, a música, os semelhantes, o divino. Um dançar livre e criativo, com a graça infantil, eximido de códigos, a ultrapassar as esferas mundanas.
Ao povo que Zaratustra encontra quando desce do monte não era mais permitido dançar, prática que a cultura judaico-cristã passou a atribuir como profana. E por isso ele ensina que todos deveriam voltar a bailar, como meio de se reconciliar consigo, com o outro, com a natureza, em total celebração da vida, para romper limites, livrar-se dos rebanhos em busca de si. Esse é o conceito nietzschiano de “super-homem”.
A música constitui-se intensa realização pessoal em toda a vida de Nietzsche. Além da função educativa, ele a considera capaz de conduzir o ser humano a atmosferas superiores para sublimar sua relação com a existência. Sobre “Assim falou Zaratustra”, talvez seu trabalho mais lido e estudado até hoje, afirmou que poderia ser entendida “inteiramente como música”.
Dois grandes músicos se ligaram a Nietzsche de maneira extraordinária. Coincidentemente, dois “Richards”: Wagner e Strauss. Com relação ao primeiro, a crítica à cultura moderna, os tributos à cultura grega, a influência de Schopenhauer são laços significativos que fortaleceram a amizade. Há evidências de que a música de Wagner inspirou seus princípios filosóficos.
O segundo, Richard Strauss, que cultuava enorme admiração por Nietzsche, compôs em sua homenagem um dos mais aclamados poemas sinfônicos, o homônimo “Assim falou Zaratustra”.
Com duração de pouco mais de meia hora, a peça foi dividida em 9 partes ininterruptas que descrevem um panorama da evolução da humanidade desde a origem símia, formação das comunas, das civilizações, das religiões, descobertas científicas, o consequente predomínio de conceitos cerceadoras da liberdade, até romper com todos os paradigmas e, enfim, atingir o “Übermensch“ - o além-homem”.
1.
Nascer do Sol ▪ Sonnenaufgang ▪ A introdução que se tornou mundialmente famosa simboliza o contexto de divinização interior que a montanha proporcionou em Zaratustra, no contato mais próximo do céu e da paisagem que lá se deslumbra , principalmente “perto” do Sol, o Astro-rei. Neste impactante prelúdio, conclui-se que ao nascer do Sol a beleza se integra à dor da sabedoria e à certeza da morte. No programa de estreia, Strauss descreveu-o como o “contato do homem com o poder de Deus”, referindo-se à experiência mística de Zaratustra na montanha .
2.
Dos habitantes dos mundos ocultos ▪ Von den Hinterweltlern ▪ Aqui se sente uma busca nostálgica por respostas jamais encontradas nas religiões de até então, muito menos nas entidades configuradas como divinas. Um certo estado de lamentada descrença nos deuses e mundos ocultos criados que de nada preenche o “pobre cansaço ignorante”. A música cresce e logo revela
a alegria experimentada com certeza destas lacunas e a disposição para vencê-las .3.
Do imenso desejo ▪ Von der großen Sehnsucht ▪ Após breve preâmbulo, as três notas temáticas começam a soar discretamente distantes . Dialogam primeiro suavemente com a orquestra e logo se enrobustecem em denso colóquio . É quando Strauss reforça que o desejo nasce embrionário e aos poucos se agigantam em meio a dúvidas arrebatadoras sem encontrar conforto na saciedade de seus instintos. Tudo evolui sofregamente para acrescentar a esta angústia vivencial as paixões e as alegrias.4.
Das alegrias e das paixões ▪ Von den Freuden und Leidenschaften ▪ Agora tudo é paixão . Strauss se supera no grau de romantismo ao sonorizar a indignação diante da ausência de respostas em sua entrega à volúpia e insaciedade dos instintos. A eloquente e magnífica orquestração reflete os conturbados de conflitos com grandiosidade melódica contagiante, magistralmente concluída.5.
Canto do túmulo ▪ Das Grablied ▪ Nesta parte que Strauss intitulou em caráter fúnebre, a sensação não poderia ser outra: a desolação e o desespero frente ao reconhecimento da impotência perante às vias inexoráveis do destino. Emergem impiedosas incertezas , tudo é penumbra obscura e pantanosa refletida na dramática experiência de Zaratustra, em suas ligações com as reais vivências e situações do mundo.6.
Da ciência ▪ Von der Wissenschaft ▪ Aqui o poema remonta à nova busca do homem por soluções, desta vez por meio da Ciência. As referências são sombrias e misteriosas tanto quanto a desesperança igualmente sentida na frustração diante das descobertas científicas, insuficientes aos propósitos de transcendência. Dentro deste suspense o poder vital lateja, cresce aos poucos, e faz-se enxergar na luz entre as sombras, na certeza de que a compreensão virá por meio das metamorfoses relembradas em várias sequências do trio de notas que se concluem com ânimos renovados.7.
O Convalescente ▪ Der Genesende ▪ Neste movimento a notável habilidade composicional de Strauss impressiona. As três notas são enfatizadas em ritmo de formidável fuga , invertem-se em profusa e emocionante polifonia, evocando conflitos que predispõem a migração do homem ao super-homem, que finalmente se livra dos males da ignorância. É a superação inebriante que Strauss nomeia como “Convalescença” e celebra o triunfo do profeta Zaratustra que brilha musicalmente na preparação da próxima parte que, talvez, seja o auge deste extraordinário poema. É como se na convalescença já se descortinasse o gáudio que se aproxima no canto de esfuziantes trompetes .8.
Canto da dança ▪ Das Tanzlied ▪ Enfim, a dança, a volúpia completa na fusão do corpo, alma, desejo e liberdade. É a consagração dos ideais de felicidade plena, alegria voluptuosa atingida na doação integral
de si próprio às órbitas sidéreas mais sutis. É o tão desejado retorno à inocência , à pureza, à criança bem-aventurada, aos reinos dos céus que está dentro e fora de tudo o que existe. No auge sinfônico majestoso que arremata a Canção da Dança, Strauss glorifica sua grande reverência a Nietzsche, filósofo que sintetiza a verdadeira mensagem de redescoberta da existência em um sentido muito maior do que o que se restringe a niilismo. Niilismo entendido como óbito da ilusão, luz que esclarece, liberta e une os seres vivos em comunhão absoluta com sua capacidade de fazer e produzir com amor a tudo e a todos, à vida e à morte, à música, à arte, crendo apenas em um Deus capaz de dançar junto conosco na grande espiral em que a vida se realiza infinitamente.9.
Canto do viajante noturno ▪ Nachtwandlerlied ▪ Como tudo é cíclico, o espetáculo também se finda. Agora o sino badala, evoca a noite do viajante protagonista. Em caráter enigmático, soa o fim que se confunde com começo, a sugerir que nada é conclusivo. Nem a arte, nem a vida que se entoa como música, por entre todas as ambiguidades e dissonâncias, indo e vindo, do passado infinito ao futuro presente, sempre nos conduzindo ao eterno e divino retorno ... como falou Zaratustra.