Um tributo a Walt Whitman e Vaughan Williams
“O mar é para mim um milagre sem fim: os peixes nadando, as pedras, o movimento das ondas, os navios que vão com homens dentro — existirão milagres mais estranhos?”... Com poucas palavras e muita poesia, Walt Whitman descreve os fabulosos mistérios desta maravilha aquática, a “sopa primordial”, que, segundo o biólogo Aleksandr Oparin, deu origem às formas de vida na Terra.
O fascínio que os mares exercem diante dos seres desde os primórdios culturais da História imprime-se na arte, na literatura, na música, na poesia, na ciência, assim como em outras áreas do conhecimento. Pinturas famosas, belos poemas,
Ayvazovsky, 1880
O universo das praias e pélegos mereceu registros notáveis. Nas embarcações desenhadas em garatujas pré-históricas, na representação de assombrosas criaturas habitantes das profundezas oceânicas, no imaginário mitológico, na poesia épica, em respeitáveis obras literárias, rituais, religiões, na música de várias épocas e estilos.
Em Walt Whitman, as referências ao mar assumem afinidade com as metáforas presentes em sua ideia de totalidade e na nítida admiração pelo manto oceânico que acolhe todos os países, interligados um fluido aquático disperso pelo planeta: o meio ambiente que compartilha a vida das mais remotas origens à atualidade. Não à toa, o premiado escritor e tradutor de poesias, Ivo Barroso, identifica na obra de Walt Whitman o que chama de “Voz Oceânica”.
A vida, a natureza, a transcendência espiritual, a perspectiva humanística, a religiosidade, a metafísica, são traços diáfanos da homologia entre a expressão poética de Whitman e o mar. Como se o “espelho do céu” refletisse em seus signos e mistérios toda a ânsia de liberdade ilimitada que caracteriza sua obra.
Ayvazovsky, 1858
Ambos causaram fervoroso impacto na história da Literatura e da Música ao romper com a estética formal de suas épocas. Whitman cognominou-se “pai do verso livre” por escrever poemas inteiramente dissociados do arcabouço tradicional que moldava a poesia com o rigor das rimas e métricas. Vaughan escreve a primeira sinfonia integralmente cantada. Uma magnífica obra para duas vozes (soprano e barítono), grande coral e orquestra.
Familiarizado com poesia, filosofia e literatura, Vaughan William foi apresentado à obra de Walt Whitman por seu amigo, o filósofo Bertrand Russel. “Folhas de Relva” o cativou de imediato pelo aspecto não convencional e a obra se adaptou perfeitamente a uma peça sinfônica fora dos padrões. Ainda que Beethoven, Liszt, Mendelssohn, Mahler, Shostakovich, Stravinsky e Górecki tenham inserido corais parciais em sinfonias, na “Sinfonia do Mar” a voz está presente do começo ao fim. A magnitude da música e dos versos extraídos dentre os mais de 400 poemas de Folhas de Relva não os permitia estar distantes na partitura em instante algum, como belezas que se abraçam ininterruptamente à divina reverência perante o mar.
Além de ser um dos favoritos poetas dos compositores britânicos que mesclaram música e letras, a independência dos versos de Walt Whitman também se adequou a composições de Villiers Stanford, Charles Wood, Hamilton Harty, Frederick Delius e Gustav Holst.
Em outras peças, Vaughan Williams uniu poemas de Whitman com maestria, como no “Ciclo de Canções” (para barítono e piano), “Rumo ao desconhecido” (canção para coro e orquestra), e na cantata “Dona nobis pacem”. Mas é na “Sinfonia do Mar” que ele atinge proeza mutualística ao fundir texto e música no incandescente magma sinfônico que se divide em 4 movimentos, nominados com trechos de Folhas de Relva:
▪ Uma canção para todos os mares, todos os navios (A Song for All Seas, All Ships);
▪ Na praia à noite, sozinho (On the Beach at Night, Alone);
▪ As ondas (The Waves);
▪ Os exploradores (The Explorers).
▪ Na praia à noite, sozinho (On the Beach at Night, Alone);
▪ As ondas (The Waves);
▪ Os exploradores (The Explorers).
A introdução já evidencia o exaltado panegírico em homenagem ao tema, prenunciado por trompetes e declamado pelo coral: Vê, o próprio mar! (Behold the sea, tradução de Gentil Saraiva Júnior):
“Vê, o próprio mar,
E em seu ilimitado peito ondeante, os navios;
Vê, onde suas velas brancas, enfunando ao vento, pontilham o verde e azul,
Vê, os vapores indo e vindo, entrando e saindo de porto,
Vê, obscuras e ondulantes, as longas flâmulas de fumaça.”
A descrição do panorama com elementos da natureza presentes nos mares, que também servem de caminhos por onde volitam embarcações conduzidas pelo homem, remonta ao “milagre sem fim ” e a uma época de proeminência da navegação britânica.
Ayvazovsky, 1851
“E destes um canto para os marujos de todas as nações,
Intermitente, como uma vaga.
De capitães de navio
jovens ou velhos e dos imediatos e de todos intrépidos marujos,
Dos poucos, muito seletos, taciturnos, a quem o destino nunca pode surpreender nem a morte
esmorecer,
Selecionados parcamente sem ruído por ti velho oceano, escolhidos por ti,
Tu mar que selecionas e separas a raça a tempo, e unes nações,”
Em refrões, o coral faz ecoar a declamação reforçada pela orquestra que prepara a primeira aparição da cantora:
“Ostente,
Ó mar tuas bandeiras separadas de nações!
Tremula visíveis como sempre os vários sinais de navios!
Mas reserva especialmente para ti mesmo e para a alma do homem uma bandeira acima das demais,
Um sinal espiritual tecido para todas as nações, emblema do homem altivo sobre a morte,
Símbolo de todos os bravos capitães e todos os intrépidos marujos e companheiros,
E todos que foram derrotados cumprindo seu dever,”
Ayvazovsky, 1872
“Reserva especialmente para ti mesmo e para a alma do homem uma bandeira acima das demais ”
Às vozes femininas cabe o suave final com a reexposição do tema “Vê, o próprio mar”, cantando “para todos os mares e todos os navios”, como última reverência do “Poeta do Oceano”.
O cenário do segundo movimento é a praia. A praia à noite, com todos os encantos e mistérios, onde o protagonista se encontra sozinho. Tudo é calma, silêncio, contemplação. A sonoridade ao fundo sugere penumbras e acolhe a narrativa declamada pelo barítono, ao pedal da orquestra, com ênfase aos violoncelos e o coral que sussura:
“Na praia, sozinho, à noite,
Quando a velha mãe balança para a frente e para trás,
entoando sua canção vigorosa,
Quando assisto à brilhante estrela que cintila,
reflito sobre a chave dos universos e sobre o futuro.”
Ayvazovsky, 1894
“Uma vasta similitude engrena todas as coisas,
Todas as esferas, as desenvolvidas, as mirradas, as pequenas,
as grandes, os sóis, as luas, os planetas,
Todas as distâncias de lugares, não importando quão longínquos,
Todas as distâncias do tempo, todas as formas inanimadas,
Todas as almas, todos os corpos viventes embora tão diferentes,
ou de mundos diferentes,
Todos os processos gasosos, aquáticos, vegetais, minerais,
os peixes, as criaturas,
Todas as nações, cores, barbarismos, civilizações, línguas,
Todas as identidades que existiram ou possam existir
[neste globo ou em qualquer globo,
A grandeza se funde no tutti coral e orquestral ao fim do verso com todas as vozes:
“Todas as vidas e mortes, todo o passado, o presente, o futuro,
Essa vasta similitude os abarca, e sempre os abarcou,
E há de abarcá-los para sempre e solidamente envolvê-los e contê-los.”
A contemplação celestial da noite à beira-mar retorna para se consumar no lirismo de uma prece resignada sob o canto dos violoncelos. É chegada a hora de falar das ondas, título do efusivo terceiro movimento, uma comenda especial aos movimentos que fazem o mar dançar jubilosamente.
Ayvazovsky, 1891
Vagas lançam-se abundantemente pelo ar, descontínuas e irreverentes, livres e imprevisíveis com a personalidade poética de Walt Whitman fielmente retratada no eloquente tema cantado por todo o conjunto
.
“Atrás do navio marítimo, atrás dos ventos sibilantes,
Atrás das velas branco-cinza tesas em suas vergas e cordas,
Abaixo, uma miríade de ondas se apressando, erguendo seus pescoços,
Propendendo em fluxo incessante a esteira do navio,
Ondas do oceano borbulhando e gorgolhando, jubilosamente espreitando,
Ondas, ondulantes ondas, líquidas, desiguais, rivais, ondas,
Em direção à corrente turbilhonante, ridentes e flutuantes, com curvas,
Onde a grande nave velejando e virando de bordo deslocou a superfície,
Ondas maiores e menores na amplitude do oceano ansiosamente fluindo,
As águas do navio marítimo depois que ele passa, flamejantes e brincalhonas sob o sol”
Poesia e música revezam-se com crescente sinuosidade, exprimindo o desafio que as ondas imprimem à navegação, superados pela coragem em um espetáculo de espumante velocidade. Tudo converge para ser coroado com o jubiloso hino que arremata a epopeica homenagem.
Ayvazovsky, 1849
Não é mais restrita ao mar a mensagem poético-musical, decerto o que motivou para a esplêndida louvação, a opção por versos de “Os Exploradores” (The Explorers - “Nadando no espaço”), do poema “Passagem para Índia”. O mar agora é o mar espacial,
Ayvazovsky, 1890
Vaugham Williams não esconde, pelo contrário, reforça musicalmente toda a religiosidade latente na poesia de Whitman. Na esperança de que ao final o Filho de Deus venha “cantar suas canções”. A crença em “alguma intenção profética” faz-se clara em todo o deslumbramento perante a “esfera” que navega pela imensidão cósmica.
Logo no início, a visão do globo terrestre singrando lentamente pelas rotas celestes sublima-se na envolvente sonoridade.
“Ó vasto Rondure, nadando no espaço,
Coberto com poder e beleza visíveis,
Luz e dia alternados e as trevas espirituais abundantes,
Altas procissões indescritíveis do sol e da lua e incontáveis estrelas acima,
Abaixo, a multiplicidade de grama e águas, animais, montanhas, árvores,
Com propósito inescrutável, alguma intenção profética oculta,
Agora, primeiro parece que meu pensamento começa a abrangê-lo.
Ah, quem acalmará essas crianças febris?
Quem justifica essas explorações inquietas?
Quem fala o segredo da terra impassível?
Quem o vincula a nós? o que é essa natureza separada tão antinatural?
O que é esta terra para nossos afetos? (terra sem amor, sem um latejar para responder ao nosso,
Terra fria, o lugar das sepulturas.
No entanto, alma, esteja certa de que a primeira intenção permanece, e será realizada,
Talvez agora tenha chegado a hora. [...]
Todos estes corações, como de crianças aflitas, serão acalmados,
Toda afeição deve ser totalmente respondida - o segredo deve ser contado; [...]
A Trindade Divina será gloriosamente realizada e compactada pelo Filho de Deus, o poeta, [...]
A natureza e o homem não serão mais separados e difundidos,
O verdadeiro Filho de Deus os fundirá totalmente.”
O espírito de fé e transcendência simultaneamente incute-se e expõe-se na eminente retórica que se consubstancia na perfeita amálgama “música e poesia” tão bem lapidada por Vaughan Williams. Ao mencionar o desfile do sol, lua e incontáveis estrelas na abóbada celeste, a inebriante atmosfera musical é capaz de transpor o ouvinte a elevados estados de aconchego espiritual ,
Ayvazovsky, 1887
Nos episódios litúrgicos, emerge a espiritualidade. Na paixão e no drama dos magníficos duetos, o amor de ambos pela ópera. Nos recitativos, o apreço pela declamação; na entoação lírica dos solos de sopros e cordas, o romantismo que envolve o tema, nas nuances e sutilezas do pianíssimo, as penumbras que acalmam o coração.
Se a intenção de Vaughan Williams foi de enaltecer sua devoção à poesia e inovadora de Whitman, há de se considerar inteiramente alcançada. Assim como tantas outras criações que congregaram de maneira admiravelmente sublime a literatura e a música.
O pensamento ousado, metafísico e revolucionário de Walt Whitman e a extraordinária habilidade musical de Vaughan Williams se consignam na cosmovisão metafísica de ambos, com efeito, no que escreveu o compositor ao resumir de forma tão cristalina o significado da Sinfonia do Mar:
“A música é a única coisa que desafia bombas e blitz. A música é a única coisa que une aqueles que vivem em extremos opostos do globo. A música é a única coisa que faz amizade com aqueles que nunca se conheceram, e talvez nunca se encontrarão, exceto por meio do poder da maior das artes.”